20 Setembro 2023
Rob Riemen (Países Baixos, 1962) corresponde ao retrato do que deveria ser um humanista no século XXI. Um intelectual que pensa com independência dos poderes econômicos e políticos, algo que se pressupõe como premissa para qualquer pensador, mas que é cada vez mais extraordinário. Fundador e presidente do Nexus Instituut, há três décadas Riemen transformou esta instituição neerlandesa em um dos centros de reflexão filosófica e cultural de referência mundial.
Por seu último ensaio, El arte de ser humanos: Cuatro estudios (Taurus), desfilam Sócrates, Thomas Mann, Spinoza, Primo Levi, Goethe e Camus, entre outros, para nos ajudar a compreender que viver não é uma ciência.
“A ciência pode explicar muito, mas a condição humana e nossa sociedade são algo totalmente diferente. Por isso, as humanidades erram quando tentam copiar a ciência”, reflete Riemen. Muito crítico da subordinação da política aos interesses econômicos, insiste em que a raiz de todas as crises é a da educação. “Quando a sociedade está totalmente invadida por mentiras e estupidez, não devemos nos surpreender que Trump possa voltar a ser presidente dos Estados Unidos”, alerta.
A entrevista é de Neus Tomàs, publicada por El Diario, 16-09-2023. A tradução é do Cepat.
Em seu mais recente livro, você parte de um princípio: viver não é uma ciência, é uma arte. Não existem protocolos, não temos manuais para saber viver. Voltando a Sócrates, pergunto-lhe: existe uma maneira correta de viver?
Viver é uma arte porque, se fosse uma ciência, haveria definições, protocolos e uma resposta muito clara à pergunta do que significa ser humano. Isso não existe, por isso é uma arte. No Tractatus de Wittgenstein, diz-se que mesmo que resolvêssemos todos os problemas apresentados à ciência, não estaríamos nos aproximando das perguntas da vida. A ciência pode explicar muito, mas a condição humana e nossa sociedade são algo totalmente diferente. Por isso, as humanidades erram quando tentam copiar a ciência.
Você já viu o fantástico filme Barbie? O bom dos filmes americanos é que, às vezes, contêm uma verdade profunda. Em Barbie, a verdade profunda aparece quando a protagonista está cantando e dançando com as amigas e, de repente, pergunta se alguém já pensou na morte. A música é interrompida e todos param de dançar. Parece algo muito duro, mas pensar na morte é o que nos torna humanos. Saber que nascemos e morreremos e que, nesse meio, faremos algo chamado vida. E teremos que enfrentar as perguntas da vida: Quem sou eu? O que vou fazer com a minha vida?
Quais as principais perguntas da vida que deveríamos nos fazer, aquelas que você considera que não podem ser respondidas pela tecnologia, pela ciência e pelo dinheiro?
Unamuno tinha um livro, Do sentido trágico da vida, que mostra que não podemos escapar das tragédias e que, no fim, temos que nos confrontar com as dificuldades. Em algum momento, a vida nos fará cair e teremos que responder às perguntas difíceis: Por que isso está acontecendo comigo? Por que perco minha saúde ou meu emprego? Por que essa pessoa que tanto amo morreu?
Nascemos, crescemos e temos que tomar decisões: o que estudar, se queremos dividir a vida com alguém e ter filhos... Todas essas questões nos levam à grande questão: O que dá sentido à minha vida? Nem a ciência e nem a tecnologia podem responder a esta pergunta e se acreditarmos que o sentido vem do dinheiro, é que somos idiotas.
Em que tipo de sociedade vivemos agora? Não vivemos em uma democracia, mas em uma democracia de massas. Na primeira, poderíamos cultivar os valores morais e aceitar as nossas responsabilidades, mas em uma democracia de massas, os valores culturais não valem, só valem os instintos e medos. Nossa classe política está cheia de demagogos que só olham para os seus interesses e destroem o sistema educacional que fomenta os valores culturais. Não podemos nos surpreender com a nova ascensão do fascismo.
É especialmente crítico em relação ao papel das universidades. Chega a dizer que longe de exterminar as larvas da ignorância e do fanatismo, fazem o contrário, alimentando-as. Isso significa que não há solução?
Sim, há solução, mas primeiro temos de reconhecer que as universidades não são realmente universidades. Em seu estudo sobre a crise da educação, Hannah Arendt escreveu que vivemos em um momento de crise da civilização. Assim como agora, à qual se somou a crise climática. A raiz de todas as crises é a crise da educação. Temos que recuperar o real significado de palavras como democracia, educação e universidade. Educar significa crescer, e para ser um adulto precisamos de educação. É um processo.
Nietzsche já disse, em 1874, que a escola da civilização havia acabado porque a universidade havia se reduzido ao que era bom para o Estado e a economia. Permanece uma verdade como um templo. As universidades são responsáveis pela estupidez que invadiu nossas sociedades. Digo aos meus alunos que na universidade não se aprende nada no campo das humanidades. A partir daqui, poderemos reconstruir a universidade.
Se a universidade não é o lugar para aprender, compartilho com você uma ideia do filósofo José Antonio Marina: onde encontramos a vacina contra a estupidez?
E uma vacina contra a corrupção! Maquiavel refletiu sobre a queda do Império Romano, que para ele era o grande exemplo do que deveria ser a civilização. Segundo Maquiavel, o império caiu porque havia bárbaros dentro e fora do império, e os bárbaros eram corruptos, um grupo decadente de pessoas que só se preocupavam consigo mesmas e cuja corrupção não podia ser combatida, pois as leis eram feitas por eles. Maquiavel diz que as instituições deveriam voltar aos seus princípios e à energia que deu início à civilização.
Nos últimos anos, os Estados Unidos têm sido o nosso império romano. Aplicando a receita de Maquiavel, imaginemos que a social-democracia retorne a seus princípios e perceba que o progressismo significa elevar as pessoas e se afaste do neoliberalismo; que os liberais também retornem a seus princípios e percebam a essência do liberalismo; que as universidades voltem aos seus e eduquem, em vez de serem uma máquina de fazer dinheiro; que os editoriais voltem a seus princípios e publiquem apenas livros que realmente importam. A essência da civilização é a capacidade de dizer “não”, “não” à Inteligência Artificial, “não” à forma de lavagem cerebral dos jovens, dizendo que precisam de um diploma ou não serão nada na vida.
Existem estatísticas que apontam que os países que investem na cultura e na educação são mais estáveis, mais democráticos e possuem maior probabilidade de alcançar maior crescimento econômico e distribuição da riqueza. É evidente que é algo que os governos, muitas vezes, não levam em conta. Contudo, sem os políticos isso não pode ser feito, certo?
Eu acredito que sim, você pode fazer isso sozinho. Acaba de fazer referência à maior mentira que temos de enfrentar, que é a mudança de paradigma que se implantou há 100 anos: a da substituição da qualidade pela quantidade. Tudo se resume a números. Números de consumidores, de eleitores... Tudo se classifica. Os economistas se tornaram os líderes porque tudo se baseia em números e crescimento. Não importa o que façamos ao planeta ou com nossas vidas porque no mundo dos números a melhor coisa é o dígito mais alto. Levamos a sério os influencers que não têm nada a dizer só porque possuem milhares de seguidores.
Vamos nos libertar desses números porque estamos falando de nossa sociedade e de nossas vidas! A primeira coisa que devemos considerar é que todos morreremos e quando chegar esse momento para cada um, se continuarmos assim, só será possível pensar em números e não em termos da qualidade de vida. E a segunda é que embora a nossa sociedade ocidental ainda não seja tão totalitária como China, Rússia, Arábia Saudita e outros, devemos considerar que podemos mudar os políticos que temos. Como é possível que alguém como Trump possa ser novamente reeleito? Quando a sociedade é totalmente invadida por mentiras e estupidez, não é surpresa alguma que isso aconteça.
Um dos problemas que você diagnostica é que não aprendemos as lições da história porque não a conhecemos. Isto explica que fenômenos populistas e a extrema direita estejam ganhando terreno?
Sim, é assim. Embora algo precisa ser dito em defesa das gerações mais jovens. Eu tenho 61 anos e na minha perspectiva considero jovem qualquer pessoa com menos de 40. Esta geração não pediu para viver nesta sociedade. A minha, ao contrário, os boomers, ainda cresceu em uma sociedade em que tínhamos que ler livros. Muitos dos autores que líamos, Semprún, Primo Levi..., falavam em seus livros sobre o desastre de tudo o que se relacionava com a Segunda Guerra Mundial.
Nos Países Baixos, comemoramos o dia da libertação e repetimos o mesmo mantra: “Nunca mais”. Em 2010, quando publiquei um ensaio sobre o retorno do fascismo, liguei para o meu pai e disse: “Pai, não é mais certo”. Ele me perguntou: “O que não é certo?” E eu lhe respondi que não era verdade aquilo que nos diziam, quando eu era pequeno, sobre o “nunca mais”, porque pode voltar a acontecer. A geração jovem faz parte de uma sociedade que está imersa em uma amnésia total.
Como reverter esta situação?
A geração de nossos pais teve que responder a perguntas morais muito profundas, e muitas vezes ligadas à vida, pois podiam morrer em função da resposta. Na Espanha, tinham que responder se eram republicanos ou fascistas. No meu país, tinham que decidir se protegiam os judeus ou colaboravam com os nazistas.
No caso da minha geração, no fim dos anos 1970 e 1980, todo mundo falava de política. No fim dos anos 1990, tudo passou a ser orientado pelo modelo de negócio. Isso foi e é o responsável por tudo o que veio depois. Os banqueiros se tornaram heróis, todos queriam ser ricos. A grande estupidez da esquerda foi aceitar o neoliberalismo. Diziam-nos que todos podemos ser ricos de uma forma mais decente que os da direita. Minha geração é a única responsável e a única esperança é que a geração jovem perceba que o sistema mentiu e que deve tomar outras decisões.
E isso que chegaram a nos dizer que, após a pandemia, as coisas mudariam.
Eu não acreditei nem por um segundo. Não era verdade. Cresci em uma família social-democrata católica que lutava pela justiça social e isso faz parte do meu DNA. O problema com os meus amigos da esquerda é que todos queriam ter uma fé cega no progresso, não conseguiam nem sequer imaginar um retorno do fascismo, que as coisas iriam correr mal novamente. “A história não se repete”, diziam. E eu lhes respondia que é claro que se repete, pois somos seres humanos e, por vezes, cometeremos os mesmos erros. É por isso que os livros são importantes, porque nos lembram que tipos de seres temos sido.
Chegou-se a um ponto em que é difícil até mesmo distinguir entre o bem e o mal?
Quero acreditar que todos, de forma instintiva, sabem distinguir entre o bem e o mal. Acredito que as pessoas podem distinguir quem é realmente um amigo e quem não é capaz de amar. E isso me dá esperança. Contudo, para isso temos que nos educar, ler e saber o que as palavras que empregamos querem dizer. Do contrário, deixaremos de compreender a diferença entre o bem e o mal. Autores como Camus e Dostoiévski nos ensinam como é fácil cair na armadilha do que não é bom.
Falando em armadilhas. As redes sociais, diz, empurram-nos novamente para a caverna de Platão, onde não vemos nada além da nossa própria realidade e da nossa suposta verdade.
Não sou pessimista em relação às redes porque quando se é pessimista não se tem energia. As pessoas viciadas em redes sociais entram na caverna de Platão. Começam a viver em uma realidade que não é real porque os algoritmos só confirmam o que lhes interessa. É assim que Amazon, Instagram e Facebook funcionam.
Os algoritmos, por definição, nos colocam na caverna. Para sair, temos que ir a uma livraria, em vez de comprar na Amazon, e deixar de ficar no Instagram o dia todo. Estão roubando o nosso tempo, que é mais importante do que o dinheiro! Estar na caverna não deixa de ser uma escolha. Podemos sair do X e fazer com que o idiota do Elon Musk pare de ganhar dinheiro.
Então, precisamos ser militantes.
Sim. Thomas Mann, meu grande herói, teve uma vida muito difícil e no fim constatou que necessitávamos de um humanismo militante para acabar com a ideia do intelectual que não luta. Temos que ser capazes de dizer “que se danem”, pois há uma guerra intelectual que devemos travar.
Defende que os intelectuais devem ser especialmente independentes.
Para começar, é preciso dizer que a vida do intelectual é privilegiada. Não nos levantamos às 4 da manhã para ir trabalhar, embora também tenhamos preços a pagar. O compromisso absoluto com a verdade é o mandamento absoluto do intelectual. Mesmo que eu discorde de alguém, se está comprometido com a busca da verdade, eu o reconhecerei como intelectual. Contudo, há muitos que se apresentam como intelectuais que baixaram os braços e que substituíram, como dizia Mann, a busca da verdade pela ideologia política. A busca da verdade foi o que Camus e Sartre começaram a enfrentar.
Quando não defendemos os valores morais passamos a viver em uma selva. Sou chamado de elitista, mas é uma crítica que só se faz no campo cultural. Os atletas, e mesmo os financistas de elite, são admirados. Elite significa apresentar os melhores, sem exclusões, e a elite cultural deve preservar para a sociedade os valores e obras mais importantes que permitem compreender a vida.
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“A grande estupidez da esquerda foi aceitar o neoliberalismo”. Entrevista com Rob Riemen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU