Avançam, em várias partes do mundo, medidas para limitar o poder das Big Techs. Mas livro recém-lançado sustenta: é possível ir além e retomar a ideia de uma rede voltada ao Comum, livre dos oligopólios e administrada pelas comunidades. "Concordo que a regulamentação dessas empresas é essencial. Meu ponto é que, no final das contas, se queremos construir uma internet melhor, acho que precisamos transformar a forma como ela é gerida e organizada. Na minha opinião, deixar a internet nas mãos de empresas privadas, e deixar que ela seja organizada em torno do princípio da maximização do lucro, significa que há muito pouco que as políticas públicas possam fazer", diz em entrevista Ben Tarnoff, escritor, editor e co-fundador da revista Logic Magazine, além de autor do livro "Internet for the People (Internet para as pessoas)".
A entrevista é de Gilad Edelman, publicada por Wired e reproduzida por Outras Palavras. A tradução é de Maurício Ayer, 18-08-2022.
No momento da publicação desta entrevista, estão para ser votados no Senado dos EUA alguns projetos de lei antitruste com foco nas plataformas que dominam a internet. A União Europeia está finalizando sua própria série de novas regulações. Além disso, vários estados norte-americanos estão aprovando leis – umas melhores, outras piores – que buscam estabelecer limites para uma indústria de tecnologia amplamente vista como fora de controle.
Para Ben Tarnoff, essas propostas são terrivelmente inadequadas. Em seu próximo livro, Internet for the People (Internet para as pessoas), ele defende que os problemas da internet estão fundamentalmente ligados ao lucro; e que só uma virada para a propriedade pública poderá resolvê-los.
“Os reformadores da internet têm boas ideias, mas nunca chegam à raiz do problema”, escreve ele. “A raiz é simples: a distorção essencial da internet é porque é um negócio.”
Tarnoff vê como boas promessas os exemplos bem-sucedidos de redes de banda larga de propriedade cooperativa e municipal espalhados pelo mundo. Mas o que significaria colocar a própria Web – os sites e aplicativos que usamos todos os dias – sob propriedade pública? Tarnoff conversou com a Wired para expor sua visão de uma internet socialista e como alcançá-la.
Esta entrevista foi condensada e levemente editada.
O argumento central do seu livro é que precisamos “desprivatizar” a internet. Subentende-se que ela já foi pública.
Os protocolos de internet, que são as regras que permitem que as redes da internet se comuniquem entre si, foram inventados na década de 1970 por pesquisadores da DARPA. Em seguida, o Pentágono usou esses protocolos para interconectar várias redes, a partir da década de 1980. Essa rede de redes passou então ao controle federal civil, sob a coordenação da National Science Foundation. O ano crucial é 1995, quando a National Science Foundation concluiu a espinha dorsal da internet, uma artéria central até então chamada NSFNET, e o setor privado assumiu. É aí que começa o processo de privatização: no chamado “porão” da internet, com a estrutura de transmissão.
Há muitos lugares ao redor do mundo que têm internet muito mais rápida e mais barata do que nos EUA, e é fornecida pelo setor privado. O problema é a privatização ou a desregulamentação? A internet não foi apenas entregue ao setor privado nos EUA, foi entregue em condições muito favoráveis para as empresas.
Você levanta uma questão interessante: o objetivo é simplesmente melhorar a velocidade por um custo menor? Ou há algo mais? Pesquisas mostram que, se você trouxesse concorrência para o mercado altamente concentrado de serviços de internet nos Estados Unidos, certamente melhoraria as velocidades e reduziria o custo. Esse é um objetivo muito importante. Mas não é suficiente, por duas razões. Uma delas é que a concorrência tende a funcionar melhor para as pessoas pelas quais vale a pena competir, ou seja, a concorrência é melhor para reduzir os preços dos pacotes de banda larga mais sofisticados. Onde a concorrência não é tão eficaz é para levar conectividade a pessoas que realmente não podem pagar, ou que vivem em comunidades, principalmente comunidades rurais, nas quais não é lucrativo investir. Aprofundando a explicação, em um sistema privado, as pessoas não têm a oportunidade de participar das decisões sobre como sua infraestrutura é implantada, desenvolvida, gerenciada e assim por diante. Por isso tenho muita fé nas redes comunitárias, porque como alternativas de propriedade pública e cooperativa elas têm a oportunidade de codificar e credenciar práticas que realmente dão aos usuários a possibilidade de opinar sobre como o serviço funciona.
Parece que você acredita que essas medidas antitruste e de concorrência são necessárias, mas não suficientes.
Sim, é isso o que eu acho. A tradição antimonopólio é, na verdade, bastante rica e diversificada. Considero as medidas antimonopólio bastante úteis para reduzir o poder dessas empresas, para diminuir sua pegada. E há muitas medidas específicas, como exigir interoperabilidade entre redes sociais e desmembrar as grandes empresas, que vejo como medidas intermediárias bastante úteis para se chegar a uma internet desprivatizada. Mas há um desacordo mais profundo que tenho com o pessoal da luta antimonopólio sobre a origem dos problemas básicos da internet e de qual é o horizonte final.
É difícil argumentar contra a ideia de um controle democrático sobre as redes que as pessoas usam e confiam, mas sou cético em relação a como isso realmente aconteceria na prática. Acho que a maioria das pessoas só quer que o serviço seja rápido e por um preço acessível. E há um argumento bastante forte de que a maneira mais direta de as pessoas realizarem esse desejo é podendo escolher entre as opções disponíveis em um mercado.
Acho que parte do que você está perguntando é: quais são as decisões que valem a pena de ser tomadas de uma forma mais democrática e deliberativa? Há uma série de problemas que surgem relacionados a onde e como se implantar a infraestrutura. Quando você está construindo a rede de banda larga na chegada aos usuários, por exemplo, ou mesmo o que é chamado de rede de banda larga mais estrutural, há muitas opções. Quais bairros serão atendidos? Quais tecnologias você vai usar? Você vai tentar incorporar uma rede inteligente, que pode melhorar a eficiência energética? Estas são questões que preocupam os membros da comunidade local, e estes são os tipos de questões que surgem, por exemplo, no cooperativas rurais em Dakota do Norte que tiveram muito sucesso na construção de suas redes de banda larga.
A conversa fica ainda mais interessante e complicada quando passamos para a camada dos aplicativos da internet, como Facebook ou Google. Você está falando literalmente em proibir aplicativos com fins lucrativos na Web ou existe alguma outra maneira de eliminá-los oferecendo alternativas sem fins lucrativos?
Não vejo a abolição imediata do lucro na internet como uma proposta particularmente realista. Tenho outras propostas sobre como podemos alimentar alternativas desprivatizadas e começar a desenvolver um setor desprivatizado.
Lendo seu livro, em muitos momentos eu pensei: “O que ele mostra é que precisamos melhorar a regulação”.
Concordo que a regulamentação dessas empresas é essencial. Meu ponto é que, no final das contas, se queremos construir uma internet melhor, acho que precisamos transformar a forma como ela é gerida e organizada. Na minha opinião, deixar a internet nas mãos de empresas privadas, e deixar que ela seja organizada em torno do princípio da maximização do lucro, significa que há muito pouco que as políticas públicas possam fazer. Mudar o modelo de propriedade não é apenas algo a ser feito por si só. É realmente um meio para um fim, e este fim é uma internet na qual as pessoas tenham a oportunidade de participar das decisões que mais as afetam.
A maioria das pessoas não quer votar em propostas a respeito do desenvolvimento do protocolo que estão usando. Elas só querem que funcione. Eu sei que isso soa muito cínico. Mas como você vende a alguém uma web desprivatizada? Como o mundo dessas pessoas ficaria melhor?
Aqui, volto-me para experimentos na chamada comunidade Web descentralizada – em particular, projetos de mídia social descentralizados como Mastodon. Ele já existe há algum tempo. É um projeto de código aberto que permite que as pessoas criem suas próprias instâncias de mídia social e as conectem como federações. É interessante e promissor porque permite formar comunidades de mídia social nas quais decisões críticas de governança, como moderação de conteúdo, possam ser tomadas de forma democrática e nas quais uma cooperativa de usuários possa se reunir para determinar como sua comunidade de mídia social deve ser administrada.
Concordo que o exemplo do Mastodon é interessante, mas como você disse, já existe há algum tempo e não há muita demanda por ele. Acho que ter pluralismo e federação e controle distribuído em nível comunitário faz todo o sentido do mundo. E, no entanto, não é nessa direção que as pessoas gravitam.
É aqui que precisamos falar sobre investimento público. O Mastodon é um projeto de código aberto. Projetos de código aberto sempre enfrentam desafios em conseguir pessoas suficientes para contribuir e garantir que sejam mantidos adequadamente. Também é relativamente caro executar sua própria instância do Mastodon porque é muito intensivo computacionalmente. E então há uma série de perguntas, por exemplo: “o UX é bom o suficiente para atrair as pessoas do Facebook?” O Facebook tem muito mais dinheiro para usar nesse tipo de coisa. Não podemos dar escala a essas alternativas sem investimento público – e, devo dizer, sem movimentos sociais, porque o outro ponto do meu livro é que, se queremos transformar a internet, precisamos criar um movimento social capaz de exigir essa transformação. Há um pouco do problema do ovo e da galinha aqui. Parece difícil, ao ponto da desesperança, tentar galvanizar um movimento social para conseguir algo que você não pode efetivamente descrever, porque não existe.
Você usa a expressão “do-ovo-e-da-galinha”, de que gosto, mas talvez eu prefira a expressão dialética neste caso. Ser capaz de apontar para experimentos pequenos, mas promissores, como o Mastodon ou como serviços de carona cujos proprietários são os trabalhadores. Eles dão às pessoas a sensação de que outra internet é possível e, por sua vez, amplia sua imaginação de como a internet pode ser. Esses podem ser pontos de partida importantes para o tipo de conversa que leva à organização dos movimentos sociais. Precisamos que essas alternativas existam ainda em miniatura no momento, mas também precisamos de movimentos sociais que possam ampliar e fortalecer essas alternativas para inspirar mais pessoas.
Parte do problema aqui é que ainda estamos trabalhando dentro de um paradigma inimigo. Meu horizonte final não é um Twitter cooperativo. Isso, para mim, é uma restrição da nossa imaginação em termos do que é possível. Faz sentido que seja por aí que comecemos porque temos que começar de algum lugar. Mas, em última análise, o que me anima é a possibilidade de reunir massas de pessoas, conectando-as com os recursos técnicos de que precisam para construir os espaços e estruturas online que podem servir às suas vidas cotidianas.
Falando em recursos técnicos: para dar um exemplo concreto, eu poderia imaginar algo como o Marketplace do Facebook numa versão em nível local como uma cooperativa ou serviço municipal. Mas as pessoas que têm o treinamento técnico para fazer isso estão enriquecendo trabalhando para a Meta. Então, tudo bem reunir minha comunidade, mas alguém nela é expert em codificação?
Você está apontando para um problema real, que é a existência de severas restrições materiais para grupos de pessoas que desejam construir alternativas para as plataformas. É aqui que eu acho que as políticas públicas desempenham um papel muito importante. No livro, falo de uma experiência que o Partido Trabalhista realizou em Londres na década de 1980, quando criaram esses espaços chamados de redes de tecnologia. Eram edifícios nos quais as pessoas podiam entrar e se conectar com máquinas, um pouco como espaços hacker ou espaços maker. Hoje, eles podem se conectar com especialistas e formas de especialização, e podem construir tecnologias que tornam suas vidas melhores. Muitas tecnologias de eficiência energética saíram desses centros e os projetos para o que eles construíram foram para esse banco de dados compartilhado que qualquer outra pessoa poderia acessar. Isso, na minha opinião, é um modelo interessante de como podemos usar políticas públicas para conectar pessoas não técnicas com recursos técnicos para que possam realmente construir os tipos de ferramentas online que tornariam suas vidas melhores.
Apenas para estabelecer uma questão de base: Você acha que nada deve ser lucrativo? Seu argumento é que a internet não deve ter fins lucrativos, assim como nenhuma outra outra coisa? Ou você acha que há algo específico da internet?
A primeira opção. Este livro tem como escopo a internet, mas para responder à sua pergunta, eu sou um socialista. Eu quero ver uma sociedade pós-capitalista. Há dinâmicas na internet que requerem atenção especial, mas eu a vejo como parte de uma economia política mais ampla que precisa ser transformada.