Por: André | 29 Janeiro 2014
Enquanto no âmbito das ciências sociais as escolas e teorias se multiplicam, o antropólogo britânico Tim Ingold (foto) parece responder apenas a si mesmo. Dificilmente classificável em uma corrente em particular, suas contribuições teóricas para a antropologia convertem-no em uma figura de primeira linha. Professor de Antropologia Social da Universidade de Aberdeen (Escócia), Ingold esteve em Buenos Aires no final de 2012, proferiu uma conferência na Universidade Nacional de General San Martín e também foi a Córdoba, onde deu um curso no Museu de Antropologia da Universidade de Córdoba.
Fonte: http://clar.in/1jF54oI |
Ambientes para a vida. Conversações sobre a humanidade, conhecimento e antropologia é o título do seu único livro traduzido para o espanhol.
Sobre o papel da antropologia no presente e no futuro, na Europa e na América Latina, conversou com o suplemento Ñ.
A entrevista é de Vivian Scheinsohn e está publicada no jornal argentino Clarín, 08-01-2013. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Que definição cabe à antropologia nesta época e neste contexto?
Temos que ir além da ideia de que a antropologia estuda as culturas. Precisamos pensá-la como uma disciplina especulativa, que olha as possibilidade e potencialidades dos seres humanos. Por isso, segundo a minha definição, é uma filosofia que inclui as pessoas. Não basta pensar como foi ou é a vida humana em certos lugares ou momentos, mas como poderia ser, que tipo de vida poderíamos viver. A antropologia deveria olhar para o futuro através da lente do passado. Deve ser especulativa e não apenas uma disciplina empírica.
E então o que distingue a antropologia do resto das ciências sociais?
Pode-se pensar nas ciências sociais como a formação de uma paisagem onde cada disciplina é definida pelo lugar onde se situa. Pode-se ver então que a antropologia está falando aos sociólogos, aos historiadores, aos linguistas. Se se toma a sociologia, os sociólogos estão falando aos antropólogos, aos historiadores, mas também aos economistas ou aos historiadores do direito, aos quais a antropologia não fala. Então vemos diferentes relações com diferentes disciplinas. Todas estão conectadas, mas ocupam diferentes posições nesta paisagem. O ambiente da pesquisa pode ser definido como essa paisagem, com diferentes colinas ou montanhas onde está a antropologia. O ponto é que cada disciplina não é mais que um grupo de pessoas fazendo coisas e conversando. A essa conversação se une muita gente, cada qual com seu próprio campo de referência, em termos de quem leram, onde andaram, em que país estiveram. Por isso não creio que se possa falar de disciplinas entre si como se fossem uma espécie de supraorganismo. As ciências sociais só se distinguem entre si pelas conversações que tiveram. E isso é o divertido: que todos trazemos algo diferente a essa conversa. E nunca se sabe o que vai surgir disso.
No entanto, essa conversa interdisciplinar não parece funcionar completamente bem. Às vezes, certas disciplinas jogam seu próprio jogo e isso faz com que certos temas que foram amplamente debatidos em uma disciplina sejam redescobertos por outra.
Sim, e isso é extremamente problemático. Os antropólogos do Reino Unido têm problemas para falar com as ciências políticas. Também temos um problema similar com a psicologia, na qual se aceitam como evidentes pressupostos que nós desconstruímos há tempo. E isto não afeta apenas as ciências sociais. Por exemplo, os biólogos começaram a dar-se conta de que a teoria darwinista padrão não era suficiente para explicar a cultura. Então, agora aparece a Teoria da Construção de Nicho, isto é, a ideia de que os humanos são animais que continuamente estão construindo seu nicho e que os efeitos dessa construção condicionam a forma como as futuras gerações vivem. Mas estão reinventando a pólvora. Essa ideia está bem estabelecida na antropologia há bastante tempo. A única coisa que acrescentaram é a formalização. Fazem-na de uma maneira matemática, de modo que as pessoas do âmbito das ciências naturais possam entender essa ideia e respeitá-la. Não estão preparados para entender ou respeitar uma teoria se não estiver colocada dessa forma. Não é tanto, portanto, uma nova teoria, mas a tradução para uma nova linguagem de algo que já sabíamos há tempo. Por isso penso que uma das principais tarefas da antropologia é demonstrar que há formas distintas de ver as coisas, diferentes do que hoje é corrente na economia ou na psicologia. Nesse sentido a antropologia é uma disciplina antidisciplinar, já que é contra a ideia de que todo o terreno do conhecimento pode ser dividido em diferentes países, que estudam diferentes disciplinas. Além disso, a antropologia é totalmente antiacadêmica. Apoiamo-nos no mundo acadêmico para existir, mas sempre desafiando o modelo acadêmico de produção de conhecimento. A antropologia nos diz todo o tempo que as pessoas com as quais trabalhamos conhecem o que está acontecendo, que deveríamos aprender delas.
Você foi um dos primeiros a criticar a separação que se fez ao longo da história entre natureza e cultura. Este é um debate que está havendo agora em outras disciplinas, fora da antropologia. E embora haja um acordo sobre o fato de que se deve superar essa divisão, não parece existir um acordo em relação a para onde se dirige essa alternativa. Qual seria a sua proposta?
A minha proposta é processual, relacional e vinculada ao desenvolvimento ou crescimento. Os conceitos de natureza e cultura são substantivos. Tendemos a pensar no mundo como algo que já existe de saída. Mas em vez disto, suponhamos que o mundo do qual falamos seja um mundo que se está fazendo o tempo todo, que não é nunca o mesmo de um momento ao outro. Em cada momento este mundo está se revelando, desenvolvendo. Temos, então, que pensar em termos de verbos, mais que de substantivos, como algo que está se transformando no que é. E então podemos pensar nas formas que vemos surgindo desse processo. Por exemplo, o biólogo supõe que a forma já está prefigurada no DNA de um organismo e a única coisa que a vida faz é revelar essa forma. A alternativa que proponho é pensar que essas formas de vida, de organismos, de artefatos, são padrões emergentes que surgem de um processo de desenvolvimento ou crescimento que está acontecendo de maneira contínua. As formas surgem do processo que lhes dá lugar. Devemos começar a falar, então, de desenvolvimento.
Fala do desenvolvimento em nível dos indivíduos ou dos grupos?
Não vejo que haja indivíduos versus grupos. O organismo é um lugar num campo de relações. Voltemos outra vez à paisagem: pode-se tomar um determinado lugar dentro dessa paisagem e esse lugar estará crescendo, estará se desenvolvendo: isso é o organismo. Temos que deixar de pensar em indivíduos e grupos e começar a pensar em posicionalidade, em lugares ou pontos em um campo de relações. Isso é que me satisfaz na Teoria dos Sistemas de Desenvolvimento, que permite pensar nesses termos. Por exemplo, normalmente se pensa nas habilidades como sendo transmitidas de uma geração a outra. Para mim, nada se transmite. As habilidades crescem novamente, são recriadas com cada geração. O que uma geração transmite à seguinte são os contextos de aprendizagem nos quais os novatos podem redescobrir por si mesmos o que seus predecessores já conheciam. Vamos a um exemplo: suponhamos que haja um granjeiro que tem uma granja e que muitas gerações depois seus descendentes seguem cultivando essa granja. As pessoas que se situam dentro da Teoria da Construção de Nicho diriam que esse é um exemplo de herança ecológica, já que o primeiro granjeiro criou um nicho e o transmitiu aos seus descendentes. Mas a realidade é que essa terra mudou. Num sentido legal se pode dizer que o descendente herdou a terra, mas num sentido prático o descendente trabalha essa terra e a mantém produtiva graças ao seu trabalho. Assim, seguramente usou técnicas totalmente diferentes das que usava seu avô. E descobriu as coisas que seu avô já conhecia, mas ao mesmo tempo descobriu coisas novas. O trabalho de uma geração armou as condições do trabalho da geração seguinte. E isso não é outra coisa que a história. O que nos leva a que devemos romper a divisão entre história e evolução. Não podemos ter uma teoria em história e outra em evolução. Necessitamos de uma teoria geral da evolução que enfrente o darwinismo, como fez a teoria de Einstein com a de Newton. A física newtoniana serve, funciona, mas sabemos que não é totalmente correta e que o universo não funciona exatamente assim. O mesmo acontece com o paradigma darwiniano: funciona na maior parte do tempo, mas no que diz respeito à história humana não é exatamente assim. Necessitamos de uma teoria para a qual o darwinismo seja um caso especial.
No mapa acadêmico você não parece uma figura facilmente classificável. Você, como se definiria?
Bom, é engraçado porque eu sempre me pensei como um antropólogo. Sempre pensei que a antropologia é a única disciplina que pode unir as ciências naturais e as humanidades, de uma forma que não seja reducionista e sem tirá-las da realidade, mas comprometida com ela. Mas foi nessa direção e ao fazê-lo que me afastei cada vez mais da antropologia tal como é praticada hoje. Creio que isso diz também do que aconteceu à antropologia nestes últimos tempos – pelo menos na Grã-Bretanha: está fora dos debates importantes. Nos debates que se ouve nos meios de comunicação, a gente vê historiadores, psicólogos, biólogos, mas não antropólogos. Estão fora de todas as grandes perguntas: o que significa o ser humano, os problemas ambientais, etc. Os antropólogos têm coisas terrivelmente importantes para dizer sobre isso mas, ao invés disso, ouve-se economistas ou psicólogos difundindo mal-entendidos que levaremos anos para corrigir. Isto não é inteiramente culpa dos antropólogos, porque a popularização da ciência na mídia depende de uma fórmula particular. Quando se trabalha na publicidade é preciso estar muito consciente do que as pessoas querem ou pensam, dar-lhe uma guinada e vendê-lo sob uma nova forma. A popularização da ciência faz exatamente isso. Toma o que as pessoas pensam, dá-lhe um novo enfoque e o oferece novamente ao público dizendo-lhe que é o último grito em pesquisa científica. Obviamente, os antropólogos não estão preparados para jogar esse jogo. A antropologia trabalha para colocar todas as certezas em questão. E isso as pessoas não gostam. Por isso, é difícil para a antropologia vender-se sem comprometer seus princípios. Mas também não me aprece certo que se tenham abandonado as grandes perguntas. Para despertar algum interesse, a antropologia deveria fazer-se essas perguntas. A disciplina está sofrendo uma certa crise de confiança, possivelmente relacionada com um ambiente acadêmico inseguro: não há muitos postos de trabalho e por isso os estudiosos se ocupam dos temas pequenos, tratando de sobreviver enfatizando o tema que sentem que os faz diferentes. E isso não é uma boa estratégia se queres sair a público e fazer barulho.
Que observa de diferente entre a antropologia britânica e a que se faz nos diversos países da América Latina?
Durante esta visita me encontrei com pessoas da Universidade de San Martín e foi muito interessante porque, por um lado, a antropologia que eles estão ensinando é uma antropologia social muito tradicional, que me era familiar nos anos 1960, quando era estudante. Mas eles me dizem que essa antropologia significa algo muito diferente na Argentina. Porque aqui [na Argentina] a antropologia política se compromete com as brigas que há no país, ao passo que na Grã-Bretanha a antropologia política está desconectada da vida política do país. Outro é o caso do Brasil: estão muito influenciados pela França e pela América do Norte, mas são o suficientemente fortes, engenhosos e poderosos para desenvolver suas próprias aproximações. Do resto da América Latina não posso falar muito.
Finalmente, qual é o papel que a antropologia tem nesta época?
Todas as disciplinas têm altos e baixos. Há momentos em que algumas são muito poderosas e tomam a dianteira das outras. Nos anos 1950 e começo de 1960, a antropologia estava na vanguarda. Os antropólogos britânicos eram líderes entre os intelectuais: Edmond Leach, Evans Pritchard, Raymond Firth, estavam no rádio, escreviam nos jornais, eram figuras públicas. Atualmente, isso não acontece e há outras disciplinas que tomaram a dianteira. Creio que esse é um dos resultados da tendência contemporânea da antropologia de se retrair na etnografia e se esquecer das grandes perguntas.
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A antropologia em crise. Entrevista com Tim Ingold - Instituto Humanitas Unisinos - IHU