23 Março 2021
O Papa Bergoglio não é um reformador, mas sim um homem de compaixão. Alguns vão pensar que já é alguma coisa. Só que o velho ditado “para todo pecado, misericórdia”, referindo-se à situação atual, esbarra em um verdadeiro muro.
A análise é do jornalista francês René Poujol, ex-chefe de redação da revista Pèlerin, em artigo publicado em seu sítio pessoal, 18-03-2021. A tradução da versão italiana é de Moisés Sbardelotto.
Ao rejeitar em bloco qualquer forma de homossexualidade ativa, a Igreja se condena a não permitir nenhum discernimento moral.
Em um documento datado de 22 de fevereiro, a Congregação para a Doutrina da Fé confirma a proibição aos padres católicos de “abençoar” (fora do matrimônio, também ele proibido) simples uniões homossexuais.
Evidentemente, isso reavivou a polêmica. As pessoas mais favoráveis ao Papa Francisco veem nisso mais um obstáculo posto pela Cúria à sua vontade emancipatória. Podemos discutir sobre isso, já que a atitude do papa sobre a questão está sujeita a variações...
Em todo o caso, esse “non possumus” (não nos é permitido...) que não parecia tão urgente constitui um obstáculo objetivo à pastoral da “acolhida incondicional” que o magistério defende alhures. Ele ilustra com particular evidência o fosso de incompreensão já antigo entre a sociedade e a Igreja. Permanecendo fixada em uma certa leitura das Escrituras, a Igreja interdita a si mesma uma palavra realmente libertadora.
O texto é curto. Cada um pode lê-lo no site do Vaticano [aqui]. É inútil se deter mais nisso. A argumentação é sempre a mesma: toda prática da sexualidade humana é ilícita “fora do matrimônio (ou seja, fora da união indissolúvel de um homem e uma mulher, aberta por si à transmissão da vida), como é o caso das uniões entre pessoas do mesmo sexo”.
Nada de novo, portanto, exceto que as palavras do Papa Francisco “quem sou eu para julgar...?”, seguidas pelo acesso aos sacramentos previsto pela Amoris laetitia e, depois, por declarações favoráveis a um status de união civil para os casais do mesmo sexo podiam dar a entender uma abertura que aqui se fecha. Aparentemente com o seu consentimento, pois se especifica que esse texto recebeu o seu aval. Quem puder entender, entenda.
É mais um exemplo do fato de que o Papa Bergoglio não é um reformador, mas sim um homem de compaixão. Alguns vão pensar que já é alguma coisa. Só que o velho ditado “para todo pecado, misericórdia”, referindo-se à situação atual, esbarra em um verdadeiro muro.
Aos olhos do magistério, há pecados que não são mais percebidos como tais pelos fiéis, não por enfraquecimento do senso moral, mas por “intuição” de uma contradição com aquilo que eles compreendem dos Evangelhos.
No fundo, o impasse sobre as questões da sexualidade – da qual a homossexualidade é apenas uma expressão entre muitas – decorre do fato de que a Igreja continua, oportuna e inoportunamente, extraindo de uma certa exegese bíblica proibições que ela se recusa a pôr novamente em discussão, e muito menos a reexaminar, enquanto muitos fiéis, partindo do concreto da sua existência e desejosos de viver em conformidade com a sua consciência e a sua fé, interrogam esses mesmos textos. Como em ressonância a este ensinamento do Pe. François Varillon: “Uma consciência concreta, real, viva nunca parte das origens, mas remonta a partir daquilo que vive concretamente no seu presente” [1].
Às vésperas do Sínodo sobre a Família de 2015, o biblista e teólogo belga André Wénin escreveu: “Quando os textos magisteriais se baseiam nas Escrituras, geralmente eles ignoram a exegese proposta pelos especialistas, preferindo uma hermenêutica que torne o texto compatível com o ensinamento ao qual se busca dar um fundamento”.
Na mesma obra, podiam-se ler estas outras duas reflexões em relação direta com o tema de que estamos tratando: “A Igreja não pode se satisfazer com uma pastoral da misericórdia individual sem fazer um trabalho de enraizamento e de renovação da antropologia cristã” (Pe. Antoine Guggenheim), e esta última do teólogo Alain Thomasset, professor no Centro Sèvres: “A separação entre doutrina e pastoral é impossível de manter. (...) O anúncio da fé de maneira adequada às circunstâncias do tempo (...) não pode deixar de refletir sobre a compreensão da própria doutrina. É preciso pensar essa reflexão normativa como um processo histórico sempre em movimento” [2].
Tudo está dito! Mas tudo está dito igualmente sobre a impotência dos teólogos de influenciar a evolução do magistério.
Eu não sou nem biblista, nem teólogo, nem psicanalista, nem antropólogo... e não gostaria de fazer conexões contestáveis. Mas, no fim, é preciso arriscar uma palavra... livre!
Se existe uma proibição bíblica, ela diz respeito à homossexualidade ou eventualmente à sodomia? E, seja qual for a resposta a respeito desta última, onde encontrar uma justificativa para a recusa a abençoar os homossexuais, mesmo em casal, que desejam contar com a ajuda de Deus?
Entre as pessoas que me são próximas, há muitos casais homossexuais, na sua maioria cristãos, estáveis, amorosos, fiéis, generosos. E eu realmente não acho que posso ir lhes explicar que eles devem se limitar a testemunhar o seu amor apenas com palavras.
A referência constante do magistério a um suposto “plano de Deus” que lhes condenaria – para a sua santificação – a uma continência perpétua me joga alternadamente na consternação, na incredulidade e na ira. Lendo a assinatura do cardeal Ladaria no fim da Nota da Congregação para a Doutrina da Fé, pensei novamente nesta frase da poeta Marie Noël: “Esse teólogo se expressa como um velho servo fiel que conhece a Deus desde pequeno e o ajuda todas as manhãs a se vestir de dogmas” [3].
Depois de menos de 48 horas, levantaram-se as vozes dos bispos na Suíça, na Alemanha, na Áustria, na Bélgica [4], nos Estados Unidos, na Austrália, para expressar a sua incompreensão e a sua decisão de não levar em consideração a proibição.
Na Alemanha, em pleno Sínodo, parece que um abaixo-assinado já recebeu a assinatura de mais de 1.000 padres “objetores”. Na França, associações de homossexuais cristãos reagem ao texto romano; nas redes sociais, padres testemunham o impasse pastoral em que esse texto os coloca e o desgosto de certos homossexuais que eles acompanham, tentados a abandonar definitivamente uma Igreja cuja hipocrisia e desprezo eles já não suportam.
Em suma, uma decisão cuja seiva evangélica nós procuramos em vão e que enfraquece o magistério que pretende fortalecer.
[1] François Varillon. Joie de croire, joie de vivre. Ed Centurion, 1981.
[2] Synode sur la vocation et la mission de la famille. Ed. Bayard, 2015, pp. 52, 142, 212-213.
[3] Marie Noël. Notes Intimes. Ed Stock, 1984, p. 130.
[4] Em um artigo aprovado pela Conferência Episcopal Belga, Dom Johan Bonny explica como esse texto está em contradição com os trabalhos do Sínodo sobre a Família do qual ele participou.
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Igreja e homossexualidade: a desobediência em marcha. Artigo de René Poujol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU