02 Agosto 2023
Consciência da morte faz a personagem abandonar a fantasia cor-de-rosa e encarar o Mundo Real – bruto e misógino. Superficial e profundo, debocha da própria tentativa de reposicionar uma marca. E mostra que é preciso disputar a cultura pop.
O artigo é de Ivana Bentes, publicado por Cult e reproduzido por Outras Palavras, 31-07-2023.
Ivana Bentes é professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, doutora em Comunicação pela mesma instituição e ainda pró-reitora de Extensão da UFRJ. Atua como professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. Também é coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ e do Laboratório de Inovação Cidadã da UFRJ. Suas pesquisas versam sobre questões das tecnologias da comunicação, cultura, estética, cultura de redes, capitalismo cognitivo e inovação cidadã.
O mundo do consumo e o capitalismo “desperto” têm sido obrigados a lidar com as pautas contemporâneas — feminismo, racismo, extremismos — como forma de posicionar suas marcas e colocar em xeque o próprio consumismo. Nada que vá abalar os negócios (não espere que uma boneca faça a revolução!).
Mas a desconstrução de personagens da cultura mainstream, como a boneca Barbie, que faz parte de nosso imaginário e afetividade, também não é uma banalidade e se inscreve nas guerras culturais contemporâneas.
“Sou a Barbie na qual você pensa quando dizem Pensa numa Barbie.” É justamente essa “Barbie estereotipada” que o filme sensação de Greta Gerwig afirma, debocha e desconstrói de forma esquizo, inteligente e divertida.
O filme começa ensinando como a Barbie estereotipada de hoje (a loura fútil, mas descolada e diversa) já foi uma “evolução” ou no mínimo uma transformação no mundo das bonecas e dos imaginários.
Numa citação hilária de 2001: uma odisseia no espaço, de Kubrick, a diretora Greta Gerwig transforma Barbie em um monolito icônico do mundo das bonecas, girando da era das cavernas para um protofeminismo pop, louro e plástico, uma “revolução” Barbie, literalmente rosa choque ou rosa-chiclete.
Uma analogia hiperbólica que instaura o espectador nesse lugar de fantasia, paródia, citações que são piscadelas para nossa cinefilia e nosso repertório cultural.
A boneca Barbie já esteve à frente de alguma coisa? Já! Em um mundo em que empregos aceitáveis para mulheres eram restritos a enfermeiras, professoras, secretárias, esposas, mães e prostitutas, e as meninas tinham que brincar de mães ou donas de casa com bonecas bebês, Barbie é uma boneca adulta (e com seios!) com a qual as crianças brincam de terem autonomia e independência, em que elas são a boneca e se identificam com ela ou projetam o que a boneca poderia ser.
O que pode uma boneca? A Barbie veio construir e colonizar o imaginário infantil ampliando, por um lado, mas limitando e definindo os desejos das meninas, por outro, com sua estética plastificada, misturando moda e modelitos com profissões e identidades possíveis.
A infinidade de roupas e acessórios da Barbie, uma fashion doll, ou seja, uma boneca para ser vestida e acompanhar tendências da moda, é o que a definia. A boneca loura e peituda, entretanto, também foi sendo repaginada pela Matell para responder aos novos imaginários. A frase mantra “a mulher é o que ela quiser” torna-se também parte da estratégia de consumo e identificação no mundo das bonecas e do mercado.
A “Barbie estereotipada” passou de Barbie loura e Barbie princesa para Barbie profissões, Barbie médica, advogada, senadora, Barbie fashionista, Barbie negra, ruiva, Barbie sereia, Barbie em cadeira de rodas etc.
O filme de Greta Gerwig e a interpretação da atriz Margot Robbie não pretendem descontruir a “Barbie estereotipada” de vez (nem conseguiriam), mas talvez remediá-la ou atualizá-la, com humor, com um visual e coreografias delirantes, para que a boneca ao menos caia na real, ou pelo menos ganhe autoconsciência, debochando ela própria do estilo de vida fantasioso, de beldade loura, rica, numa eterna gozolândia.
No filme, não há escolha para Barbie, a não ser “sair do estereótipo”, então ela é forçada a empreender uma jornada no estilo do filme Mágico de Oz, fantasioso, musical e “para toda a família”. Barbie vai conhecer o Mundo Real, “over the rainbow”, mas não abre mão de seu estilo barbie e quer fazer isso para voltar “em segurança” para o mundo das barbies. Mas não existe jornada sem sofrimentos e transformação, mesmo que as lágrimas de Barbie escorram sem produzir uma só ruga ou sem franzir o plástico da testa.
Barbilândia, de onde parte, também é uma caricatura: um mundo em que todas as mulheres são Barbies diversas, loiras, negras, sereias, trans, uma espécie de “United Collors of Barbies” festiva onde as mulheres dominam todas as estruturas sociais e de poder e dominam todos os homens.
No mundo do feminismo loiro, plástico e fantasioso, todos os homens são Kens submissos. Inversão caricatural. É só nesse mundo Barbie (com uma Barbie médica e trans, outra grávida e uma Barbie Estranha) que as mulheres são presidentes da República, prêmios Nobel, escritoras consagradas.
A reversão completa do patriarcado é um delírio rosa? O filme usa ironia para pintar um feminismo onipotente, um paraíso barbie-feminista delirante, mas altamente fofo e desejável. Olha aí, meninas, como poderia ser o mundo em que os homens são esses eternos coadjuvantes e as sisters controlam tudo e fazem a festa.
Quando Barbie tem um pensamento de “morte” (um dia essa gozolândia vai acabar), seu mundo começa a desabar e ela tem que, como o Neo de Matrix, atravessar seus fantasmas de loura plastificada e ver o mundo real.
A boneca atravessa as terras para além do arco-íris de carro esporte, lancha, patins e roupa brilhante, querendo restituir a ordem natural das coisas plásticas e eternas, combater o patriarcado e derrotar a celulite. Tudo no mesmo plano de importância.
No mundo real contemporâneo, a Califórnia dos Estados Unidos, Barbie e Ken são ridicularizados, parecem cafonas e over com seus patins rosas, roupas fosforescentes e visual anos 1980. Só que o cafona de ontem é o cult de hoje, e nossas memórias afetivas se tornam memorabilia.
Barbie é cantada, assediada, chamada de gostosa, se sente mal e tem que dizer para os homens que “não tem vagina” e Ken não tem pênis. Tem na verdade a famosa “vagina de boneca”, que ironicamente algumas mulheres perseguem com cirurgia plástica.
A loura Barbie é então duplamente confrontada: pelo sexismo patriarcal que acaba com seus sonhos rosas e pelo ativismo da nova geração de meninas para quem a boneca é cafona, só fez mal para as meninas, atrasou o movimento feminista em 50 anos e está destruindo o planeta ao incentivar o consumismo. Barbie descobre que, no mundo contemporâneo, os homens a olham como um objeto e as meninas a odeiam.
A caricatura rosa-feminista inicial de Barbilândia gira 360 graus. O mundo real é patriarcal, assujeita as mulheres, e uma mulher terá mais chances de ser Miss Universo do que Presidenta da República.
Outra descoberta. Mesmo no mundo patriarcal, algo acontece e parece não existir mais lugar para barbies estereotipadas. Se Barbie se acha duplamente violentada no mundo real, Ken começa a se identificar com o patriarcado, no qual “homens e cavalos” mandam em tudo.
A jornada de Ken no mundo patriarcal é hilária, e o retrato do macho tóxico, narcisista, o hétero top, o macho alfa e “analfa”, do movimento Red Pill, é devastador.
Ken, o ator Ryan Gosling, passa de um boneco coadjuvante e submisso, afinal Ken “é só o Ken” enquanto “Barbie é tudo”, a um coach ressentido de masculinidade tóxica, à la Thiago Schutz. A atuação já valeira o seu ingresso e rende gargalhadas altas das mulheres e risinhos nervosos dos homens.
“Você é o cara! Não, você é o cara!” Elogie alguém como se fosse um homem hétero: Ken descobre homens mandando em escritórios, sendo incensados nos esportes, ostentando looks machos e sendo servidos por mulheres. Ken descobre o patriarcado e fica exultante e quer replicar a tecnologia de assujeitamento das mulheres em Barbilândia.
Ao mesmo tempo, “não basta ser homem” e ter uma autoestima avassaladora, masculinidade e virilidade inabaláveis para conseguir um emprego de nível e salário altos no mundo real. Ken protagoniza algumas das melhores cenas de “homices”, machismo e sexismo clichês, apenas por ser homem.
O filme também ironiza a suposta “desvantagem” dos homens no mundo das disputas identitárias, em que ser homem, branco, hétero etc. começa a não ser tão vantajoso. “Agora é quase o oposto”, diz um executivo que explicita para Ken o jogo do mercado e do consumo diante das novas exigências de igualdade de gêneros no mundo do trabalho: “não estamos perdendo o controle do patriarcado, só escondemos melhor nossas posições”. Risinhos cúmplices do boneco.
Barbie e Ken são “vilões” naïfs e fofos na sua ingenuidade heteronormativa: o casal símbolo de todos os padrões opressores de beleza e comportamento que buscam se desinventar, mas nem tanto.
O filme também funciona como uma super campanha publicitária da boneca Barbie, claro, e da Mattel, a empresa que a criou (copiou a ideia de uma boneca alemã) e que a comercializa. Mattel e seus executivos fazem parte da narrativa, tentando colocar Barbie “dentro da caixa”. Mais uma vez, homens tentam devolver uma mulher para uma “caixa de Pandora” imaginária, vista como origem de todos os males da humanidade.
Mas a inserção da Mattel e seus executivos na trama do filme remete ao fenômeno do “woke capitalismo” e tudo em torno das guerras culturais contemporâneas em que vale consumo, cultura pop, Barbies e Kens para posicionar sua marca diante das pautas identitárias, de gênero etc.
Fique esperto, fique “acordado” (stay woke) seria a consciência contínua dessas questões, mas também as formas de apropriação pelas marcas e campanhas publicitárias de questões do presente urgente.
O que importa é que, hoje, tanto quanto uma formação feminista, antirracista e antifascista sólida, é preciso disputar a cultura pop e massiva. Por isso a extrema direita nos EUA e agora no Brasil está em campanha contra o filme da Barbie, como se disso dependesse o futuro do Ocidente e de seus filhos.
Nos EUA, acusaram o mapa desenhado com giz e traços infantis representando o mundo de fazer propaganda subliminar para a China. No Brasil, parlamentares bolsonaristas e evangélicos sustentam que é um filme de conteúdo adulto que faz apologia de temas LGBTQIA+, por ter uma atriz trans, Hari Nef, desqualificar a figura masculina e ainda levantar bandeiras ideológicas e feministas.
Ou bem a boneca é uma loura opressora que contribui para manter o patriarcado, como afirmam alguns, ou bem Barbie vai destruir o Ocidente e confundir os desejos e a sexualidade infantil, uma bomba ideológica do famigerado marxismo cultural. É esperar demais da boneca, não? Parece que certos raciocínios esquecem tudo que nós projetamos em nossos brinquedos e artefatos. Quem já brincou de casinha e boneca sabe quanto a imaginação pode ir longe dos estereótipos!
A jornada dos heróis de plástico não fala mais das inseguranças da infância como em O mágico de Oz, mas de um mundo complexo em que é preciso mudar os comportamentos, aprender com os feminismos, com os movimentos antifascistas, antirracistas, com as revisões históricas dos heróis do mundo patriarcal, aprender sobre anticonsumismo, questões de gênero etc.
Dependendo das leituras e pontos de vista, podemos encontra no filme a Barbie fascista, Barbie patricinha, Barbie consumista, mas também sua desconstrução: Barbie woke, Barbie feminista e até um certo comunismo rosa-chiclete na Barbilândia.
No filme, Barbie vai se tornando “real”. Como no filme Asas do desejo, de Wim Wenders, a boneca, como o anjo caído, passa a desejar e preferir a humanidade problemática ao seu império de plástico.
A artista sul-africana Annelies Hofmey, aliás, já buscou aproximar Barbie das mulheres “reais” e de seus dramas diários: criou barbies menstruadas, com celulite , barriguinha, às vezes com olheira e peito caído: a Trophy Wife Barbie (uma Barbie “Esposa Troféu”) foi criada com a força do ódio e do afeto pela boneca.
Ódio e afeto também são as marcas no Brasil dos memes da Barbie fascista durante o governo de Jair Bolsonaro, memes que funcionaram de forma pedagógica, política e debochada.
A Barbie “cidadã de bem” brasileira não se comove com a necessidade de cotas raciais, debocha do Bolsa Família, acredita que seu intercâmbio na Nova Zelândia e o trabalho na empresa dos pais é pura meritocracia. A Barbie médica pergunta para o mundo preocupada se “os cubanos já foram embora”, porque está louca para trabalhar em São Gabriel da Cachoeira. A Barbie fascista é um achado com sua sã desconexão com a realidade, falta de empatia e de consciência social e todo tipo de preconceitos.
A nova Barbie poderia ser um personagem de Andy Warhol, uma obra cujo paradoxo é ser profundamente superficial e vice-versa, como o mundo do consumo e da cultura de massa que pode produzir alienação, conformismo e resignação, mas também deboche, revolta e anticonsumismo consumista.
Barbie não passou despercebida por Warhol, que tem a sua Barbie em litografia, de 1985, e foi ele próprio homenageado pela Mattel com a boneca Barbie Andy Warhol, portando um vestido com a cara gigante da Barbie e uma estola pink suntuosa. Além disso, uma Barbie foi lançada, em colaboração com a Fundação Andy Warhol, com uma camiseta da série Campbell’s Soup, a lata de sopa de tomate, um casaco de pele sintética, leggings pretos e botas brancas.
Pode uma Barbie ser feminista? Barbie faz uma viagem distópica, do mundo super colorido e plástico de uma comunidade feminina de manas cor-de-rosa para o mundo do machismo, do sexismo, do assédio, do trabalho, dos corpos que envelhecem e morrem: o mundo contemporâneo. Deixa sua persona de boneca celebridade e narcísica em Barbilândia para se tornar uma “mulher comum”, mas desperta.
Bem, uma boneca não vai mudar o mundo, mas as meninas que brincam de boneca podem mudar o estado das coisas e fabular mundos. Eu nunca tive uma Barbie, porque a Susi, da Estrela, chegou no Brasil em 1966, antes da Barbie, que chegou em 1982. Então quem era criança nos anos 1970 em Rio Branco, Acre, brincava com a Susi, licenciada para o Brasil e inspirada na boneca Tammy.
Eu, com 8 ou 10 anos de idade, não fazia a menor ideia do que era uma fashion doll, minha roupas eram tudo menos fashion, com minha mãe nos vestindo (eu e minha irmã mais nova) como “par de jarros”, com laços na cabeça, com vestidos feitos por ela mesma ou pela costureira, calças quadriculadas e, às vezes, um cabelo corte de “cuia”. E não pedíamos nenhum tipo de roupa, que brotava pelo desejo e gosto de minha mãe.
Ou seja, a Susi era uma irmã mais velha descolada, mas não cumpria a sua função de atiçar o consumo de roupas ou de padrão de beleza. As Susis se multiplicaram, com roupa de ginasta, ciclismo, natação, discoteca, mas eu só tive uma Susi inesquecível, de 1971, que “fazia pose”, dobrava a perna, braços, pés e mãos e usava um macaquinho verde, com uma bolsinha, a Susi “Manhã no Parque”, com uma bota laranja e óculos na cabeça que eu achava o máximo da sofisticação adulta.
A boneca acabou como muitas bonecas: a roupa descosturada, os cabelos cortados, arrancamos e recolocamos alguns braços e pernas. Apartadas do imaginário político e estético dos anos 1970, isso era a nossa desconstrução!
A Barbie do filme parece apostar que um dia a boneca virá “descontruída” na caixa, “de fábrica”. Quando a Barbie descontruída for o “estereótipo” da Barbie, já não estaremos no mesmo lugar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Barbie: o que pode uma boneca? Artigo de Ivana Bentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU