05 Fevereiro 2024
Seema Jilani é uma médica norte-americana assessora técnica sênior no Comitê Internacional de Resgate (IRC), onde lidera as respostas a emergências em saúde globalmente. Em dezembro, ela foi ao Hospital Al-Aqsa, no centro de Gaza, para ajudar nos esforços humanitários. Mais de 26 mil palestinos foram mortos pelas forças militares de Israel, no conflito iniciado após o ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro. Desde então, o sistema de saúde de Gaza está cada dia mais próximo do colapso total, e Israel tem se recusado a permitir a entrada de alimentos e medicamentos suficientes no território. Conversei recentemente por telefone com Jilani – que praticou medicina em todo o mundo, incluindo inúmeras zonas de conflito – sobre suas experiências em Gaza. Nossa conversa, editada por questões de extensão e clareza, está abaixo.
A entrevista é de Isaac Chotiner, publicada por New Yorker, e reproduzida por Outras Palavras, 02-02-2024. A tradução é de Gabriela Leite.
Onde você trabalhou antes de chegar a Gaza?
Eu estive em Gaza e na Cisjordânia algumas vezes nos últimos dezenove anos. Estive em Gaza anteriormente em 2005, antes do desengajamento israelense, e novamente em 2015, logo após a guerra de 2014. Também fui várias vezes à Cisjordânia. Trabalhei no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, no Egito, na Turquia e no Paquistão. E atuei em barcos de resgate de refugiados ao largo da costa da Líbia.
Quando vai ao Iraque, Paquistão ou Afeganistão, com quem você trabalha e em que capacidade?
Com várias ONGs, algumas compostas principalmente por voluntários. Trabalhei com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha no Líbano quando morava lá. Geralmente, atuo na área pediátrica, como clínica. Na Turquia, ensinei estudantes de medicina refugiados e migrantes a defender seus pacientes.
Quando começou sua estadia mais recente em Gaza e como você entrou no território?
Partimos do Cairo no dia de Natal. O Comitê Internacional de Resgate, em parceria com a Medical Aid for Palestinians (MAP), enviou uma equipe de emergência para fornecer cuidados médicos de emergência e salvamento. Isso foi facilitado em parte pelo Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários. Éramos uma equipe de cirurgiões, uma obstetra de alto risco, um médico de cuidados de emergência, um anestesista e eu, além de outras pessoas do IRC.
Então você chegou ao hospital depois do Natal. O que você viu e como começou seu trabalho?
Trabalhamos ao lado dos médicos e enfermeiros palestinos, e realmente achamos importante trabalhar junto a eles e aprender com eles. Estávamos em uma das últimas salas de emergência que ainda existiam no centro de Gaza. Dentro das duas semanas em que estive lá, vi o hospital passar de semi-funcional para quase ou completamente não funcional, devido ao aumento da violência nas áreas circundantes. Em certo momento, começaram a chegar avisos de evacuação.
Nas primeiras horas do meu trabalho, tratei de um menino de aproximadamente um ano. Seu braço direito e perna direita foram arrancados por uma bomba, e a carne ainda estava pendurada no pé. Havia uma fralda manchada de sangue, que permaneceu, mas não havia perna abaixo dela. Tratei o bebê deitado no chão. Não havia macas disponíveis porque todas já estavam ocupadas, considerando que muitas pessoas também usavam o hospital como abrigo ou local seguro para suas famílias. Ao lado dele, havia um homem que estava em seus últimos suspiros. Ele estava à beira da morte desde as últimas vinte e quatro horas, e as moscas já o rodeavam. Ao mesmo tempo, uma mulher trazida foi declarada morta na chegada.
Esse bebê de um ano tinha sangue entrando na cavidade torácica. Ele precisava de um tubo torácico para não sufocar com o próprio sangue. Mas não havia tubos torácicos nem esfigmomanômetros disponíveis em tamanhos pediátricos. A morfina não foi administrada, na confusão, e nem estava disponível. Esse paciente, nos Estados Unidos, teria ido imediatamente para o centro cirúrgico, mas, ali, o cirurgião ortopédico enfaixou seus membros amputados e disse que não poderia operá-lo agora – porque havia emergências mais urgentes. E eu tentei imaginar o que seria mais urgente do que um bebê de um ano sem mão e sem pernas que estava sufocando com o próprio sangue. Isso, para mim, foi simbólico das escolhas impossíveis infligidas aos médicos de Gaza e quão verdadeiramente catastrófica é essa situação.
Quem toma as decisões no hospital? Existe alguém que diz a você para fazer “X” e a outra pessoa para fazer “Y”? Ou são apenas pessoas correndo para dentro de salas, em improviso?
Eu trabalhei predominantemente na sala de emergência. Também atuei nas enfermarias pediátricas. Trabalhamos com nossos colegas da MAP que faziam a tradução e também ajudavam a coordenar o trabalho em grupo na sala de emergência. Sinceramente, devido ao grande número de vítimas, nenhum sistema está preparado para suportar isso, então foi realmente caótico. Se minha descrição parece caótica, é porque era. As pessoas entravam de qualquer maneira possível, seja carregadas em macas improvisadas, se tivessem sorte, ou por uma ambulância que transbordava de pessoas, sobre jumentos. Aconteciam bombardeios nas proximidades, nós víamos os efeitos deles. Então, trabalhávamos, como eu disse, ao lado dos médicos que conseguiam comparecer. Muitos não conseguiam ir trabalhar porque eles mesmos haviam sido desabrigados à força várias vezes também.
Quantas horas por dia você trabalhou durante essas duas semanas?
Apenas durante as horas diurnas, devido à segurança. Então, das 9h às 15h.
Por que apenas isso?
Não nos sentíamos confortáveis. Estávamos hospedados em uma casa de hóspedes e não nos sentíamos seguros com as medidas de segurança após o anoitecer.
No hospital, você está dizendo?
Tanto no hospital quanto durante o deslocamento de ida e volta.
Você sentiu de alguma forma que sua presença estava fazendo diferença no hospital? Ou havia uma espécie de sensação de que o trabalho estava sempre tão aquém do necessário que se tornava fútil?
Essa é uma pergunta tão sutil, eu realmente aprecio isso… Eu senti que estávamos fazendo diferença, e acho que a melhor mostra disso acontecia quando os médicos palestinos nos olhavam como médicos estrangeiros e diziam: “Não fomos esquecidos. Essa é a evidência de que não nos esqueceram do lado de fora”. Outra maneira pela qual achei que fazíamos diferença era na triagem de pacientes para liberar espaço, simplesmente abrindo espaço na sala de emergência para que mais pacientes pudessem entrar. Assim, conseguiríamos atender pacientes e permitir que os menos urgentes saíssem do hospital, para que pudéssemos abrigar as iminentes vítimas em massa. Às vezes, os médicos não conseguiam comparecer. Eles procuravam corajosamente abrigo para suas próprias famílias e apareciam para trabalhar com um estetoscópio no dia seguinte, mas se não podiam ir trabalhar, estávamos lá para preencher algumas lacunas. Dito isso, é uma situação completamente avassaladora em termos da gravidade, escala e magnitude das lesões que estávamos vendo. E nenhum sistema é projetado para suportar isso.
Você disse que as coisas pioraram durante as duas semanas em que esteve lá. Pode descrever o que mudou entre o momento em que chegou e o momento em que partiu?
Cada dia ficou mais tenso, com mais e mais pessoas se amontoando nas áreas circundantes em busca de abrigo seguro. Lembro-me de estar aconselhando novas mães sobre amamentação e olhar para fora da enfermaria, onde havia colunas de fumaça subindo no ar e bombas se aproximando do hospital, e foi uma cena muito surreal. Um dia, uma bala atravessou a UTI. No dia seguinte, a estrada até o hospital foi considerada insegura para nós usarmos. Então, o exército israelense lançou panfletos, designando as áreas ao redor do hospital como uma zona vermelha. Dada a história recente de ataques a profissionais e instalações médicas em Gaza, nossa equipe não pôde retornar, e as pessoas começaram a evacuar a área em pânico.
O que você sabe sobre o estado atual do hospital?
Eu estive em contato com os médicos com quem trabalhei. Como mencionei, muitos estão desabrigados, mas ainda vão ao hospital para tentar atender aos pacientes. Houve um período em que acredito que ficaram sem combustível. Não sei se isso foi renovado ou não, mas tudo o que sei é que não consigo parar de pensar se meus pacientes saíram de lá, lembrar de meus bebês nas incubadoras da UTI neonatal. Quem cuidaria deles? As crianças com queimaduras faciais: como conseguiriam enxergar o suficiente e ficar bem o bastante para sair? Então, eu não sei, e gostaria de ter mais informações.
Você pode falar um pouco sobre como era sua vida nas horas em que não estava no hospital?
A viagem da fronteira de Rafah até a casa de hóspedes é uma espécie de mar de tragédias humanas. Eu nunca vi nada tão extremo, todos os pertences das pessoas foram empacotados em carros – se tivessem sorte, tinham carros, senão era em um carrinho de burro. Ou então estavam andando descalços, procurando sacos de lixo para fazer tendas improvisadas, procurando madeira para encontrar abrigo. E havia de tudo, desde animais de estimação, gatos, bebês adormecidos e pessoas penduradas do lado de fora de caminhões. Apenas nessa viagem de menos de dez quilômetros, se não estou enganada, levamos aproximadamente mais de duas horas para passar porque todos estavam indo embora. As pessoas tinham olhares de total resignação e desespero.
Quanto à nossa casa de hóspedes, ouvíamos frequentemente bombas, tiros, ataques aéreos. A porta da minha varanda não tinha vidro. Tinha sido explodida. Eu estive lá por duas semanas, e as pessoas vivem assim todos os dias – penso nisso para reconhecer meu privilégio.
Você teve alguma experiência com combatentes do Hamas ou forças israelenses, nessas duas semanas?
Eu via a Marinha Israelense porque pegávamos uma estrada costeira. Então eu os via com meus próprios olhos, mas não tive outras experiências, não.
Tenho curiosidade de saber sobre alguns dos outros lugares onde você prestou cuidados médicos e compará-los ao que você vivenciou em Gaza.
Estive no Afeganistão em 2010, e depois em 2011, e já tinha estado em Gaza, por isso sinto que posso dizer o seguinte sobre Gaza: em comparação com o Afeganistão, tinha uma capacidade muito elevada, era altamente qualificada, com um sistema de cuidados de saúde forte e funcional. Sistema que foi agora desmantelado. No Afeganistão, isso não existia. O país suportou o peso da guerra por gerações após gerações. Falta de suprimentos ou vacinas não são necessariamente algo novo em muitas partes do Afeganistão, especialmente na área rural, onde os cuidados de saúde são um verdadeiro luxo, ao contrário de Gaza. A outra diferença notável entre os dois é que senti no Afeganistão que os hospitais eram um espaço seguro em geral. Não sinto isso com este conflito em particular. Eu me senti em perigo no hospital palestino.
E em comparação com alguns dos outros lugares onde você esteve?
A outra diferença que eu diria é que sou pediatra, por isso não esperava ser de grande utilidade numa zona de guerra. Fico desanimada e realmente perturbada ao dizer que, em Gaza, tive muitos, muitos pacientes pediátricos que eram feridos de guerra, órfãos queimados, crianças com amputações traumáticas – e isso é algo diferente do que testemunhei no Iraque ou em qualquer outro lugar.
O medo entre os profissionais de saúde era impressionante. A natureza das queimaduras nos pacientes pediátricos que atendi e a sua gravidade, eu não tinha testemunhado antes. Infelizmente, eu já havia visto algumas queimaduras, nos EUA, em casos de abuso infantil – mas não nesse grau. Em Gaza tivemos queimaduras carbonizadas e enegrecidas. E a gravidade das amputações traumáticas e a frequência com que as vimos…
Mas o medo dos próprios profissionais de saúde de serem alvos, de serem detidos, e a pressão sobre eles enquanto tentam fazer o seu trabalho e cuidar das suas famílias nunca estiveram presentes noutros locais onde trabalhei.
Também faltava morfina, e cetamina, que usamos muito na pediatria quando estamos repondo um osso, por exemplo. Ela proporciona amnésia, para que a criança não se lembre daquele como um evento traumático. Mas não havia cetamina quando estive no hospital.
Imagino que, emocionalmente, em um hospital, há uma necessidade de concentrar todos os recursos nas crianças, mas também sei que os médicos precisam de fazer o seu melhor para salvar toda a gente. Gostaria de saber como isso entra em vigor em uma situação como aquela da qual você fez parte.
Então, o cálculo para triagem meio que muda, certo? Estive em Houston durante o Katrina e também atendemos evacuados. Não quero comparar os dois, mas só estou dizendo que o próprio mecanismo de triagem muda de acordo com quem tem maior probabilidade de sobreviver, muda a forma de proceder com os feridos e como trataremos os pacientes. Penso que a tendência é certamente concentrarmo-nos nas crianças, mas neste contexto basicamente fazemos uma triagem num caos organizado, tentando calcular quem tem mais hipóteses de sobreviver. Dado que o abastecimento é tão limitado, queremos ter a certeza de que a nossa intervenção será o que chamamos de alto rendimento.
O que você quer dizer com alto rendimento?
Talvez exemplos concretos funcionem. Não há oxigênio portátil, então precisamos ter certeza de que o que estamos fornecendo será dado às pessoas com maior probabilidade de permanecerem vivas, e aos outros ofereceríamos cuidados paliativos de conforto – o que talvez não seria o usual, na saúde norte-americana, onde tentamos salvar todos. Mas aqui, se não tivermos os recursos, os medicamentos, o pessoal, então temos de fazer uma triagem de uma forma que dê prioridade às pessoas com maior probabilidade de sobreviver e de ter uma recuperação boa e sólida.
Quanto a falta de remédio ou de comida apareceu nas suas interações diárias ou no seu dia a dia em ambos os casos?
Sim, a falta de medicamentos, especialmente no final do meu período lá, revelou o quão profundamente devastados estavam o estoque médico e o sistema e a cadeia de abastecimento. Como mencionei, no final da nossa estadia não tínhamos morfina.
Você pode falar mais sobre suas interações com os profissionais de saúde de Gaza?
Acho que porque foram desenvolvidas relações graças ao MAP, conseguimos trabalhar ao lado deles e geramos uma confiança entre nós. Estávamos apoiados um ao outro, recebendo e dando ordens. No final, nos tratávamos pelo primeiro nome, contando com a experiência uns dos outros. Lá não havia torniquetes e, portanto, eles usavam cateteres de Foley. Essa foi uma inovação que aprendi lá. Eu era a única médica estadunidense lá, e os restantes eram britânicos, mas fomos muito bem-vindos. No Afeganistão, eu tinha as camadas complicadoras adicionais de ser mulher, americana e de origem paquistanesa, e foi muito mais difícil para mim integrar-me no sistema de saúde local.
Será que isto se deveu em parte à relação histórica entre o Paquistão e o Afeganistão?
Absolutamente. E também por eu ser mulher. Na verdade, senti que eles foram muito inteligentes em destinar as médicas mulheres na Palestina – em Gaza – quando se tratava de proporcionar privacidade e dignidade às gestantes e às novas mães.
Você deu algumas entrevistas desde que voltou. Que estratégias você usa para falar sobre o que está acontecendo e ao mesmo tempo lidar com o estresse emocional?
Você poderia esperar um minutinho enquanto me recomponho? Conto essas histórias para amplificar as vozes dos palestinos que não são divulgados, pois jornalistas estrangeiros não podem entrar em Gaza. Certamente isso me afeta. Tenho visto coisas horríveis ao longo da minha carreira, e os médicos não são bons em cuidar de si mesmos. Nem somos encorajados a isso pelos nossos conselhos. Existe um estigma e todo um mercado negro para médicos que procuram cuidados de saúde mental. Mas eu levo isso a sério.
Um dos caminhos que encontro para sair emocionalmente dessa bagunça completa é que tenho minha própria filha. Quando cheguei em casa, beijei cada pedacinho dela e fiquei ouvindo sua respiração por trinta minutos, toda noite. Quando trabalhei em cuidados paliativos com crianças com câncer, sentia o cheiro do cabelo dela. É uma forma de gratidão. Ela também ficou ferida na explosão em Beirute, então há um histórico de trauma e muita gratidão em torno disso. Mas não tenho uma resposta. Ainda estou aprendendo como gerenciar tudo isso.
O que direi é que me senti muito mais recompensada e produtiva em Gaza do que navegando num cenário político americano que pode não querer ouvir as minhas histórias. Isso é mais desanimador e angustiante em alguns aspectos.
Este tem sido um dos conflitos internacionais mais cobertos, mas o que há de diferente nele do que vemos nas notícias? Como sua perspectiva mudou?
Não há nada que pudesse ter me preparado para os horrores que vi. Acho que a falta de dignidade é intensa. Penso que todos os setores da sociedade foram afetados: escolas comunitárias, hospitais, alimentação e abrigo.
E se eu posso dar um exemplo de como isso se manifesta: um menino de sete anos teve lacerações profundas na perna e precisou de algumas suturas. Não era um caso de vida ou morte – era muito simples – mas o único analgésico que tínhamos era Motrin, que era francamente cruel. Não havia cetamina. Então tentei usar uma das minhas ferramentas pediátricas como distração. Eu tinha um pisca-pisca, mas ele não estava interessado em nenhum daqueles desenhos que coloquei na parede. Então tentei distraí-lo da dor. Normalmente, o que eu faria é fazer perguntas como: “Então, quem é seu melhor amigo?” Não posso perguntar isso, porque e se o melhor amigo dele estiver morto? “Qual a sua matéria favorita na escola?” Ele não vai à escola há três meses. “Qual sua comida favorita?” Não sei quando foi a última vez que ele comeu. Cada faceta de sua sociedade foi destruída.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O pesadelo de Gaza, aos olhos de uma pediatra. Entrevista com Seema Jilani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU