06 Outubro 2023
“O futuro da internet é também o futuro da democracia, da humanidade”. Com estas palavras, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, comemorava, em maio do ano passado, ter promovido uma declaração global sobre o rumo da rede. Os Estados Unidos, a União Europeia e um total de 70 países assinaram uma proposta que pede que seja “livre, aberta, global, interoperável, credível e segura”.
No entanto, o que deveria ser nem sempre se concretiza. Prever o futuro é impossível, mas analisar as dinâmicas atuais pode servir para começar a vislumbrar como será a internet do futuro. É por isso que El Periódico conversou com o escritor e divulgador de tecnologia Antonio Ortiz.
A entrevista é publicada por El Periódico, 05-10-2023. A tradução é do Cepat.
Em que direção considera que a internet irá?
É difícil falar da internet como algo diferente do mundo físico. O que acontece no virtual importa em muitas facetas de nossa vida, do mais íntimo ao mais social. As visões tecno-otimistas e utópicas dos anos 1990, que acreditavam que a internet seria uma alternativa ao sistema socioeconômico capitalista, foram amplamente derrotadas.
A internet foi dominada e centralizada pelas grandes corporações capitalistas dos Estados Unidos e isso produziu um grande desencanto. Ela tem sido um mundo de possibilidades, mas também cheio de externalidades negativas, como a polarização.
Na realidade, esse manifesto não quer uma internet mais livre, mas, sim, mais controlada, regulamentada e menos selvagem. A internet do futuro não estará separada da sociedade, dependerá das correntes ideológicas e dinâmicas sociais que prevalecerem.
Agora, existem três tipos de internet. A chinesa, com uma muralha de controle. A dos Estados Unidos, com os seus gigantes tecnológicos. E a da União Europeia, com maior exigência de regulamentação. Se Bruxelas continuar assumindo esse papel de xerife tecnológico, teremos uma internet diferente.
Fala-se muito do metaverso como o futuro da internet. A proposta de Mark Zuckerberg triunfará?
Nas últimas duas décadas, a internet mudou porque se tornou móvel. E agora há uma guerra para descobrir a próxima grande mudança. O telefone celular dá sinais de esgotamento, porque toda as pessoas já possuem um e porque suas tecnologias parecem ter atingido o teto. A visão de Zuckerberg acredita que o futuro passa por uma maior imersão.
Evoluímos do texto a experiências de imagem e, depois, de vídeo. Contudo, para mim esse entendimento gera muitas dúvidas, pois penso que o motor da mudança não tem sido a imersão, mas se conectar melhor com outras pessoas. E os avatares do mundo virtual geram um pouco de arrepio.
Além disso, tecnologicamente ainda estamos muito longe de ter uma experiência realista com óculos de realidade virtual ou realidade aumentada. Minha impressão é que essa tecnologia dará passos, mas não haverá um novo momento iPhone que acarrete uma adoção em massa dos óculos. Será muito mais lento e discreto. A experiência virtual gera suspeita.
A inteligência artificial parece gerar muito mais consenso como ferramenta para o futuro.
Minha aposta é que a inteligência artificial é a tecnologia da década. Acontecerá assim como com a eletricidade: muito do valor que será gerado com a inteligência artificial estará por trás de produtos e serviços que, a nossos olhos, não serão muito diferentes dos que já utilizamos agora.
Investiu-se tanto dinheiro que sabemos que haverá muitos projetos. Os investimentos parecem apontar que o grande negócio estará em modelos de linguagem como o utilizado pelo ChatGPT, que passará a ser uma plataforma como foi a App Store, em seu momento. Haverá uma corrida para que os desenvolvedores utilizem esses modelos.
No entanto, esses modelos também respondem com informações erradas que consideram certas. Os especialistas apontam que crescerá a informação sintética ‘contaminada’ e que isso prejudicará o ecossistema informativo digital.
É isso, mas minha impressão é que as marcas poderosas com credibilidade informativa se verão beneficiadas. Caso comece a haver sobreinformação, especialmente em fotografias e vídeos nos quais antes acreditávamos só em ver, teremos que desenvolver um maior sentido do ceticismo.
Penso que subestimamos a forma como a sociedade se defende e combate a desinformação. Vão nos enganar, mas seremos mais céticos. O grande problema, como vimos nos nus falsos de Almendralejo [Espanha], é quando isso acontecer na esfera mais íntima.
Falou-se da chamada Web3 (criptomoedas, blockchain, NFT...), mas essa febre parece ter passado...
É muito difícil retirar o ceticismo, pois quais produtos e serviços criaram que melhoraram a vida das pessoas? A promessa de gerar valor a partir do mundo cripto não foi tal. Enquanto isso não acontecer, será um reduto de crentes e um grupo de especuladores e fraudadores. Existem algumas ideias interessantes na Web3, são esses grupos que acabaram com o brinquedo.
Ideias como o desejo de maior descentralização na internet, onde o poder está concentrado em grandes empresas com mais força do que países inteiros. Essa é uma direção possível?
Sou muito pessimista nesse sentido. Sou partidário da descentralização porque a centralização gera muitos problemas. Por exemplo, que o Instagram proíba postar imagens de seios femininos já limita o seu trabalho artístico. As grandes empresas têm um peso enorme no debate público de massas, condicionam o que pode ser dito e quem vê cada mensagem.
A centralização também tem aspectos positivos, como proporcionar valor de alcance, descoberta e monetização. As iniciativas descentralizadas acabam pecando por oferecer uma experiência pior para o usuário, como vemos com os rivais do X (Twitter). São muito complexas para que todos possam entender. Gostaria de pensar na possibilidade de uma internet descentralizada, mas, hoje, não há alternativa às grandes plataformas.
Todos esses propósitos entram em choque com uma realidade crescente como a balcanização da internet. Países com sua própria rede fechada para controlar seu funcionamento e os usuários, como a China. Esta será uma tendência?
O mundo dos grandes meios de comunicação do século XX era muito mais controlável. A dificuldade de entrar nesse mercado fazia com que, em geral, os meios de comunicação fossem mais moderados. Como a internet retira muitas barreiras de entrada para o indivíduo se comunicar, também rompe com o efeito moderador.
Quando a internet se centraliza e acrescenta algoritmos que dão visibilidade ao que gera mais emoções, temos um coquetel interessante. A opinião pública muda muito, disputa com a grande mídia e introduz um novo formador de opinião, com um alcance comparável aos meios de comunicação tradicionais, que pode adotar posições mais extremistas. Isto faz com que os países autoritários optem por um férreo controle da internet.
O manifesto global a respeito do qual falávamos no início desta conversa propunha a interoperabilidade, o mesmo que as novas leis europeias exigem. Poderemos escrever uma mensagem no WhatsApp e um amigo recebê-la no Telegram?
As empresas são muito abertas quando começam e se fecham conforme mais poder possuem. Foi o que vimos com Facebook, YouTube e TikTok. A falta de interoperabilidade entre serviços torna praticamente impossível competir com essas empresas. Parece-me algo muito bom forçar os gigantes a mudar para permitir a concorrência, que se desafie as grandes empresas e haja alternativas.
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“A ideia de internet como alternativa ao capitalismo fracassou”. Entrevista com Antonio Ortiz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU