No dia 26 passado, na Capela Sistina, o Papa Francisco recebeu em audiência os artistas participantes do encontro promovido por ocasião do 50º aniversário da inauguração da Coleção de Arte Moderna e Contemporânea dos Museus do Vaticano. Cerca de 200 pintores, escultores, arquitetos, escritores, poetas, músicos, diretores e atores estavam presentes.
O discurso foi publicado pela Santa Sé, 23-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No 'Leia mais' são referidos dois depoimentos. Um de Roberto Saviano, jornalista e escritor italiano, autor da obra mundialmente famosa intitulada 'Gomorra'. O segundo é da escritora italiana Elena Stancanelli.
Para o primeiro, "Francisco sublinhou a necessidade de olhar para o horror humano para tirar disso a beleza. Ou seja, a verdade. A verdade é beleza. E a beleza não é só cosmética ou equilíbrio das figuras, como destacou o Papa: aquela é “uma beleza falsa, cosmética, uma maquiagem que esconde em vez de revelar”. E, além disso, é esclarecedora a diferença que Francisco indicou entre equilíbrio e harmonia: “Para criar a harmonia, é preciso primeiro o desequilíbrio”.
Por sua vez, a escritora italiana exclama: "Há quanto tempo não ouvíamos um discurso tão forte e revolucionário sobre o papel da arte? Acostumados como somos a ouvir lamentações sobre um passado qualquer e, portanto, a dar pouco crédito ao presente e às suas expressões".
Bom dia, bem-vindos! Aqui, tudo é arte, lá [aponta para os afrescos], vocês, todos! Bem-vindos!
Agradeço-lhes por terem acolhido o meu convite. A presença de vocês me alegra, porque a Igreja sempre teve uma relação com os artistas que pode ser definida ao mesmo tempo como natural e especial. Trata-se de uma amizade natural, porque o artista leva a sério a profundidade inesgotável da existência, da vida e do mundo, até mesmo em suas contradições e em seus aspectos trágicos. Essa profundidade corre o risco de se tornar invisível ao olhar de muitos saberes especializados, que respondem a exigências imediatas, mas custam a ver a vida como uma realidade poliédrica. O artista recorda a todos que a dimensão na qual nos movemos, mesmo quando não temos consciência disso, é a do Espírito. A arte de vocês é como uma vela que se enche do Espírito e nos faz ir em frente. A amizade da Igreja com a arte, portanto, é algo natural.
Mas é também uma amizade especial, sobretudo se pensarmos nos muitos trechos de história percorridos juntos, que pertencem ao patrimônio de todos, crentes ou não crentes. Conscientes disso, esperamos novos frutos também no nosso tempo, em um clima de escuta, de liberdade e de respeito. As pessoas precisam desses frutos, de frutos especiais.
Romano Guardini escrevia que “o estado em que o artista se encontra enquanto cria é afim ao da criança e também ao do vidente” (L’opera d’arte, Bréscia, 1998, p. 25). Parecem-me duas comparações interessantes. Segundo ele “a obra de arte abre um espaço em que o homem pode entrar, em que pode respirar, mover-se e tratar das coisas e dos homens, que se tornam abertos” (ibid., p. 35). É verdade, quando se trabalha na arte, as fronteiras se afrouxam e os limites da experiência e da compreensão se dilatam. Tudo parece mais aberto e disponível. Adquire-se, então, a espontaneidade da criança que imagina e a argúcia do vidente que capta a realidade.
Sim, o artista é uma criança – não deve soar como uma ofensa. Significa que ele se move sobretudo no espaço da invenção, da novidade, da criação, de trazer ao mundo algo que nunca havia sido visto dessa forma. Ao fazer isso, ele desmente a ideia de que o ser humano é um ser para a morte. O ser humano deve fazer as contas com sua mortalidade, é verdade, mas não é um ser para a morte, mas sim para a vida.
Uma grande pensadora como Hannah Arendt afirma que o próprio do ser humano é viver para trazer a novidade ao mundo. Essa é a dimensão da fecundidade do ser humano. Trazer a novidade. Na fecundidade natural, cada filho também é uma novidade. Abrir e trazer novidade. Vocês, artistas, realizam isso fazendo valer a originalidade de vocês. Em suas obras, vocês sempre colocam vocês mesmos, como seres irrepetíveis como todos nós somos, mas com a intenção de criar ainda mais. Quando o talento lhes auxilia, vocês trazem à tona o inédito, enriquecem o mundo com uma realidade nova.
Penso em algumas palavras que lemos no livro do profeta Isaías, quando Deus diz: “Eis que estou fazendo uma coisa nova, está brotando agora: vocês não se dão conta?” (43,19). E no Apocalipse confirma: “Eis que faço novas todas as coisas” (21,5). A criatividade do artista parece, assim, participar da paixão generativa de Deus, aquela paixão com a qual Deus criou. Vocês são aliados do sonho de Deus! Vocês são olhos que olham e que sonham. Não basta apenas olhar, é preciso também sonhar.
Um escritor latino-americano [Miguel Ángel Asturias] dizia que nós, as pessoas, temos dois olhos: um para olhar aquilo que vemos e outro para olhar aquilo que sonhamos. E, quando a pessoa não tem esses dois olhos ou apenas parte de um ou do outro, falta-lhe alguma coisa. Ver aquilo que sonhamos... A criatividade do artista: não basta apenas olhar, é preciso sonhar. Nós, seres humanos, ansiamos por um mundo novo que não veremos plenamente com os nossos olhos, mas o desejamos, buscamos, sonhamos com ele.
Vocês, artistas, então, têm a capacidade de sonhar novas versões do mundo. E isto é importante: novas versões do mundo. A capacidade de introduzir novidade na história. Por isso, Guardini diz que vocês também se assemelham aos videntes. Vocês são um pouco como os profetas. Sabem olhar as coisas tanto em profundidade quanto em distância, como sentinelas que estreitam os olhos para perscrutar o horizonte e sondar a realidade para além das aparências. Nisso vocês são chamados a escapar do poder sugestivo daquela suposta beleza artificial e superficial hoje difundida e muitas vezes cúmplice dos mecanismos econômicos que geram desigualdades. Essa beleza não atrai, porque é uma beleza que nasce morta. Não há vida ali, não atrai. É uma beleza falsa, cosmética, uma maquiagem que esconde em vez de revelar.
Em italiano, isso se chama “trucco”, porque tem algo de engano. Vocês se mantêm distantes dessa beleza, a arte de vocês quer agir como consciência crítica da sociedade, tirando o véu da obviedade. Vocês querem mostrar aquilo que faz pensar, que torna vigilante, que revela a realidade também nas suas contradições, em seus aspectos que é mais cômodo ou convenientes manter escondidos. Como os profetas bíblicos, vocês nos confrontam com coisas que às vezes incomodam, criticando os falsos mitos de hoje, os novos ídolos, os discursos banais, as ciladas do consumo, as artimanhas do poder. Isto é interessante na psicologia, na personalidade dos artistas: a capacidade de ir além, em tensão entre a realidade e o sonho.
E muitas vezes vocês fazem isso com a ironia, que é uma virtude maravilhosa. Duas virtudes que nós não cultivamos tanto: o senso de humor e a ironia. Devemos cultivá-las mais. A Bíblia é rica em momentos de ironia, em que se zomba da presunção de autossuficiência, da prevaricação, da injustiça, da desumanidade quando se revestem de poder e às vezes até de sacralidade.
Vocês fazem bem em serem também sentinelas do verdadeiro sentido religioso, às vezes banalizado ou comercializado. Ao serem videntes, sentinelas, consciências críticas, sinto que vocês são aliados para tantas coisas que me são caras, como a defesa da vida humana, a justiça social, os últimos, o cuidado da casa comum, o sentimento de que somos todos irmãos. Trago no coração a humanidade da humanidade, a dimensão humana da humanidade. Porque também é a grande paixão de Deus.
Uma das coisas que aproximam a arte da fé é o fato de incomodar um pouco. A arte e a fé não podem deixar as coisas como estão: elas as mudam, as transformam, as convertem, as movem. A arte nunca pode ser um anestésico; dá paz, mas não adormece as consciências, mantém-nas despertas. Vocês, artistas, muitas vezes tentam sondar até mesmo os infernos da condição humana, os abismos, as partes obscuras. Nós não somos apenas luz, e vocês nos lembram disso. Mas é preciso jogar a luz da esperança nas trevas do humano, do individualismo e da indiferença. Ajudem-nos a entrever a luz, a beleza que salva.
A arte sempre esteve ligada à experiência da beleza. Simone Weil escrevia: “A beleza seduz a carne para obter a permissão para passar até à alma” (L’ombra e la grazia, Bolonha, 2021, p. 193). A arte toca os sentidos para animar o espírito e faz isso por meio da beleza, que é o reflexo das coisas quando são boas, justas, verdadeiras. É o sinal de que algo tem plenitude: é então que dizemos espontaneamente: “Que belo!”. A beleza nos faz sentir que a vida está orientada para a plenitude. Na verdadeira beleza, assim, começa-se a sentir a nostalgia de Deus.
Muitos esperam que a arte volte a frequentar mais a beleza. Certamente, como eu dizia, há também uma beleza fútil, uma beleza artificial e superficial, até mesmo enganadora, a da maquiagem. Mas acho que há um critério importante para discernir: o da harmonia. A beleza verdadeira, de fato, é reflexo da harmonia. Na teologia – é interessante – os teólogos descrevem a paternidade de Deus, a filiação de Jesus Cristo, mas, quando se trata de descrever o Espírito Santo: o Espírito é a harmonia. Ipse harmonia est. O Espírito é aquilo que faz a harmonia.
E o artista tem algo desse Espírito para fazer a harmonia. Essa dimensão humana do espiritual. A beleza verdadeira, de fato, é reflexo da harmonia. Se assim posso dizer, ela é a virtude operativa da beleza. É seu espírito de fundo, no qual age o Espírito de Deus, o grande harmonizador do mundo. A harmonia é quando há partes, diferentes entre si, mas que compõem uma unidade, diferente de cada uma das partes e diferente da soma das partes. É uma coisa difícil, que só o Espírito pode tornar possível: que as diferenças não se tornem conflitos, mas diversidades que se integram; e ao mesmo tempo que a unidade não seja uniformidade, mas hospede aquilo que é múltiplo.
A harmonia faz esses milagres, como em Pentecostes. Sempre me impressiona pensar no Espírito Santo como aquele que permite fazer as maiores desordens – pensemos na manhã de Pentecostes – e depois faz a harmonia. Que não é equilíbrio, não. Para fazer a harmonia, é preciso primeiro o desequilíbrio; a harmonia é outra coisa em relação ao equilíbrio.
Como é atual esta mensagem: estamos em um tempo de colonizações ideológicas midiáticas e de conflitos dilacerantes; uma globalização homogeneizadora convive com muitos localismos fechados. Esse é o perigo do nosso tempo. A Igreja também pode ser afetada por isso. O conflito pode agir debaixo de uma falsa pretensão de unidade; assim também as divisões, as facções, os narcisismos.
Precisamos que o princípio da harmonia habite mais o nosso mundo e expulse a uniformidade. Vocês, artistas, podem nos ajudar a abrir espaço para o Espírito. Quando vemos a obra do Espírito, que é criar a harmonia das diferenças, não aniquilá-las, não uniformizá-las, mas harmonizá-las, então entendemos o que é a beleza. A beleza é aquela obra do Espírito que cria harmonia. Irmãos e irmãs, que a genialidade de vocês percorra esse caminho!
Caros amigos, estou feliz por este encontro com vocês. Antes de me despedir de vocês, ainda tenho uma coisa a lhes dizer, que está no meu coração. Gostaria de lhes pedir que não se esqueçam dos pobres, que são os preferidos de Cristo, de todos os modos como se é pobre hoje. Os pobres também precisam da arte e da beleza. Alguns experimentam formas muito duras de privação da vida; por isso, precisam mais. Geralmente, não têm voz para se fazer ouvir. Vocês podem se fazer intérpretes do grito silencioso deles.
Agradeço-lhes e confirmo a vocês a minha estima. Desejo que as obras de vocês sejam dignas das mulheres e dos homens desta terra e deem glória a Deus, que é o Pai de todos, e a quem todos buscam, também por meio da arte. E, por fim, peço-lhes, harmonicamente, que rezem por mim. Obrigado.