15 Novembro 2024
O plano de Eduardo Leite se resume a propor a reconstrução do que foi destruído sem encarar de frente a crise climática
O artigo é de Tarson Núñez, Doutor em Ciência Política, pesquisador do Observatório das Metrópoles, publicado por Sul21, 12-11-2024.
As enchentes de maio no Rio Grande do Sul foram um exemplo muito claro do potencial catastrófico dos impactos da crise climática. A destruição e as mortes causadas pela inundação lançaram um desafio para a sociedade gaúcha: o que fazer para evitar a repetição deste tipo de acontecimentos. Naquele momento ficou evidente que não era suficiente discutir apenas como recuperar os danos causados pelas águas, mas que era importante também pensar formas de evitar a repetição deste tipo de tragédia. Por isso quando se começou a discutir a reconstrução havia uma expectativa de que o impacto dramático dos acontecimentos de maio teria servido como uma lição, e que a sociedade gaúcha buscaria novos caminhos, repensando seus modelos de gestão e, sobretudo, o seu modelo de desenvolvimento. Isto porque estava evidente que as causas do desastre não se resumiam a uma quantidade excepcional de chuvas, mas estavam ligadas diretamente a um modelo de desenvolvimento que é o causador dos desequilíbrios ambientais.
Esta expectativa apontava para a busca de uma forma nova e criativa de pensar a gestão pública, assim como para orientar a reconstrução no sentido de pensar o desenvolvimento a partir de novos paradigmas. Por isso muita gente acreditou que o processo de reconstrução seria orientado no sentido de uma qualificação da legislação ambiental, de uma recuperação das estruturas públicas de fiscalização, de gestão e de planejamento. Imaginamos que o esforço da reconstrução seria uma oportunidade de aproximar a gestão pública e as instituições de ensino e pesquisa, e o conhecimento científico de ponta iria orientar a reconstrução. Se esperava que não apenas se buscaria reconstruir, mas sim repensar o modelo de desenvolvimento que é a causa última da crise climática. Se esperava que os desafios da crise motivariam o governo a envolver toda a sociedade na construção de políticas de enfrentamento aos desafios contemporâneos
No entanto a partir de junho começam a aparecer sinais de que estas expectativas seriam frustradas e que as lições da catástrofe não tinham sido aprendidas. O lançamento do Plano Rio Grande por parte do governo do estado materializou esta frustração. Este plano, lançado ainda no final de maio, sintetiza uma determinada compreensão dos desafios que se colocam para o nosso estado. O governo do estado, que está recebendo bilhões de reais em fundos federais para a reconstrução, mais de R$ 100 bilhões, está propondo uma política de reconstrução que não apenas não enfrenta os problemas de fundo, como termina por aprofundar as características de um modelo que aponta na direção contrária
Para começo de conversa, o plano, em que pese uma retórica aparentemente sintonizada com a agenda ambiental, não se propõe a suspender o desmonte da legislação e das estruturas de gestão do setor público na área ambiental. Não há qualquer menção no Plano Rio Grande no sentido de rever o desmonte da legislação ambiental realizado pelo próprio governo nos últimos anos. Pelo contrário, em alguns documentos internos do governo é dito literalmente que a condição de urgência da reconstrução pode tornar necessária a “flexibilização de normativas ambientais e urbanísticas”. Então a coisa já começa mal, pois um dos elementos geradores da crise climática é justamente a falta de regulação e de controle sobre as atividades econômicas, que o Plano se recusa a enfrentar.
O Plano é dividido em três eixos: a) o Emergencial, que são ações de curto prazo; b) o de Reconstrução, focado em ações de médio prazo; e c) Rio Grande do Sul do Futuro, com ações de longo prazo. Portanto o Plano Rio Grande tem como ponto de partida ações de reconstrução. Neste componente, que inclui ações dos dois primeiros eixos o Plano se resume a um investimento para reconstruir as estruturas físicas que foram afetadas pelas enchentes, como escolas, pontes e estradas. Isto sem dúvida é muito importante, enfrentar a destruição causada pela catástrofe de maio. Mas este esforço corre o risco de ser um trabalho inútil se não buscarmos enfrentar as causas que levam à crise climática, pois se não houverem mudanças profundas os desastres voltarão a acontecer. Para esta reconstrução serão alocados mais de R$ 24 bilhões dos fundos que o Governo Federal está repassando ao Rio Grande do Sul. Mas é importante destacar que, deste ponto de vista, o Plano Rio Grande se resume a recuperar o que foi perdido na catástrofe, sem enfrentar os desafios que a crise climática aponta para o futuro do nosso estado.
No seu conjunto o Plano tem uma estimativa de custos total de R$ 50,6 bilhões. E estes recursos, em sua quase totalidade, têm origem no Governo Federal. São R$ 12,9 bilhões que compõem o Funrigs, om recursos oriundos da postergação do pagamento da dívida do RS com a União. Além destes recursos, o Plano também é financiado por R$ 800 milhões de recursos do PAC, R$ 9,3 bilhões alocados diretamente pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional e pelo Ministério das Cidades, R$ 450 milhões do DNIT e mais R$ 14,3 bilhões em operações de crédito, provavelmente do BNDES. O Plano do governo do estado, portanto, é um plano quase totalmente financiado pelo governo federal.
Já no que diz respeito às perspectivas de futuro, o plano é absolutamente frágil. Quando aborda as perspectivas de médio e longo prazo, o plano se revela inconsistente e mesmo perigoso. No eixo que diz respeito às ações de médio prazo, que tem 18 projetos, a maioria deles se resume também a ações de reconstrução. São 12 projetos de recuperação de pontes, escolas e aeroportos, além de construção de moradias para os atingidos. E os outros seis projetos se resumem a versões requentadas de programas que o governo já vinha implementando antes mesmo dos eventos de maio, como campanhas de promoção ao turismo, programas de formação profissional para jovens e até mesmo a Consulta Popular, que é algo que já acontece a quase trinta anos. Em outras palavras, a perspectiva de ações de médio prazo se resume a reconstruir o que foi perdido e a continuar o que já vinha sendo feito. Isto mostra claramente o caráter improvisado e superficial do Plano Rio Grande. A reconstrução do Rio Grande, para Leite, se confunde com a materialização de seu programa de governo.
E neste eixo ainda encontramos o problema mais grave do Plano. Entre as políticas que o governo reciclou e incluiu nas ações de médio prazo temos um aprofundamento do desmonte do estado e da entrega do patrimônio público ao setor privado. O governo Leite vai aproveitar a ocasião da reconstrução, e os fartos recursos disponíveis, para intensificar as privatizações, sob o nome de Concessões e Parcerias Público Privadas. Serão R$ 1,3 bilhões para a entrega da gestão de 99 escolas para empresas privadas. E mais R$ 13 bilhões para a concessão de mais 15 rodovias estaduais, que serão explorados através de pedágio por empresas privadas. A região Metropolitana, o Vale do Taquari, parte da Serra e das Hortênsias serão todas tomadas por estradas concedidas. Cerca de 28%, quase um terço do total de recursos da reconstrução do Plano, serão investidos para reformar escolas e estradas e depois entregá-las para a iniciativa privada.
Este perfil se repete também no eixo relacionado com ações de longo prazo. São 40 projetos, 20 deles relacionados com a recuperação dos sistemas de defesa contra enchentes, ações de desassoreamento de rios, de compra de equipamentos e de elaboração de planos de contingência e protocolos de ação para a defesa civil. Projetos importantes, mas que se mantém no âmbito da resposta aos fenômenos extremos, sem tocar nas causas. Os vinte projetos restantes das medidas voltadas para o futuro se dividem entre declarações de boas intenções e políticas já existentes, repaginadas para fazer parte do plano. No primeiro grupo se encontram uma série de medidas que estão fora do escopo de atuação do governo, que dependem de decisões sobre as quais não tem qualquer governabilidade. O Plano se propõe a reforçar a rede de energia elétrica, melhorar a telefonia e universalizar o saneamento básico, três temas que dependem exclusivamente da decisão das concessionárias. No segundo grupo se incluem projetos que o governo já vinha implementando, que foram repaginados para fazer parte do Plano: agricultura de baixo carbono, estudos sobre logística, políticas para hidrogênio verde, bolsas de estudos, incentivos fiscais e um plano de reconversão econômica.
Em outubro o governador anunciou o lançamento deste plano de desenvolvimento. Este plano aliás, elaborado pela consultoria norte-americana Mckinsey, tem entre os seus carros chefe duas atividades cujo impacto ambiental é altamente questionável. Um deles é a indústria da celulose, responsável pela expansão da monocultura do eucalipto e o outro é a instalação de um Data-Center, um tipo de infraestrutura que consome quantidades enormes de energia elétrica e de água. Esta orientação do plano de desenvolvimento da McKinsey mostra claramente o quanto a visão de futuro do governo do estado não dialoga em nada com uma perspectiva de desenvolvimento sustentável. O governo quer reconstruir o estado, mantendo práticas e projetos que vão contra uma perspectiva de futuro.
Este plano da Mckinsey aponta também para outra dimensão grave do Plano Rio Grande, o da dependência de consultorias privadas. Ao invés de aproveitar os bilhões disponibilizados para a reconstrução e estabelecer uma sinergia com as instituições de ensino e pesquisa existentes no estado, o governo prefere pagar empresas estrangeiras. Mesmo que o governo disponha de centenas de técnicos, economistas e cientistas sociais experientes e qualificados, como por exemplo os quadros da extinta FEE, que foram incorporados à Secretaria de Planejamento, o governo opta por contratações de empresas terceirizadas. Estes quadros disponíveis nesta e em outras secretarias, em articulação com as universidades gaúchas, poderiam ser utilizados para os estudos necessários para a reconstrução, economizando recursos públicos e fortalecendo a capacidade do Estado para enfrentar a crise climática.
Aliás, para além do plano da Mckinsey, um número significativo de outros projetos do Plano Rio Grande segue este padrão de contratação de consultorias privadas. Possivelmente porque as soluções propostas por estas consultorias privadas vão estar sempre alinhadas com os desejos e propostas do governo. Mas desta forma se perde a oportunidade de construir um trabalho com as universidade e instituições de pesquisa locais, que poderiam oferecer soluções tecnicamente qualificadas e ao mesmo tempo ser fortalecidas e engajadas em um trabalho prático conjunto com o setor público. Se perde, desta forma, uma oportunidade de fortalecer as capacidades locais e de estabelecer um círculo virtuoso de interlocução entre o setor público e as instituições acadêmicas que seria muito importante para o futuro do Rio Grande do Sul.
Por fim, outra característica do Plano Rio Grande é o que se relaciona com a participação da sociedade na elaboração e gestão do plano de reconstrução. O governo criou um conjunto de espaços nos quais a sociedade civil pode participar, mas todos eles se caracterizam por não ter qualquer poder deliberativo. Na lei que criou o Funrigs se estabelece a existência de um Conselho com participação da sociedade civil, mas que não tem entre suas atribuições decidir, apenas sugerir. Não satisfeito, o governo criou um outro conselho, o Conselho do Plano Rio Grande, que tem 160 participantes, na maioria composto por empresários e autoridades e sem nenhuma representação de entidades ambientalistas. Mas este conselho tampouco tem algum poder deliberativo. E por fim o Plano tem também um Comitê Científico, mas que também não tem qualquer poder real. Os espaços de participação da sociedade, portanto, são meramente consultivos, onde a sociedade pode até eventualmente se manifestar, mas no final das contas quem decide tudo é o próprio governo. Se perde, com este procedimento, uma oportunidade de estabelecer para a reconstrução um padrão de governança onde a sociedade pudesse de fato participar, ter sua voz ouvida e ter poder de decisão.
O Plano Rio Grande não apresenta medidas voltadas para incidir sobre as causas dos desastres. Não apresenta uma política de reflorestamento nem de recuperação das matas ciliares, que seria central para as áreas atingidas pela catástrofe. Não aponta para a incorporação dos Comitês de Bacias Hidrográficas como instrumentos da gestão territorial. O Plano não inclui qualquer medida no sentido de repensar o modelo produtivo. Pelo contrário, aposta em um padrão de apostar em indústrias e atividades econômicas de alto custo ambiental, assim como não aponta para a priorização de atividades baseadas em setores sustentáveis. O Plano não dialoga com a nova política industrial do governo federal, que aponta para uma transição ecológica. O Plano não questiona o modelo de monocultura e de produção de commodities para a exportação, não fala em agroecologia e nem na diversificação da produção. E não aponta para um redirecionamento das atividades produtivas na direção de atividades mais relacionadas com a sustentabilidade
E mais, o plano aponta para uma maior privatização de ativos públicos, repassando estradas e escolas para a gestão privada, através de concessões e PPPs. Com este plano, o Rio Grande perde também a oportunidade de usar o processo de reconstrução para fortalecer as capacidades das estruturas do estado, mantendo o sucateamento das estruturas e o esvaziamento da legislação ambiental. Os recursos da reconstrução poderiam permitir uma articulação muito produtiva entre instituições de pesquisa com os órgãos do estado, o que poderia gerar parcerias que fortaleceriam nossas universidades e o próprio setor público. Em resumo, o Plano de Leite não enfrenta os desafios do nosso tempo e aposta no aprofundamento do desmonte do Estado, das privatizações e do repasse dos recursos públicos para consultorias privadas. E neste sentido se resume a propor a reconstrução do que foi destruído sem encarar de frente a crise climática. Estamos, portanto, frente a uma oportunidade perdida e corremos o risco de assistir um agravamento da situação ambiental em nosso estado.
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Reconstrução do RS: uma chance perdida. Artigo de Tarson Núñez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU