13 Abril 2023
“Estamos em um momento de encruzilhada do sistema alimentar global. Embora possa parecer que dispomos da maior quantidade de alimentos da história, sua produção gera graves problemas ambientais e socioculturais, além de promover dietas não saudáveis e a concentração de poder em poucos atores. Requer-se encarar urgentemente processos de transição para sistemas alimentares mais sustentáveis, justos, inclusivos e variados”, escrevem Mariela Bianco e Miguel Sierra, ambos do núcleo interdisciplinar Ciência, Tecnologia e Inovação para um Novo Desenvolvimento, da Universidade da República, Uruguai, em artigo publicado por La Diaria, 12-04-2023. A tradução é do Cepat.
Na literatura científica, há pelo menos uma década, acumulam-se advertências de que a produção agroalimentar mundial está em uma encruzilhada. As formas predominantes de produção de alimentos consomem aceleradamente os recursos naturais do planeta e geram poluentes a um ritmo muito superior ao que a natureza necessita para processá-los.
Para a produção agroalimentar, inúmeros ecossistemas no mundo se transformaram em milhões de hectares dedicados à produção agrícola e pecuária, o que, por sua vez, provocou uma redução substancial no número e na variedade de espécies (animais e vegetais), alterando os ciclos naturais de nutrientes do solo, como, por exemplo, o nitrogênio e o fósforo, e aumentando exponencialmente as emissões de gases do efeito estufa.
É verdade que, paralelamente, a quantidade total de alimentos disponíveis na forma de calorias e proteínas de baixo custo aumentou…. ainda que, tristemente, isto não foi acompanhado pelo acesso equitativo, já que a fome crônica por déficit de calorias atinge mais de 800 milhões de pessoas.
Ironicamente, outro número semelhante sofre obesidade e doenças crônicas devido a dietas hipercalóricas e baixo consumo de frutas e verduras frescas, além do desperdício de alimentos consumíveis só porque suas características não são homogêneas ou atrativas nas gôndolas comerciais. Em poucas palavras, caminhamos mal como humanidade e manter essa situação não só parece inviável e ineficiente, como também pouco ético.
Há tempo, também sabemos que a concentração empresarial no setor de alimentos é intensa. Pouquíssimas grandes corporações, que operam de forma intercontinental, controlam grandes porções do comércio mundial de cereais, de insumos químicos e maquinaria para a agricultura, de sementes comerciais, bem como da propriedade de frigoríficos e instalações embaladoras de carne bovina e suína.
Soma-se a isso a conjunção de lógicas comerciais que tornam a gestão de ativos na agricultura e o processamento de alimentos uma opção atraente para a especulação financeira nos sistemas alimentares em todo o mundo. É que vários agroalimentos adquirem o status de commodities, ou seja, são comercializados como matérias-primas para elaborar bens consumíveis e, por seu valor, são utilizados para operar na bolsa mercantil de Chicago e, assim, realizar especulações financeiras.
Em suma, a dependência da alimentação mundial em poucas mãos é alta e a sua vulnerabilidade também, posto que a alimentação está perigosamente ligada às finanças. O diagrama que acompanha este artigo ilustra a concentração de empresas em setores específicos do sistema agroalimentar global, retirado do livro Barones de la alimentación 2022, do Grupo ETC.
Diversos especialistas consideram que o sistema alimentar global se comporta como um sistema complexo. Sem pretender demonstrá-lo neste artigo, ousamos dizer que isso significa algo mais ou menos assim: o sistema alimentar é uma rede auto-organizada integrada por componentes que, por mais simples que sejam, quando se juntam se comportam de forma complexa.
Observe que complexo não é o mesmo que complicado (este adjetivo se refere a algo intrincado, difícil de resolver, mas que eventualmente pode ser separado em partes para sua compreensão e abordagem, ao passo que complexo é algo que resulta da convergência de vários elementos que se inter-relacionam, com um comportamento dinâmico e frequentemente pouco previsível).
A ação humana, tentando resolver problemas, pode acidentalmente criar comportamentos repentinos, espontâneos no sistema, que eventualmente o modificam e produzem resultados contrários aos buscados. A conexão global dessa rede é alta, afeta a resiliência de suas partes, ou seja, a capacidade de abrandar o efeito dos golpes que possam ocorrer em outras partes do sistema.
Quando os vínculos são muito fortes, um colapso em qualquer parte do sistema se espalhará perigosamente para o resto. A relativa autonomia das partes, por oposição, irá torná-lo menos vulnerável, conferindo maior capacidade de recuperação e adaptação do todo face a eventos imprevistos com efeito negativo.
Como vimos antes, o sistema agroalimentar tem alcance planetário e está globalmente conectado por meio da produção de matérias-primas e insumos, processamento e transformação de alimentos, circulação e comércio. Essas conexões potencializam a vulnerabilidade do sistema, na medida em que as articulações entre corporações agroindustriais, financeiras e tecnológicas diminuem a capacidade de reação a colapsos setoriais que podem ser globalmente contagiosos.
A concentração empresarial e a interconexão entre setores possibilitam que o poder no mercado se traduza em influência política para intervir em regulamentações e acordos comerciais internacionais. A vinculação financeira da indústria de alimentos faz com que investidores fomentem a integração, garantindo que o poder de mercado que possuem em um componente do sistema potencialize seu poder de mercado em outro, por exemplo, do processamento de alimentos ao varejo de alimentos. Hiperconectados de um lado ao outro do mundo, também para os riscos.
Assim, em nível planetário, as problemáticas de um sistema agroalimentar se sobrepõem e para enfrentá-las são necessárias profundas transformações que permitam transições para sistemas de produção, comercialização e consumo de alimentos alternativos ao atual. Se o sistema alimentar se comporta como um sistema complexo, como apontam muitos pesquisadores de diferentes partes do globo, a partir do Uruguai e desta região do planeta temos o desafio de contribuir para gerar uma maior diversidade de trajetórias produtivas, comerciais e financeiras.
Trata-se de ir contra a corrente de tudo o que descrevemos até agora, porque diversificar para ajudar a construir sistemas alimentares menos uniformes reduz os riscos de vulnerabilidade a pressões e choques ambientais, econômicos e políticos. A alimentação é muito importante para colocar todos os ovos em uma mesma cesta e deixá-la à mercê de poucos grupos empresariais e financeiros.
As transições para agriculturas sustentáveis surgem como as luzes ao final deste túnel. Contudo, quais são as possibilidades das transformações no marco de sistemas complexos que estão aninhados entre si?
Uma ideia adotada por vários centros internacionais de pesquisa agrícola é a da intensificação sustentável, um enfoque orientado a sustentar o aumento da produção de alimentos e reduzir seu impacto ambiental por meio do uso eficiente e racional de insumos. Articula-se em torno de inovações incrementais para reduzir a pegada ecológica e mudar gradualmente algumas práticas de forma que colaborem na diminuição dos efeitos da mudança climática. Seu foco está na produtividade e rentabilidade, mas com uma desaceleração do dano ao meio ambiente por meio, por exemplo, de regulamentações estatais para restringir algumas atividades e promover inovações para fomentar boas práticas.
Assim, as recomendações incluem mudar a genética das sementes para potencializar seu rendimento e, ao mesmo tempo, reduzir a demanda de terras para cultivos; usar produtos fertilizantes e pesticidas em quantidades e condições adequadas para evitar o empobrecimento do solo, bem como a poluição da água e os efeitos sobre a saúde humana e animal; melhorar a tecnologia de irrigação para reduzir o uso de água; rotacionar culturas entre as estações para reduzir a probabilidade do surgimento de pragas, entre outras.
No entanto, dado que o sistema agroalimentar é aquele que caricaturamos acima com uma grande imbricação entre a agricultura de tipo industrial e mercados financeiros, a eficiência produtiva se centrou sobretudo nas principais commodities que são utilizadas para a alimentação de animais e para as matérias-primas que movem a indústria de alimentos processados e ultraprocessados. Produtos assim, elaborados a partir de insumos de origem animal, farinhas, açúcar, sal e gorduras, por sua vez, padronizaram e simplificaram as dietas em nível mundial, o que segundo Patrícia Aguirre, autora de Una historia social de la comida, “levou a existir, pela primeira vez na história, gordos pobres e magros ricos”.
Simultaneamente, surge a intensificação ecológica e se fortalece a agroecologia como modelos alternativos que promovem a produção de agroalimentos, aplicando conhecimentos ecológicos e reduzindo ao máximo a dependência de insumos de origem industrial e, às vezes, também o trabalho humano, a partir de processos ecológicos. Com esse selo, desdobram-se trajetórias contextualizadas, que tomam como base princípios ecológicos como a diversidade, a redução de desperdícios e poluição por meio da reciclagem de nutrientes, o intercâmbio e a cocriação de conhecimento entre atores.
Muitas experiências em diversos territórios dão conta desses caminhos alternativos que focam o cuidado das diferentes formas de vida e a interação entre diferentes formas de conhecimento como pilares da produção de agroalimentos. Essas perspectivas enfatizam o enfoque sistêmico das produções e a integralidade da agricultura, aumentando sua resiliência a fenômenos como secas ou inundações e melhorando o bem-estar e a subsistência, tanto de quem produz alimentos quanto de quem os consome. Não obstante, para o habitante médio da cidade montevideana, esta realidade ainda é bastante desconhecida.
Uma agenda de transformação do sistema agroalimentar para abordar as diversas dimensões que os problemas comentados suscitam exigiria fomentar múltiplos caminhos para construir sistemas mais resilientes e menos complexos. Entre tantas leituras e preocupações que motivaram a escrita deste artigo, verificamos que o marco das 4D, proposto por pesquisadores do Instituto de Estudos do Desenvolvimento, da Universidade de Sussex, no Reino Unido, identifica eixos interessantes para pensar coletiva e interdisciplinarmente as possíveis mudanças a partir deste lugar do mundo.
Este marco analisa a direção, diversidade, distribuição e democracia dos sistemas como eixos-chave para dirimir como mudar para alternativas mais sustentáveis e equitativas. Tomamos diretamente de seus autores, em uma tradução mais ou menos livre do original em inglês (Leach et al., 2020), algumas questões e reflexões para propor aos leitores interessados nos sistemas agroalimentares.
1. Em que direções estão orientados os sistemas agroalimentares? Que objetivos, valores, interesses, relações de poder estão sendo estimulados? Como poderiam ser reorientados?
Se tomarmos como exemplo a política agroalimentar internacional, fica claro que se encontra amplamente orientada para uma política de segurança alimentar producionista que enfatiza as soluções técnicas para problemas que possuem uma base política, como a mudança climática, a fome e formas mais amplas de desigualdade no sistema alimentar.
Mais recentemente, a crise climática forçou a abordagem de aspectos de sustentabilidade, mas rapidamente o discurso ambiental é cooptado em um impulso em prol de uma agricultura cada vez mais eficiente, devolvendo-nos uma forma modificada de producionismo que ainda não conseguiu incorporar a equidade nas políticas agroalimentares.
2. Existe diversidade suficiente de caminhos? Há trajetórias suficientemente diversas para resistir a processos de bloqueio, construir resiliência diante da incerteza e responder a uma variedade de contextos e valores?
A persistência do discurso sobre a necessidade de aumentar a produção e os rendimentos, durante décadas, permeou muitas organizações internacionais e governos nacionais. Alguns enfoques alternativos promissores começaram a influenciar nas opiniões de indivíduos e grupos dentro das principais organizações e fóruns, incluindo os enfoques agroecológicos, socioecológicos e outros sistêmicos.
A diversidade do atual sistema alimentar é simples: maior disponibilidade de alimentos frescos ricos em nutrientes para quem pode pagar e mais alimentos processados e baratos para quem não pode. Isso é impulsionado por interesses de grande escala do setor privado, mas também por políticas nacionais que promovem a produção de alimentos básicos, em vez de alimentos ricos em micronutrientes.
3. Quais são as implicações em termos de distribuição? Quem ganha ou perde com as trajetórias atuais e outras possíveis? Como escolher entre diferentes caminhos que afetam as desigualdades de riqueza, poder, uso de recursos e oportunidades, por meio de vários eixos, como gênero, etnia, classe social, local de residência e assim por diante?
As consequências decorrentes da insuficiente diversidade incidem sobre a distribuição. As estatísticas revelam tendências que parecem piorar em vez de melhorar (em termos de número de pessoas com fome, sobrepeso e obesas, bem como daquelas que carecem de dietas de qualidade que forneçam nutrientes suficientes). Contudo, outras consequências distributivas prevalecem na forma como certas culturas alimentares dominam, ao passo que outras se enfraquecem, influenciadas por conselhos dietéticos inadequados e que reforçam desigualdades de gênero, raça, deficiência.
Também existem consequências distributivas para produtores agrícolas, trabalhadores rurais e que trabalham no setor de alimentos, seja transportando ou processando agroalimentos: as soluções técnicas, os subsídios governamentais e a extensão agrícola (onde ainda é apoiada) beneficiam grupos e classes particulares de agricultores (agricultura masculinizada, orientada para a exportação).
4. Quais são as implicações para a democracia, amplamente entendida em termos de igualdade de oportunidades e inclusão e os processos que a tornam possível, seja formal ou informal?
Todas essas questões levam a questionar as implicações para a democracia: quais vozes e perspectivas estão representadas, e quais poderiam estar, seja em processos formais ou informais? É quase um clichê dizer que os sistemas alimentares não estão projetados em função dos interesses dos pobres porque estes não estão presentes em certos fóruns (salas de juntas empresariais, parlamentos e organismos governamentais, conferências internacionais, negociações sobre políticas comerciais) que dão forma ao sistema alimentar.
Os caminhos alternativos representados por movimentos de soberania alimentar e as tentativas de alcançar uma governança mais participativa e contextualizada são um passo na direção certa, mas é pouco provável que sozinhas levem ao tipo de transformação dos sistemas alimentares nacionais e internacionais que garantam alimentos de forma equitativa e sustentável. Contudo, sem mais esforços deste tipo é provável que as direções, a diversidade e a distribuição dos benefícios do sistema alimentar continuem sendo desiguais por muito tempo. A tolerância com tal desigualdade dependerá de cada povo.
Em suma, estamos em um momento de encruzilhada do sistema alimentar global. Embora possa parecer que dispomos da maior quantidade de alimentos da história, sua produção gera graves problemas ambientais e socioculturais, além de promover dietas não saudáveis e a concentração de poder em poucos atores. Requer-se encarar urgentemente processos de transição para sistemas alimentares mais sustentáveis, justos, inclusivos e variados. As 4 Ds enunciadas acima servem como guia para estimular a criatividade em aspectos tecnológicos, ambientais, sociais, políticos e comerciais de forma articulada. Ninguém tem “a receita”, portanto fica o convite para pensar como encarar essa necessária transição.
Aguirre, P. 2017. Una historia social de la comida. Buenos Aires: Lugar Editorial.
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Marchini, T. et al. 2022. Clima. El desafío del diseño más grande de todos los tiempos. Editorial El Gato y la Caja.
Monbiot, G. 2022. Regenesis: Feeding the World Without Devouring the Planet. Penguin Books.
Nystrom M. et al. 2019. Anatomy and resilience of the global production ecosystem. Nature, vol. 575, pp. 98-108.
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Sistema alimentar global: entre a resiliência e o colapso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU