27 Novembro 2020
Aos 11 anos, Kailash Satyarthi deu o primeiro passo de um longo trajeto que meio século depois colocaria o Nobel da Paz em suas mãos. Via que muitos companheiros abandonavam a escola porque seus pais não podiam pagar seus livros. Sendo assim, convocou um amigo, alugaram um carrinho de mão e buscaram livros usados. “Em algumas horas, tínhamos mais de 2000, de todas as séries e matérias”, relembra. “Percebi que se você tem ideias e convicções, as pessoas ajudam”.
Quinze anos depois, já engenheiro elétrico, deu o passo definitivo. Renunciou sua carreira e fundou o movimento “Bachpan Bachao Andolan” [“Salvar a Infância”] para resgatar as crianças do trabalho escravo e reinseri-las na sociedade. Foi em 1980. Hoje, com mais de 90.000 crianças salvas, Satyarthi acredita que resta muito a fazer. Mais ainda, após a Covid-19.
“A pandemia não causou as desigualdades que estamos presenciando. Só as expôs e acentuou. E assim que suspenderem as quarentenas, ficaremos com desafios muito reais e cada vez mais graves”, avalia, do coração da Índia. “Se não respeitarmos os direitos de todas as crianças durante a quarentena e esperarmos que as crianças tenham oportunidades reais depois da mesma, estamos negando a verdade”. Mas abriga esperanças. “Sempre”.
A entrevista é de Hugo Alconada Mon, publicada por La Nación, 24-11-2020. A tradução é do Cepat.
O que mais lhe preocupa com a pandemia? Que provoque um aumento substancial da escravidão infantil e do tráfico?
A crise atual não é apenas uma crise sanitária, econômica e social. É uma crise de moralidade. É uma crise de civilização. E quem mais sofre são as crianças. Em nível global, calcula-se que 10,9 milhões de crianças correm o risco de abandonar a escola. Outros 130 milhões de pessoas podem sofrer insegurança alimentar aguda no planeta.
Em apenas seis meses, podem ocorrer 1, 2 milhão de mortes adicionais de crianças menores de cinco anos por causa da desnutrição. De 71 a 100 milhões de pessoas podem entrar na pobreza extrema, o que levará ao primeiro aumento do trabalho infantil em duas décadas, já que em alguns países se estima um aumento de 0,7% no trabalho infantil para cada 1% de aumento da pobreza.
Antes da pandemia, avançávamos lentos, mas firmes em um caminho ascendente para a proteção das crianças, na maior parte do mundo. Contudo, mesmo antes da quarentena induzida pela Covid-19, o progresso nos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas relacionados à infância tinha se estagnado e a desigualdade estava crescendo.
Na crise atual, a resposta mundial extremamente desigual que tivemos diante da pandemia causou um dano muito duradouro a qualquer progresso conquistado até agora. O custo desta grave injustiça para as comunidades mais marginalizadas, no mínimo, será pago pelas crianças marginalizadas, durante as próximas décadas. Se não agirmos agora, falharemos com nossos filhos no momento em que mais precisam de nós.
Alguns países saem agora da quarentena, enquanto outros enfrentam uma segunda onda de contágios. Poderemos promover oportunidades reais para as crianças nestas circunstâncias?
A pandemia não causou as desigualdades que estamos presenciando. Só as expôs e acentuou. E assim que suspenderem as quarentenas, ficaremos com desafios muito reais e cada vez mais graves. Se não respeitarmos os direitos de todas as crianças durante a quarentena e esperarmos que as crianças tenham oportunidades reais depois da mesma, estamos negando a verdade. A verdade é que as oportunidades reais só são criadas em uma sociedade que é igualitária e compassiva com os mais vulneráveis.
Mesmo assim, há algo que considere esperançoso, nesse momento?
Sempre tenho esperanças. Vejo a esperança em nossas crianças, que lutam para se proteger, não só a si mesmas, mas também suas comunidades nestes momentos de crise. As crianças que foram resgatadas do trabalho infantil e do tráfico de pessoas por minha organização na Índia, “Bachpan Bachao Andolan”, e que atualmente ficam em nosso centro de reabilitação para receber educação, reuniram-se para costurar máscaras faciais para as comunidades próximas. As crianças sobreviventes do tráfico, que agora são adultos, viajam de bicicleta pelas aldeias mais suscetíveis ao tráfico, o que gera consciência contra o flagelo. Meus filhos são minha fonte de esperança.
Em meados de maio de 2020, a plataforma “Laureados e Líderes pela Infância” emitiu uma declaração conjunta, assinada por 88 ganhadores do Prêmio Nobel e líderes mundiais, exigindo uma participação mais justa para as crianças, ao pedir que os governos priorizem e protejam as crianças mais vulneráveis do mundo, durante e após a Covid-19, destinando 20% dos fundos de ajuda disponíveis contra a Covid-19 aos 20% de crianças mais vulneráveis do mundo e suas famílias. Este compromisso e destinação de recursos para cobrir as necessidades dos mais marginalizados do planeta salvaria 70 milhões de vidas.
Que lições extrai da recente Cúpula “Fair Share for Children”?
Os integrantes da plataforma “Laureados e Líderes pela Infância” ergueram suas vozes durante a Cúpula que foi organizada em inícios de outubro, destacando a situação crítica que as crianças mais vulneráveis do mundo enfrentam e discutindo possíveis soluções. Mais de 40 prêmios Nobel e líderes mundiais universalizaram e potencializaram o chamado para obter essa participação mais justa das crianças, com a liberação imediata de 1 trilhão de dólares, mas também para que os governos e as empresas garantam que não haja trabalho infantil em suas cadeias de fornecimento, por meio de novas leis e de seu cumprimento efetivo.
Também instaram a todos os países doadores, os credores privados e as instituições multilaterais para que cancelem toda a dívida existente dos países com rendas mais baixas para permitir que contem com fundos para a proteção social. Também se convocou para a criação de um Fundo de Proteção Social Global para proporcionar uma rede de proteção para as comunidades mais vulneráveis, e uma declaração das vacinas contra a Covid-19 como um bem comum em escala mundial e gratuito para todos.
Estas cinco demandas centrais têm como objetivo mobilizar ações urgentes, compassivas e responsáveis por parte dos governos do mundo. Devemos mitigar o risco de perder uma geração inteira por causa da pandemia.
Isso é possível? Ou é mera expressão de desejos? Deixe-me ir além: É possível que esta pandemia resulte em um ponto de inflexão? Ou buscaremos reiniciar nossas vidas como eram antes da Covid-19?
Podemos mudar por meio da globalização da compaixão. A pandemia tem o potencial de ser a mestre mais severa destes valores que mantêm a nossa sociedade unida. Nossa interconexão, nossa capacidade de sentir o sofrimento dos outros e nossa capacidade de colocar fim a esse sofrimento nunca ficou tão evidente. Pagamos um preço muito alto por esta lição, devemos nos apegar a ela e a traduzir em nossas escolhas sociais, políticas, econômicas e pessoais.
Como alguém que aos 11 anos coletou livros usados para outras crianças, qual é a sua mensagem para quem ler esta entrevista? Pode ele ou ela realmente fazer a diferença?
Devemos desenvolver um profundo sentido de compaixão por cada criança, como se fosse o nosso próprio filho. A compaixão nos levará a agir com a mesma urgência que mostraríamos se nosso próprio filho estivesse em perigo. Nessa linha, acredito que os jovens do mundo são as vozes mais poderosas da mudança. Trabalhei com milhões de vozes jovens, nas últimas décadas, e fui testemunha de como seu poder muda as políticas globais, aumenta as alocações orçamentarias e salva vidas.
Atualmente, estamos realizando a campanha mundial “100 milhões”, que pede um mundo onde cada jovem seja livre, seguro e educado. É dirigida por crianças e jovens que defendem os direitos de mais de 100 milhões de crianças e adolescentes de todo o planeta que não são livres e estão sendo abandonados à sua sorte. Como parte desta campanha, estão pedindo justiça para todas as crianças e, em particular, uma participação justa das crianças, durante a pandemia de Covid-19 e posteriormente também.
Se os líderes do mundo atuarem agora e darem às crianças marginalizadas o que precisam e as corresponde, poderemos oferecer educação para todas as crianças, poderemos apoiar as famílias mais pobres com subsídios para garantir que nunca passem fome e poderemos oferecer atendimento médico para a maioria das comunidades marginalizadas.
Estou muito orgulhoso de que os jovens ativistas que integram essa campanha “100 milhões” se unam para proteger as crianças mais marginalizadas do mundo do impacto desta pandemia. Do Sudão do Sul ao Peru, da República Checa ao Quênia, estes jovens ativistas estão tomando medidas e exigindo Justiça para todas as crianças.
Há alguma questão que não fiz e que gostaria de abordar?
Não, obrigado. Mas faço um chamado aos jovens de todo o mundo para que se unam a esta campanha e usem sua voz para a mudança.
Biografia
- Nascido em Vidisha, Índia, em 1954, estudou no Samrat Ashok Technological Institute e na Barkatullah University, formando-se em engenharia eletrônica;
- Começou a trabalhar como professor, mas comovido pela situação que o cercava, em 1980, criou a organização “Bachpan Bachao Andolan” [“Salvar a Infância”] que tirou milhões de crianças da escravidão e que promove sua educação;
- Promotor de iniciativas que provocaram reformas sociais e de políticas públicas, é autor de vários livros, entre eles, “Salvemos a infância”;
- Ganhador de diversos prêmios e reconhecimentos, em 2014, ganhou o Nobel da Paz junto com Malala Yousafzai “por sua luta contra a repressão das crianças e jovens, e pelo direito de todas as crianças à educação”.
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“A crise atual é de moralidade e civilização”. Entrevista com Kailash Satyarthi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU