30 Novembro 2023
"Sem uma mudança de paradigma, sem reconciliação com a natureza, porém, é difícil imaginar como poder arrefecer a ebulição global. O tempo está se esgotando e é dever dos presentes na COP28 utilizá-lo com sabedoria"
O alerta é de Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (editora Giunti e Slow Food), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre ecologia integral e o destino do planeta, em artigo publicado por La Stampa, 29-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A 28ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP28), que começa em Dubai, inicia numa atmosfera pouco confortante. A ausência de Biden e Xi Jinping é um sintoma de um progressivo desinteresse? E a desistência de última hora do Papa Francisco por doença enfraquecerá a cúpula?
Pelo segundo ano consecutivo, justamente quando a crise climática se manifesta de forma aguda e generalizada, a COP será realizada num país, os Emirados Árabes Unidos, com um espaço cívico fechado, onde o dissenso e a defesa dos direitos humanos pode levar ao encarceramento. Em cúpulas multilaterais desse tipo, é fundamental a presença da sociedade civil que se mobiliza para pedir maiores empenhos. E é ainda mais verdade agora que é certo que 2023 será o ano mais quente jamais observado: em novembro ultrapassamos pela primeira vez o aumento de 2°C na temperatura média global com base diária.
Guterres, Secretário-Geral da ONU, não exagera, portanto, quando afirma que a era do aquecimento global acabou e que a era da ebulição chegou. Os tons são menos dramáticos, mas a conclusão a que chega o sexto relatório de avaliação do IPCC, o relatório científico mais respeitado sobre as mudanças climáticas, é a mesma: temos de agir urgentemente. Ainda está dentro das nossas possibilidades limitar o aumento da temperatura a 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais, conforme assinado por 195 países no Acordo de Paris de 2015. Menciono o acordo porque os resultados daquele acordo serão analisados durante a reunião da COP28. Já sabemos que os progressos realizados são insuficientes. A governança global presente na cúpula será capaz de fornecer soluções concretas e ambiciosas que permitam à humanidade voltar aos trilhos na redução das emissões? Esse é o verdadeiro feedback que estamos esperando.
No meio do desconforto há uma nota positiva: depois da COP27 ter criado pela primeira vez um pavilhão para o alimento, este ano a transformação dos sistemas alimentares está entre as prioridades da agenda da cúpula. O dia de 10 de dezembro será dedicado à alimentação, agricultura e água com numerosos eventos temáticos e um encontro institucional de alto nível. Ao mesmo tempo, os Emirados Árabes Unidos estão elaborando uma declaração sobre agricultura sustentável, sistemas alimentares resilientes e ação climática. Por outro lado, os sistemas alimentares como um todo – produção, transformação, transporte e consumo - são responsáveis por 35% das emissões de gases com efeito de estufa. Desconsiderá-los ou tratá-los parcialmente, foi uma grave falha.
Falo isso também porque os sistemas alimentares têm a peculiaridade de ser uma espécie de Jano de duas faces; ao mesmo tempo algozes e vítimas da mudança climática. Devido ao aquecimento, da mudança nas precipitações, do aumento da frequência e intensidade de eventos extremos, a crise climática está de fato impactando negativamente sobre a segurança alimentar e hídrica de milhares de comunidades em todo o mundo (especialmente as mais vulneráveis que historicamente contribuíram menos para causá-las). As consequências estão relacionadas a uma menor disponibilidade de alimentos, qualidade inferior da dieta e a um aumento de doenças ligadas à nutrição.
A positividade dada pela relevância que a alimentação terá, no entanto, deve ser acompanhada por cautela e por um monitoramento cuidadoso dos conteúdos que farão ou não parte do debate. Cito o mais incômodo: não se pode pensar em transformar os sistemas alimentares sem enfrentar as raízes da atual insustentabilidade. Chegou a hora de abandonar o modelo agroindustrial que tem dominado nos últimos 50 anos, causando perda de biodiversidade, desmatamento, degradação e contaminação do solo e da água.
Um sistema que em nome da produtividade patenteou sementes e impôs aos agricultores plantá-las em grandes extensões de monoculturas, privando-os assim das suas soberania alimentar, que legitimou o desperdício alimentar como variável fisiológica do sistema, e que criou um binômio quase indissolúvel entre produção de alimentos e consumo de fontes fósseis; agora utilizadas em todas as fases da cadeia de abastecimento: desde a fabricação de fertilizantes e agrotóxicos, passando pelas embalagens plásticas, transporte, sem esquecer a produção de alimento propriamente dita.
Estima-se que os sistemas alimentares sejam responsáveis por pelo menos 15% dos combustíveis fósseis queimados. Nesse sentido, a transição energética para fontes renováveis é condição necessária para a transição dos sistemas alimentares. O fato de o presidente da COP28, Sultan Ahmed al Jaber, ser também o presidente da 11ª maior empresa produtora de petróleo e gás do mundo, não é um bom presságio. Assim como a ausência no programa da agroecologia; prática reconhecida pela FAO, pelo IPCC e por múltiplos movimentos pela contribuição positiva que a sua adoção tem na saúde do planeta e das pessoas. Em vez disso, encontram amplo espaço inovações tecnológicas como a agricultura climate smart, a carne sintética, a aplicação da inteligência artificial ao setor agroalimentar, etc., que não colocam em discussão o modelo linear, industrial e extrativista.
Sem uma mudança de paradigma, sem reconciliação com a natureza, porém, é difícil imaginar como poder arrefecer a ebulição global. O tempo está se esgotando e é dever dos presentes na COP28 utilizá-lo com sabedoria.
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Se quisermos salvar a Terra temos que mudar de menu. Artigo de Carlo Petrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU