23 Outubro 2023
"Atingir Gaza, talvez arrasá-la, convencendo os seus habitantes que finalmente aprenderão uma lição da qual se lembrarão para sempre, infligindo uma vingança bíblica é enfiar-se, mais uma vez, num beco sem saída", escreve Pier Giorgio Ardeni, professor titular de Economia Política da Universidade de Bolonha, Itália, em artigo publicado por Domani, 20-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depois do que aconteceu em Israel, fomos chamados a afirmar que “somos todos israelenses” e que aqueles que não o fazem estão “com os terroristas”. Por acaso, não sentimos vontade de dizer, depois do massacre do Bataclan, “somos todos franceses”? Ou teve alguém que, depois de 11 de setembro, não quis dizer “somos todos estadunidenses"? Depois do Bataclan, porém, não houve necessidade. Por que, então, existe a necessidade hoje, ainda por cima contra um movimento como o do Hamas?
O Hamas, como se sabe, é um movimento religioso fundamentalista e extremista, que até hoje tinha atingido Israel com lançamentos de foguetes e atentados. Um movimento que, no entanto, em 2006, se consolidou em eleições regulares em Gaza. Talvez mais pelo descontentamento que os palestinos sentiam pelo Fatah do que pelos seus méritos. Israel e os Estados Unidos responderam rejeitando o resultado da votação, deslegitimando o Hamas como partido político democrático. Desde então, a Faixa - onde o Fatah, em conflito com o Hamas, não tem consenso – foi relegada num limbo.
No entanto, a estratégia de isolamento de Fatah tinha começado pelo menos vinte anos antes, quando Israel, mesmo antes da formação do Hamas, acreditava que, ao apoiar o extremismo islâmico, teriam se potencializado forças que se oporiam à OLP e ao Fatah, secular mas de esquerda. Embora o extremismo islâmico ainda não tivesse mostrado a sua face assassina em mais de uma ocasião, deveria ter ficado claro desde o início que a rejeição da solução de dois Estados pelo Hamas – apoiada pelo Fatah – na verdade originava-se da ideia de que a Palestina era uma terra apenas para os filhos do Islã e para mais ninguém. E a persistência nas políticas israelenses da noção de que o Hamas poderia ser um interlocutor útil porque dividia os palestinos, apenas se mostrou de uma cegueira autocomplacente.
Com o tempo, o Hamas foi financiado pelo Irã e pelo Catar, país que sediou a Copa do Mundo de futebol, em viés anti-israelense. Em Gaza, isolado do resto do mundo, o Hamas conseguiu recrutar milhares de jovens militantes dispostos a sacrificar-se pela causa santa da eliminação de Israel. Aquele do Hamas, contudo, não é um exército: não é possível responder a ele como se faria numa guerra “normal”.
Não se pode reagir a um ataque terrorista, por maior que seja, como se faria com uma invasão militar com veículos blindados e infantaria. E é também por isso que o bombardeio de Gaza parece uma veleidade e inútil, como se isso fosse capaz de anular o poder de fogo do Hamas, que em vez disso, está em outro lugar. Atingir Gaza, talvez arrasá-la, convencendo os seus habitantes que finalmente aprenderão uma lição da qual se lembrarão para sempre, infligindo uma vingança bíblica é enfiar-se, mais uma vez, num beco sem saída. Porque os palestinos existem e a questão palestina necessita urgentemente de uma solução que também lhes dê um território e um estado em que não fiquem fechados num gueto, cercados por muros e arame farpado.
Assim foi erguido um muro entre aqueles que "estão com Israel", com o Ocidente e os seus valores, e os outros. Mas onde estavam todos esses defensores dos valores quando a Operação “Chumbo Fundido” foi lançada em dezembro de 2008 para atacar o Hamas que em oito anos, com os seus lançamentos de foguetes, havia provocado apenas 15 mortes em Israel? A operação, que durou uma quinzena com bombardeios e invasões de forças terrestres em Gaza custou a Israel 13 militares mortos, enquanto foram milhares os palestinos mortos. Houve, naquele caso, declarações sob a bandeira de “somos todos palestinos”? E quanto ao massacre na mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, em 1990, durante a segunda intifada, ficamos, por acaso, todos “com os palestinos”? Em Gaza, como recorda Fintan O'Toole, segundo a lenda judaica retomada por John Milton, Sansão, capturado pelos filisteus, acabou com os olhos arrancados, condenado a empurrar uma pedra de moinho até o fim dos seus dias. Como se sabe, no mais espetacular dos suicídios, Sansão se vingará fazendo com que o templo desmorone sobre ele, enterrando assim os filisteus sob os escombros. Uma história apenas aparentemente heroica, porque é apenas trágica: a crueldade gera crueldade, não deixando nada além da destruição mútua.
A lenda de Sansão aparece no livro dos Juízes, em que Deus deixa os filhos de Israel à mercê dos seus inimigos como punição por “terem feito o que parecia mal aos olhos do Senhor”. A Irmandade Muçulmana, os precursores do Hamas, tinham a mesma crença. Em Gaza, depois da vitória de Israel na guerra de 1967, a Irmandade estava convencida de que a perda da Palestina era um castigo de Deus por ter negligenciado o Islã. E hoje, com crentes religiosos no poder em ambos os lados do muro de Gaza, parece que ainda estamos diante da mesma visão obscurecida pelo sangue.
Ter provocado a fúria de Israel contra a população de Gaza, sabendo que não será capaz de se defender, além disso, mostra o pouco que o Hamas se preocupa com os seus próprios civis, tanto quanto com aqueles de Israel. Assim como é profundamente chocante que agora toda a população de Gaza seja privada de tudo, comida, água, eletricidade e bombardeada.
A retaliação contra civis não combatentes foi assim estabelecida como uma reação igual e oposta aos crimes do Hamas, que leva a pressagiar horrores maiores do que aqueles já causados pelos bombardeios. Em vez de reiterar como sempre de que lado está a civilização e onde está a barbárie, o Ocidente poderia se empenhar para que se fale sobre paz e coabitação, pois a crueldade só pode levar à crueldade. Mas, bem sabemos, a história ensina-nos que “o fardo do homem branco” é esse e assim permanecerá, até que os povos do mundo considerem que já foi bastante.
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O dever de lembrar que da barbárie só pode nascer barbárie. Artigo de Pier Giorgio Ardeni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU