24 Janeiro 2024
"Como garantia dessa revisão de preceitos e valores internacionais, o Estado brasileiro, sob a presidência de Lula da Silva, expressou solidariedade aos árabes e apoio à iniciativa da África do Sul em 10 de janeiro de 2024, após uma reunião com o embaixador palestino em Brasília. No campo diplomático, essa decisão simplesmente decorre das perspectivas em mudança dos países revisionistas no sistema internacional e da proeminência do Brasil dentro desses países. No campo jurídico, esse apoio serviu para pressionar a Corte Internacional de Justiça a aceitar a reclamação da África do Sul. No campo político, o Brasil tomou partido em uma situação que não era necessariamente política, legal ou diplomática. Talvez tenha arriscado estabelecer seu lugar na história."
O comentário é de Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas” (Brazil Publishing, 2019)., em artigo publicado em Latinoamerica21, 22-01-2024.
O antigo ditado diz que "Não se deve brincar ou fazer piadas com o sofrimento alheio". Uma recomendação igualmente antiga afirma que "Para cada problema complexo, há uma solução simples e sempre equivocada". Um ensinamento transcendente afirma que "a paciência é irmã da prudência". E o mago das letras russas, Liev Tolstói, imortalizou a máxima de que "todas as famílias felizes são iguais, cada família infeliz é infeliz à sua maneira".
O que se seguiu ao infeliz evento de 7 de outubro de 2023 mobiliza todos os níveis dessas considerações, e qualquer posição tomada sem considerá-las como guia pode levar à imprudência.
O ataque do Hamas a civis desprotegidos e desarmados naquele "11 de setembro" israelense foi uma ação sem nome e não há desculpa para isso. Sempre foi muito difícil perdoar o imperdoável. E essa ação foi imperdoável. Mas o imperdoável não foi sem motivo. Pelo contrário: foi uma ação, por mais odiosa que possa ter sido, produto do acúmulo de ressentimento e ódio entre crentes, de um lado, e de uma família comum, em disputa pelo mesmo território.
De uma perspectiva de longo prazo, esses conflitos entre judeus e árabes remontam a momentos bíblicos em Gênesis. Mas foi durante o século XIX, sob o Império Otomano, por volta de 1870, que a questão sionista, que até hoje consome a paciência e a prudência desses habitantes do Oriente Médio, atingiu novos contornos. Judeus sefarditas, neste ponto do século XIX, conscientemente começaram a valorizar a língua hebraica como um elemento para revitalizar o nacionalismo judeu. E funcionou. Os anos seguintes viram um aumento nas demandas de afirmação, diferenciação e territorialização do povo judeu. E, finalmente, veio o Shoah para promover a comoção mundial que serviu de base para a justificação do Estado de Israel.
Em 1948, concomitantemente à criação do Estado de Israel, veio a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio.
A Solução Final dos nazistas estendeu a materialização das insanidades inauguradas na limpeza étnica praticada contra os armênios e continuada nas exterminações em massa perpetradas pelos estados comunistas durante o período de extremos entre 1914 e 1945. Essas ações foram longe demais. Era, portanto, necessário aprimorar a punição desses crimes incontestáveis.
Em 1929, a Convenção de Genebra visava proteger prisioneiros de guerra. Mas a Segunda Guerra Mundial apresentou desafios ainda maiores, definidos na punição de 1. crimes contra a paz; 2. crimes de guerra; e 3. crimes contra a humanidade. Todos esses crimes foram cometidos contra os judeus também. Daí a pressão pela criação do Estado de Israel. Mas a situação sempre foi mais complexa.
Os árabes, em todas as suas variações, reivindicam a mesma causa, as mesmas punições e o mesmo território. Por todas essas razões, após 1948, a tensão entre judeus e árabes aumentou. E os incidentes de 1956, 1967 e 1973 foram apenas exemplos de suas eternas discordâncias.
Os Acordos de Oslo de 1993 ofereceram a possibilidade de uma "paz tolerável". Mas o assassinato do primeiro-ministro Isaac Rabin dois anos depois pôs fim a toda esperança. Desde então, o conflito permanece sem solução e interminável.
O que vimos em 7 de outubro e depois, cruel como possa parecer, foi a continuação dessa trama. Mas desta vez com tons mais irritantes. Primeiro, devido à revisão do papel do Ocidente no mundo. Em seguida, pela tempestade perfeita causada pela pandemia de Covid-19 e pela nova fase de tensão russo-ucraniana. E, finalmente, a violência da contraofensiva israelense contra os árabes no rescaldo.
Assim, nos primeiros momentos após 7 de outubro, os países ocidentais que sempre apoiaram a existência do Estado de Israel condenaram ostensivamente as ações do Hamas, seguidos pelos outros países árabes. Países menos ocidentais e até antiocidentais nas Américas, África e Ásia hesitaram inicialmente, e alguns ignoraram a situação.
Voltando no tempo, as consequências de 11 de setembro de 2001 complicaram muito o relacionamento de todos, ocidentais ou não, com o mundo árabe. A Guerra ao Terror do presidente George W. Bush criou complexidades difíceis de superar. Quase de repente, em todos os lugares, ser árabe tornou-se sinônimo de ser um terrorista. O presidente Barack H. Obama tentou remediar essa impressão desastrosa, mas não teve sucesso. O relacionamento, especialmente entre ocidentais — incluindo israelenses — e árabes, só piorou.
Se isso não bastasse, 2009 coincidiu com o momento em que a crise financeira global de 2008 foi superada e, concomitantemente, com a afirmação dos países emergentes ancorados nos BRICS. Esses países, atuando como um bloco, passaram de um fórum de discussão para uma plataforma revisionista para o sistema internacional que surgiu em 1945. Essa intenção de revisão acelerou a mudança no consenso sobre o ambiente internacional — especialmente o consenso fabricado por europeus e americanos — e, com isso, o consenso sobre o Estado de Israel e as relações israelense-palestinas.
Foi contra esse novo pano de fundo que Israel recorreu ao seu "direito de autodefesa" e lançou uma contraofensiva implacável contra o Hamas e o mundo árabe em Gaza. Desde então, sob o pretexto de proteger a sobrevivência do povo judeu, as forças israelenses mataram mais de 23.000 árabes — a maioria civis e desarmados. Observando a gravidade da situação, os sul-africanos identificaram esse assassinato como uma "intenção de genocídio" e moveram um processo contra o Estado de Israel na Corte Internacional de Justiça, surpreendendo o mundo com sua inversão de valores. Deve-se notar que uma reclamação desse tipo seria impensável antes do surgimento de países revisionistas na cena internacional. Portanto, nesse cenário de valores revisados, a reclamação foi apresentada e aceita pela Corte. Novos tempos.
Como garantia dessa revisão de preceitos e valores internacionais, o Estado brasileiro, sob a presidência de Lula da Silva, expressou solidariedade aos árabes e apoio à iniciativa da África do Sul em 10 de janeiro de 2024, após uma reunião com o embaixador palestino em Brasília. No campo diplomático, essa decisão simplesmente decorre das perspectivas em mudança dos países revisionistas no sistema internacional e da proeminência do Brasil dentro desses países. No campo jurídico, esse apoio serviu para pressionar a Corte Internacional de Justiça a aceitar a reclamação da África do Sul. No campo político, o Brasil tomou partido em uma situação que não era necessariamente política, legal ou diplomática. Talvez tenha arriscado estabelecer seu lugar na história.
O Brasil careceu de paciência e prudência nesse jogo? O tempo dirá.
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O lugar do Brasil no processo judicial sul-africano contra Israel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU