07 Agosto 2023
Em Correspondencias (Editorial Gedisa), o antropólogo britânico Tim Ingold (Kent, 1948) reflete sobre a importância da escrita manual, da escuta da natureza, do trabalho em comum e do desfrutar como algo que emerge com os outros. Ingold considera que não podemos continuar transformando todas as coisas em mercadoria porque isto é menosprezar sua dignidade.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ethic, 04-08-2023. A tradução é do Cepat.
Possivelmente, nunca se escreveu tanto como hoje (e-mails, redes sociais, mensagens instantâneas…). O que muda fazer isso à mão, em vez de usar diferentes teclados (classificados por você como “deficiência”)?
Os teclados oferecem um atalho. Encurtam o pensamento, o cuidado e a devoção implicados em escrever à mão. É por isso que muitas dos milhares de milhões de palavras escritas hoje, mais do que nunca, são tão irreflexivas quanto descuidadas.
Quando você escreve à mão, o gesto manual toma o seu tempo e deixa um rastro direto na página. Está tão cheio de sentimento quanto o gesto de sua voz, na fala ou no canto. O sentimento está na linha da própria letra, independentemente das palavras que ela forme.
Quando usamos um teclado, ao contrário, as marcas depositadas na página impressa, ou projetadas na tela, estão desprovidas de sentimento. São completamente inexpressivas. Isso nos obriga a ter que recorrer a outros signos (como os emoticons) para captar o sentimento que de outra forma se perde.
Contudo, dado que esses signos são necessariamente selecionados de um repertório padronizado pré-existente, oferecem um substituto muito pobre e banal. Acredito que a dependência do teclado está contribuindo diretamente para a epidemia de irreflexão e a banalização dos sentimentos que estamos experimentando hoje.
Uma das propostas do livro é nos reconectar com o natural, com o autêntico (o corpo, as árvores, as pedras), em um momento em que tudo aposta na imitação. Como reconhecer o que importa?
Gostaria de pensar na natureza em termos de seu poder de natalidade, de iluminar continuamente um mundo em perpétua formação. Minha proposta é que reaprendamos a nos corresponder com a natureza nesse sentido.
Isso significa alinhar nossas próprias vidas (ou devires) com as vidas (ou devires) dos seres e coisas com as quais nos relacionamos. Significa acompanhar as árvores, as pedras etc., e respondê-las conforme avançamos, em vez de olhar diretamente para elas.
O que importa é a atenção e a capacidade de resposta, essenciais para a correspondência. Ambas faltam em um enfoque que aposta na inovação incessante, por meio de infinitas permutações e combinações dos fragmentos que a vida depositou em seu percurso, mas não na renovação da vida.
“O pensador e o amante compartilham sua situação de vulnerabilidade”. Também sua paixão. Existe certa indolência na sociedade atual?
Certamente, há indolência no sentido original da palavra, como falta de sentimento ou indiferença. Isso pode estar relacionado ao intenso foco em uma sociedade consumista, na satisfação dos apetites individuais.
Sendo assim, não falamos de sentimento como uma forma de nos abrirmos aos que nos cercam, mas de sentimentos como sensações puramente internas, desencadeadas por algo do qual primeiro nos apropriamos e depois consumimos. Esta é uma mercantilização dos sentimentos, por assim dizer.
É mais difícil ter uma boa ideia ou nos apaixonar por alguém que nos corresponda?
Não tenho certeza se entendi esta pergunta! Acredito que é tão complicado ter uma boa ideia quanto se apaixonar e ser correspondido.
Por falar em correspondência, no texto, você afirma que “corresponder implica sempre reciprocidade”. Em um momento em que o individualismo fragmenta não só o público, mas também o comum, a comunidade, como estimular um compromisso com o cuidado do outro?
Por exemplo, fomentando a colaboração entre as gerações mais jovens e as mais velhas, em vez de dividi-las em diferentes coortes geracionais que pouco têm a ver umas com as outras.
E é necessário deixar de pensar no cuidado como uma espécie de prestação institucional de serviços, com o cuidador de um lado e a pessoa cuidada do outro. Não se pode cuidar sem ser cuidado e vice-versa.
O mundo está em crise porque esquecemos a arte de corresponder, afirma. Como corresponder ao outro? Estamos a tempo de modificá-lo?
Não tenho certeza. Fala-se muito em “mudança de comportamento”, mas não acredito que seja uma questão de comportamento, nem que ninguém tenha o poder de mudá-lo.
Contudo, quando as instituições entram em colapso, as pessoas precisam improvisar para seguir em frente, e tenho a esperança de que por meio dessas improvisações voltaremos a aprender a corresponder.
“Todo conhecimento é lixo”. Esta declaração, escrita por um antropólogo, é uma total provocação...
Não quis dizer que todo o conhecimento é realmente um lixo, mas que é um lixo do ponto de vista da indústria de produção do conhecimento, que considera o conhecimento como o produto de um processo de entrada-saída. Você coloca dados em um extremo e o conhecimento sai do outro.
Nessa perspectiva, também é um lixo porque o conhecimento que é valorizado somente como inovação está fadado, quase que instantaneamente, a se tornar obsoleto, tão logo apareça a próxima inovação.
Volto à pergunta de Hannah Arendt: amamos o mundo o suficiente para nos responsabilizarmos por ele?
Isso é o que Arendt entendia por amor mundi. Sua pergunta partia do que ela via (nos anos 1950) como “a crise da educação”. Isso decorria do fato, em sua percepção, de que a educação pública havia renunciado à sua responsabilidade de introduzir pessoas novas em um mundo velho, preferindo, ao contrário, prepará-las para um novo e controlar sua admissão nele. Isso, pensou, não é educação, mas propaganda.
Ainda que poderia se expressar de modo diferente hoje, penso que sua crítica continua sendo pertinente. Remonta à sua pergunta anterior sobre como estimular o compromisso de cuidar do outro.
Eu disse que precisamos reunir novamente os jovens e os velhos para que possam colaborar para o bem comum. Devemos confiar a nossos idosos, que verdadeiramente aprenderam o que significa amar o mundo, o cuidado e a educação dos jovens.
Você reivindica o “rigor amador” (“um rigor flexível e apaixonado pela vida, frente ao rigor profissional, que provoca rigidez e paralisia”). Em uma sociedade cada vez mais especializada, como aliar o entusiasmo do aprendiz à necessidade de profissionalismo na vocação?
O amadorismo e o profissionalismo não precisam estar em conflito. Desde que prevaleça uma atmosfera de confiança e companheirismo, o amador pode ser um profissional e o profissional um amador. A tensão entre amadorismo e profissionalismo surgiu devido a mudanças, nas últimas duas ou três décadas, no que significa ser “profissional”.
Os profissionais eram vistos como guardiões do conhecimento público e encarregados de sua aplicação criteriosa para o bem comum, até ser credenciados como especialistas em seus campos de especialização com habilidades técnicas a prestar (em troca de uma remuneração), sem levar em conta como os clientes que as utilizam poderiam aproveitar seus serviços.
Essa mudança coincidiu com o surgimento do curriculum vitae como a medida do valor de um indivíduo e do salário que pode exigir. Precisamos voltar à ideia da profissão como uma vocação, mais do que como uma especialidade.
Por que “a sociologia deve começar nas florestas”?
Porque as árvores são os seres mais sociáveis! Não somos mais do que olheiros em suas longas conversas.
Como a mudança climática impacta nas palavras, em nosso modo de nos relacionarmos com a linguagem?
Isso é difícil de dizer. Nesse momento, o maior impacto em nossa relação com a linguagem vem da revolução digital, e isso tende a ofuscar todo o resto.
A mudança climática, como ideia, pertence à Grande Ciência, e a ciência sempre desconfiou da linguagem, pensando que as palavras se interpõem no caminho de uma realidade que existe lá fora, independentemente do que tenhamos a dizer a respeito. Portanto, as palavras científicas devem ser estéreis, neutras, insensíveis. Por isso, penso que o discurso da mudança climática empobrece a linguagem.
Cada idioma, no entanto, possui um rico vocabulário de palavras meteorológicas, estreitamente relacionado com as observações cotidianas dos falantes, bem como com seus estados de ânimo e motivações. Esses vocabulários estão se perdendo, junto com as habilidades de observação das quais dependem. Estão se perdendo para a ciência.
Você reflete sobre como as condições de vida afetam a saúde mental e física (a falta de moradia, por exemplo). Quando nosso contexto é adverso, como conservar ou preservar a alegria, se é que é possível?
Isto é difícil. Mesmo aqui, no Reino Unido, que se supõe ser um país rico, muitas pessoas se veem obrigadas a viver em condições espantosas, e isso torna suas vidas miseráveis. É uma ilusão romântica supor que as pessoas podem encontrar alegria na indigência.
Ter um lugar digno e aquecido para morar é como ter ar puro para respirar ou água para beber. É algo que todos nós deveríamos poder ter como certo. Não é assim em nossa sociedade porque essas coisas se transformaram em mercadorias, ficando fora do alcance de quem não tem os meios para adquiri-las.
O desfrute também foi mercantilizado. Transformou-se em entretenimento. No entanto, o entretenimento não traz alegria. É uma forma de consumo e, como em todas as formas de consumo, a satisfação que traz é isolada e de curta duração.
No entanto, o desfrute não é um bem que pode ser adquirido e depois gasto. Só pode ser coproduzido, não por si só, mas no curso de outras coisas. Sua essência é a espontaneidade.
Disso, deduz-se que a melhor forma de fomentar a alegria é criando situações em que as pessoas possam produzir algo juntas, por exemplo, trabalhando em um jardim comunitário. O verdadeiro inimigo do desfrute é o isolamento do consumidor individual.
Não se trata, portanto, apenas de habitar o mundo, mas de estar atento à vida como dimensão fundante que perpassa todos os seres. O que é necessário para isso?
Simplesmente, que voltemos a estar atentos. A perda de atenção, provocada pela ilusão de que já sabemos o que existe, está no cerne do nosso mal-estar contemporâneo. Deve-se a que priorizamos o conhecimento sobre a sabedoria, ou melhor, confundimos esta última com o primeiro.
O conhecimento é como um castelo que construímos ao nosso redor. Ele nos defende dos ataques do mundo para além de seus muros. No entanto, quanto mais forte é o castelo e mais altos os muros, menos vemos o que está além e menos atenção prestamos nele.
Ser sábio é derrubar os muros, derrubar nossas defesas e nos abrir para o mundo em que estamos. É uma espécie de desarmamento. É claro, há um risco nisso: deixa-nos vulneráveis e inseguros.
Não estou sugerindo que possamos abrir mão totalmente do conhecimento. Trata-se de reestabelecer o equilíbrio entre o conhecimento e a sabedoria. Hoje, a balança se inclinou desastrosamente para o conhecimento, à custa da sabedoria.
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“A perda de atenção está no cerne do nosso mal-estar contemporâneo”. Entrevista com Tim Ingold - Instituto Humanitas Unisinos - IHU