13 Julho 2024
"Sem entrar nos méritos da complexa exegese da passagem, especialmente em seu valor global final (...) apenas apontamos a filigrana etiológica do texto, talvez elaborada com materiais arcaicos", escreve Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 07-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Além da Bíblia. Roberto Esposito relê as páginas em que Jacó se confronta com um ser misterioso: é ele o mensageiro divino ou o demônio ou um inimigo coletivo. Esaú é o arquétipo de Edom, a nação inimiga de Israel.
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I volti dell'Avversario Einaudi, de Roberto Esposito (Foto: Divulgação)
É sugestiva a recente análise do texto bíblico por pensadores "leigos" com pontos de vista de grande originalidade e criatividade: a título de exemplo, citamos apenas La Legge della Parola (A Lei da Palavra) de Massimo Recalcati (Einaudi 2022), sobre a qual já escrevemos nestas páginas, o poderoso e envolvente Parlare con Dio (Conversando com Deus) de Umberto Curi (Bollati Boringhieri 2024), apresentado aqui por Francesca Rigotti, e, finalmente, I volti dell'Avversario (As faces do adversário) de Roberto Esposito, da Normale di Pisa, que agora nos oferece a possibilidade para a evocação de uma página bíblica extraordinária e enigmática do livro de Gênesis (32,23-33). Nela, o patriarca Jacó enfrenta um ser misterioso em uma espécie de duelo noturno às margens de um afluente do Jordão, o Jaboque.
Sem entrar nos méritos da complexa exegese da passagem, especialmente em seu valor global final — aliás, relida em chave mística como uma parábola do encontro e do diálogo com Deus pela própria Bíblia (Oséias 12,4-5; Sabedoria 10,12) —, apenas apontamos a filigrana etiológica do texto, talvez elaborada com materiais arcaicos. Um primeiro dado de sabor mítico é o do espírito ou do demônio que impede a travessia do rio. Poderia ser uma memória lendária local transfigurada, ligada ao "rio azul" (esse é o significado do topônimo Jaboque), ao seu "espírito" ou demônio, ou seja, à dificuldade de sua travessia. Jacó luta contra esse deus do rio, que com seu toque mágico o bloqueia, ferindo-o, mas a vitória, à primeira vista, parece ser do homem que lhe concede uma bênção, uma força vital. Lembra quase a lenda cristã de São Cristóvão ou o motivo do demônio poderoso apenas à noite que perde sua força ao amanhecer, um tema também presente no Anfitrião de Plauto ou no Ato I do Hamlet de Shakespeare.
A esse elemento folclórico, devemos acrescentar outro evidente, o da prescrição alimentar — desconhecida, aliás, no restante do Antigo Testamento — que proíbe alimentar-se de uma parte de carne que contém o nervo ciático: Jacó, de fato, sai da luta mancando. É bem sabido que são várias essas regras sacras, muitas vezes de matriz ancestral, que proíbem a presença na mesa que determinados alimentos. Talvez seria um acréscimo que tentaria justificar uma antiga prática dietética judaica: a torção no fêmur de Jacó seria, portanto, a etiologia simbólica desse costume.
Há, além disso, outra etiologia evidente, aquela do nome geográfico Penuel, "face de Deus", onde a luta ocorre: "Eu vi Deus face a face" (v. 31), afirma Jacó. Há também uma outra referência arquetípica, aquela do nome do povo judaico, Israel, um nome adquirido durante o duelo.
É popularmente interpretado como um "contender com Deus": "lutaste com Deus e com os homens, e prevaleceste" (v. 28). Na realidade, o significado filológico genuíno é incerto: "Deus é sincero, brilha, salva, reina, luta", ou "que Deus lute!" ou outro ainda. Nesse ponto, voltamos ao fascinante ensaio de Esposito, que também é o resultado de uma impressionante pesquisa de Wirkungsgeschichte, ou seja, de história dos efeitos literários e artísticos gerados pela página bíblica. Trata-se de um denso palimpsesto de autores envolvidos nos temas solicitados por aquela narração: tente acompanhar a seção final intitulada "glosas", na qual o estudioso convoca uma dúzia de escritores, pensadores, historiadores, todos propensos à releitura do misterioso protagonista do relato.
Também é importante, portanto, a ampla premissa hermenêutica que justifica essa filigrana sistemática de intérpretes. O Narrador, de fato, interpela o Leitor, a Escrita e a Leitura se cruzam, o dado objetivo histórico-crítico "informativo" se expande para a dimensão "performativa" subjetiva.
Com essa grade, que também inclui iconografia artística (mais que o Delacroix de St. Sulpice em Paris, é emocionante o óleo sobre tela de Gauguin das National Gallery of Scotland de Edimburgo adotado para a capa), Esposito percorre uma sequência de verdadeiros retratos, uma tétrade de identificações do Ser misterioso que, naquela noite, se envolve em um duelo (tema lido à luz do poema Duellum de Baudelaire) com Jacó. É um exercício que desde sempre envolveu os leitores, a começar pelo midrash judaico que curiosamente intuía naquele personagem nada menos que o espírito do irmão traído Esaú, que revela a Jó não apenas a culpa perpetrada ao tirar-lhe a primogenitura (Gênesis 27), mas também a frieza para com a esposa Lia e a excessiva predileção pelo filho José.
No texto hebraico de Gênesis, ele é simplesmente um 'ish, um “homem”, mas a tradição dissolveu a ambiguidade ao caracterizá-lo como um anjo, que é o mensageiro divino, ou melhor, “a exterioridade de Deus”, uma modalidade figurada para salvar sua transcendência. Na antípoda, aqui está a segunda identificação, aquela do demônio (ou do deus do rio mencionado acima), que Esposito lê pelos olhos de Thomas Mann no seu José e seus irmãos, figura que oscila entre múltiplas fisionomias (deus, demônio, homem, animal).
A terceira decodificação é a do Adversário, que pode ser coletivo: Esaú, de fato, é o arquétipo de Edom, a nação inimiga de Israel. Por fim, a última face sugerida para aquele 'ish é a mais elusiva: é a Sombra, ou seja, o alter ego do próprio Jacó, segundo uma perspectiva psicanalítica baseada no "processo de individuação" junguiano. Mais uma vez, por meio desse belíssimo ensaio, se descobre a contínua fecundidade daquele "alfabeto colorido" (M. Chagall) que é a página bíblica.
Leia mais
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Buscar nas sombras o adversário e nós mesmos. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU