04 Janeiro 2024
Aviso: Este artigo foi publicado online no dia 22 de dezembro em uma primeira versão. No dia seguinte tomou-se conhecimento da posição tomada pela Conferência Episcopal de Camarões, que decidiu proibir qualquer bênção a “casais homossexuais” na Igreja camaronesa. Desde então, esta posição se estendeu a outras igrejas africanas, mas também a países da Europa, como a Polônia. Ao mesmo tempo, outras conferências episcopais europeias tomavam posição a favor do texto. Portanto, aqui está uma segunda versão do artigo, atualizada por Golias Hebdo, que considera os últimos desdobramentos sobre a questão. Um texto inesperado.
O artigo é de René Poujol, jornalista francês, publicado por seu blog, 22-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma declaração publicada em 18 de dezembro no Vaticano agora abre aos ministros do culto católico “a possibilidade de abençoar casais em situação irregular e os casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente seu status ou modificar de alguma forma o ensinamento perene de Igreja sobre o casamento". Aqui está um texto que entende fundamentar teologicamente a escolha pastoral do Papa Francisco de manifestar o amor incondicional de Deus pelos seres humanos, mesmo que pecadores. Representa uma verdadeira virada na visão da Igreja sobre as pessoas e as situações. Com o risco de fazer vacilar uma concepção mais tradicional da pastoral, na qual o exercício da caridade permanece subordinado a uma exigência de verdade. Ao “vai e não peques mais” do Evangelho parece aqui substituir-se um “vão e cresçam no amor de Deus”. O clamor explodiu imediatamente!
A publicação daquele texto foi surpreendente, chegando justamente no período entre as duas sessões do Sínodo sobre sinodalidade. Poder-se-ia até pensar, evidentemente de forma equivocada, que o papa se absteria durante este período de qualquer decisão relativa a temas em debate. Poderá ser que ocorram outras entre agora e outubro de 2024, quando será realizada a segunda sessão plenária. Mas, em última análise, não é uma atitude tão diferente daquela de Paulo VI que estabelecia “a seu exclusivo critério” o Sínodo dos Bispos em setembro de 1965, mesmo antes de o Concílio ter eventualmente tido o tempo de dar outra cara à colegialidade que estava em discussão.
O texto aprovado pelo Papa Francisco oferece uma interessante reflexão sobre a polissemia da palavra bênção. Dependendo, por exemplo, se abençoe Deus pelos benefícios que nos oferece ou que se invoque a sua bênção sobre os seres humanos... “Redescobrimos o dom divino que 'desce', a ação de graças do homem que 'sobe' e a bênção dada pelo homem que 'se estende' aos seus semelhantes”. A Declaração faz uma segunda distinção fora desse contexto. “De um ponto de vista estritamente litúrgico, a bênção exige que o que é abençoado esteja em conformidade com a vontade do Deus conforme expresso nos ensinamentos da Igreja”. Ora, sabe-se que a Igreja considera único legitimo o casal heterossexual comprometido com e a partir de laços de um matrimônio sacramental indissolúvel. O que exclui tanto as pessoas divorciadas e recasadas, como os casais não casados e as uniões entre pessoas do mesmo sexo, todas consideradas “em situação irregular”.
Além disso, sublinha o texto, o Papa Francisco, nas suas respostas aos cardeais que formularam algumas “dubia” (dúvidas) sobre o seu ensinamento sobre esses temas, havia ressaltado que o pedido de bênção, independentemente da situação das pessoas que o formulam, tinha que ser interpretado “como um pedido de ajuda dirigido a Deus” ao qual não se pode responder com uma recusa. E advertia os homens da Igreja contra a tentação de "constituírem-se como juízes que só recusam, rejeitam, excluem”.
“No horizonte aqui delineado, especifica o texto, coloca-se a possibilidade de bênçãos a casais em situações irregulares e a casais do mesmo sexo, cuja forma não deve encontrar nenhuma fixação ritual pelas autoridades eclesiais, a fim de não produzir nenhuma confusão com a bênção própria do sacramento do matrimônio. Nesses casos, uma bênção é dada que não só tem um valor ascendente, mas que é também a invocação de uma bênção descendente do próprio Deus sobre aqueles que, reconhecendo-se desamparados e necessitados da sua ajuda, não reivindicam a legitimação do seu próprio status, mas rogam que tudo o que há de verdadeiro, de bom e de humanamente válido está presente na sua vida e relação seja investido, santificado e elevado pela presença do Espírito Santo”. Essa bênção exclui, portanto, qualquer ritual específico que pareceria institui-la sob a forma de celebração, deixando campo livre ao ministro ordenado que a pronúncia e que deverá, no futuro, ser formado nesse tipo de atitude pastoral. Ela deve obrigatoriamente situar-se fora de todo contexto de união civil, mas pode encontrar o seu próprio espaço num contexto privado: um encontro com um padre, uma visita a um santuário ou uma peregrinação.
O texto é, portanto, perfeitamente claro quanto às suas intenções: não se trata de forma alguma de legitimar situações “não conformes” com o ensinamento da Igreja, mas de não excluir ninguém do amor incondicional de Deus. E o texto recorda essa passagem da Evangelii Gaudium (n° 44) em que o Papa Francisco declarava já em 2013: “Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades".
Essa Declaração não é, portanto, uma abertura a um qualquer casamento religioso para os homossexuais. O que desagradará alguns. Mas ainda assim é uma evolução significativa de parte da Igreja. Até agora, o discurso oficial era que as pessoas homossexuais poderiam ser abençoadas individualmente, ou eventualmente uma ou outra de um mesmo casal, não era possível abençoar o casal que constituíam juntas, julgado moralmente ilegítimo. Nós lembramos até que o termo casal era proibido por certos documentos da Igreja diretamente inspirados pelo padre e psicanalista Tony Anatrella.
O termo “casal” deveria, segundo ele, ser reservado apenas aos heterossexuais. Portanto, para os homossexuais solicitava-se falar em “par” ou “dupla”. Pode-se, portanto, apenas alegrar-se que a Igreja finalmente tenha percebido o impasse escandaloso e de desprezo a que levavam aquelas palavras e aqueles raciocínios. O fato de agora tomar ato, como a sociedade civil, da existência diferenciada de casais heterossexuais e homossexuais, ainda que pense em não poder conferir-lhes o mesmo valor, constitui um verdadeiro progresso, uma tomada em consideração da dignidade das pessoas, que nada tem a ver com qualquer rendição às ideias e ao espírito do tempo.
É uma segunda evolução trazida por esse texto, ainda mais significativa. Notar-se-á que o texto não sujeita essa bênção dos casais “em situação irregular ou do mesmo sexo” a nenhuma condição preliminar. Trata-se de uma bênção incondicional. “Quando as pessoas invocam uma bênção não deveria ser posta uma exaustiva análise moral como pré-condição para poder conferi-la. Não se deve exigir delas perfeição moral prévia." Não poderia ser mais claro. Essa posição será ainda mais criticada em certos círculos da Igreja, pois parece ir além da própria prática de Jesus no Evangelho que subordina sempre o seu perdão – mas aqui não se trata de perdão, mas de bênção – ao “vá e não peques mais”. Pode-se entender o porquê. Essa injunção é hoje muito simplesmente humanamente inadmissível pelas pessoas que se encontram nas citadas situações.
“Não peques mais” dirigido a uma pessoa divorciada recasada significa, no atual ensinamento de magistério separar-se definitivamente do cônjuge porque a união em que se encontra empenhada, considerada adultério, constitui aos olhos da Igreja um estado de "pecado permanente". Mesmo que no que diz respeito a eles, naquele casamento que se segue a um fracasso, seja possível testemunhar a total conformidade da sua vida com o ensinamento da Igreja. Esse texto, após a Amoris Laetitia, que já lhes abria a possibilidade de acesso aos sacramentos, parece de fato questionar o próprio conceito de situação de pecado [1].
“Não peques mais”, para um casal homossexual, significa, sempre no estado atual do ensinamento do magistério: comprometa-se a viver para sempre na continência. O que é percebido, pela maioria dos casais homossexuais, como uma exigência totalmente irrealista. Aqui também, se o ato homossexual permanece aos olhos da Igreja um pecado a ser confessado, o fato de viver como casal homossexual eventualmente ativo não parece mais assimilado a um estado de pecado permanente, que seria um obstáculo para o recebimento de uma bênção. É em si uma forma de revolução. Mas é possível que essa interpretação “otimista” seja rejeitada por alguns como não pertinente [2].
O temor de alguns de que a abertura pastoral se torne um questionamento doutrinário... Tudo isso não escapou aos detratores do Papa Francisco contrários às suas “audácias pastorais”. Sempre com o mesmo argumento: não haveria verdadeira caridade sem respeito pela Verdade que sustenta a indissolubilidade do casamento e a proibição das relações homossexuais. Sempre com o mesmo temor, justificado a meu ver, de que a abertura pastoral acabe por incidir sobre a doutrina. Nisso existe uma evidência, especialmente no que diz respeito ao ensinamento da Igreja sobre a sexualidade que se baseia numa leitura, hoje questionada por vários teólogos, do relato do Gênesis.
Que o “plano de Deus” para homens e mulheres seja apresentado a partir do “casal primordial” mítico de Adão e Eva, como um projeto que oferece como única alternativa o casamento heterossexual monogâmico ou a continência, não é mais “recebido” pelos crentes. Porque a própria experiência de sua vida, na fé, fez com que percebessem outra leitura da mensagem evangélica. Isso explica em parte a crise que a Igreja atravessa nos países de antiga cristandade.
A segunda razão para a rejeição da Declaração em certos ambientes católicos provém do seu próprio estatuto, especificado com toda a honestidade pelo Cardeal Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, na sua apresentação. Fernández escreve: “Dado que a Cúria Romana é em primeiro lugar um instrumento de serviço para o sucessor de Pedro" (Const. Ap. Praedicate Evangelium, II, 1), o nosso trabalho deve favorecer, juntamente com a compreensão da doutrina perene da Igreja, a recepção do ensinamento do Santo Padre". É isso que, para alguns, é inadmissível. Essa maneira de proceder “ascendente” está agora no âmago do Sínodo sobre a sinodalidade: estar na escuta das expectativas do Povo de Deus - aqui o pedido de bênção - e discernir sobre a sua compatibilidade com a fé recebido dos Apóstolos. É esse discernimento que o Papa Francisco opera aqui.
No espaço de poucos dias, a declaração Fiducia supplicans provocou um verdadeiro clamor de certos episcopados. É o caso da Polônia e da Hungria, mas sobretudo na Áfricas diferentes conferências episcopais decidiram proibir a sua aplicação: Camarões, Gana, Nigéria, Malawi, RD Congo, Togo, Zâmbia e Ruanda onde o Cardeal Arcebispo de Kinshasa, membro da Conselho de Cardeais próximo ao Papa Francisco e presidente do Simpósio das Conferências episcopais da África e do Madagáscar convida todo o continente à desobediência.
Uma desobediência ainda mais ambígua porque o texto do Vaticano não pede nenhuma obrigação de abençoar os casais em situação irregular, mas simplesmente abre a possibilidade pastoral de o fazer.
É possível se preocupar com essa rebelião e ver nela um risco para a unidade da Igreja e um enfraquecimento da autoridade do papa, ou expressar a hipótese de que aqui já estaríamos, no final, no pós-sínodo sobre a sinodalidade, no qual seria oferecido às Igrejas continentais ou a certas Conferências Episcopais a liberdade de decidir no que lhes diz respeito a esses tipos de questões pastorais estreitamente relacionadas às "culturas" locais, mesmo no caso que fossem contrárias a uma certa concepção dos direitos humanos [3]. Isso não significa que o Papa não encontre confirmação da validade do seu percurso sinodal de busca de autonomia dos episcopados... às vezes contestada por aqueles mesmos bispos que agora aqui a reivindicam.
No lado oposto daqueles “objetores de consciência”, alguns episcopados pronunciaram-se abertamente a favor da implementação da Fiducia supplicans. É o caso da Conferência Episcopal alemã, em extensão do seu caminho sinodal; considerando que o texto “está plenamente em sintonia com o desejo dos bispos”. Por enquanto há o mais total silêncio por parte da Conferência Episcopal francesa. E é pouco provável que saia desse silêncio. Um novo testemunho das diferenças de sensibilidades episcopais que impedem qualquer consenso e remetem cada bispo à sua própria liberdade de fazer ou não fazer, falar ou calar [4]. E deixam os casais que pedem bênção na incerteza sobre o acolhimento que será dado localmente ao seu pedido.
A iniciativa positiva, desse texto também pode ser lida à luz dessa reflexão do padre Antoine Guggenheim que muitos compartilharão: “A Igreja não pode contentar-se com uma pastoral da misericórdia individual sem realizar um trabalho de enraizamento e de renovação da antropologia cristã" [5]. Esse será o limite, reivindicado por ele, do pontificado do papa Francisco: oferecer toda a abertura pastoral possível sem tocar em nada a doutrina. O que, evidentemente, é um beco sem saída. E presságio, considerando as críticas e as rejeições atuais, de um “após Francisco" ainda mais vertiginoso e incerto para a unidade da Igreja.
[1] Em um de meus livros relatei o testemunho de um amigo que havia se casado com uma mulher divorciada com quem teve um filho e a quem foi recusado a absolvição por um padre que o havia convidado a se separar da mulher com a qual vivia “em estado de pecado permanente”.
[2] Não muito tempo atrás, um homossexual que vivia como casal não havia sido recebido como catecúmeno na diocese de Paris, a menos que se comprometesse solenemente à continência, visto que era considerado, como os divorciados recasados, em situação de pecado permanente.
[3] Um total de 32 países africanos criminalizam a homossexualidade, muitas vezes com o apoio da Igreja.
[4] Pode-se ler a longa nota de Dom Aillet, bispo de Bayonne, sem surpresa e com interesse, cuja argumentação será certamente retomada por muitos bispos reticentes ao passo à frente pastoral do Papa Francisco. Ele pede aos seus padres que se atenham ao acolhimento incondicional e à bênção das pessoas, mas não do casal que elas constituem, não conforme ao plano de Deus.
[5] Antoine Guggenheim, na obra coletiva Synode sur la vocation e la mission de la famille, Bayard 2015.
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Homossexuais, divorciados-recasados: uma bênção oferecida a todos. Artigo de René Poujol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU