18 Dezembro 2014
Em novo livro, o jornalista italiano Roberto Saviano radiografa o negócio das drogas no México e na Colômbia. Na noite de 8 de maio de 2008, Édgar Guzmán López, de 22 anos, e três amigos caminhavam em direção ao carro parado no estacionamento de um shopping de Culiacán, capital do estado mexicano de Sinaloa, quando um grupo de 15 homens armados se aproximou e abriu fogo. Três das quatro vítimas do atentado morreram, incluindo Édgar. O jovem era filho de Joaquín “El Chapo” Guzmán Loera, líder do cartel de Sinaloa. Sua morte foi uma vingança dos Béltran Leyva, ex-aliados de El Chapo que negociavam um acordo com Los Zetas.
A entrevista é de Leonardo Cazes, publicada pelo jornal O Globo, 13-12-2014.
Los Zetas nasceram em fins dos anos 1990 como o braço armado do cartel do Golfo, formado por três dezenas de desertores do esquadrão de elite do Exército mexicano. Treinados por americanos, israelenses e franceses, são considerados imbatíveis do ponto de vista militar e, depois de alguns anos, decidiram criar seu próprio cartel e entraram em conflito com os antigos chefes. Hoje, são conhecidos pela sua brutalidade e por filmar e publicar na internet suas execuções.
Histórias como essa, de aliados que viram inimigos, se multiplicam pelas páginas de “Zero zero zero”, livro do jornalista italiano Roberto Saviano lançado no Brasil pela Companhia das Letras. A obra apresenta uma espécie de economia política da cocaína, chamada por ele de “petróleo branco”: dos produtores, principalmente na Colômbia, aos consumidores de todo mundo. O jornalista mostra como o eixo de poder do narcotráfico saiu do país andino, na década de 1980, para o México, a porta de entrada para o maior mercado da droga, os Estados Unidos. O livro disseca as parcerias e conflitos entre o “narcoestado” mexicano e o governo do país, hoje envolto numa crise política após o assassinato de 43 estudantes, em setembro — acredita-se que policiais entregaram os jovens a traficantes.
Em entrevista por e-mail ao GLOBO, Saviano, que ficou mundialmente famoso ao expor a extensão do poder da máfia italiana em 2006, no livro “Gomorra”, o que o obrigou a andar com escolta policial 24 horas por dia por conta de ameaças de morte de organizações criminosas de seu país, afirma que o México construiu uma “Commonwealth do tráfico de drogas” na América Latina, numa comparação com a organização intergovernamental que reúne ex-colônias britânicas:
— As guerras sangrentas entre os cartéis, que se enfrentam no México e na Colômbia, promovem gradualmente uma mudança das rotas de distribuição para países vizinhos, que também são produtores, e cujos governos não se esforçam para combater o tráfico já que é uma das principais atividades econômicas desses países.
Eis a entrevista
No livro, você descreve um “império da cocaína”, que envolve milhares de pessoas, aviões, barcos, carros. Como essas megacorporações da droga conseguem funcionar na ilegalidade?
Eles trabalharam sob o silêncio total da imprensa (salvo algumas exceções) e a indiferença dos governos. Eles conseguem fazer isso porque é o dinheiro dessas organizações criminosas que, muitas vezes, impulsiona setores inteiros da economia legal. Há também uma triste crença de que falar sobre a máfia não traz nenhum ganho eleitoral. Acredita-se, erroneamente, que falar sobre a máfia significa exportar uma imagem mafiosa do próprio país. Mas não falar sobre a máfia só a favorece. É o que acontece hoje.
Quais são as relações entre a economia ilegal do narcotráfico e a economia legal em geral?
As ligações são estreitíssimas. O fluxo de dinheiro oriundo do tráfico de drogas irriga a economia legal. Gigantes financeiros, como o Citibank e o HSBC, foram obrigados a negociar punições e sofreram sanções econômicas muito duras do governo dos Estados Unidos por terem lavado dinheiro de organizações criminosas. Mas essa é apenas a ponta do iceberg. Os bancos precisam do capital dessas organizações para não afundarem. E esse dinheiro vai financiar empresas limpas, obras públicas. Estamos assistindo, impotentes, a uma progressiva “mafialização” da sociedade.
É possível apontar semelhanças entre a máfia italiana, objeto do seu livro “Gomorra”, e os cartéis do México e da Colômbia?
Eles compartilham a noção de que só vão sobreviver e triunfar se seus negócios permanecerem envoltos no silêncio. Eles são obcecados por tudo o que é dito sobre eles e sobre a narrativa que a própria organização faz de si mesma. Esses grupos assassinam jornalistas e magistrados, desaparecem com blogueiros e pessoas que escrevem nas redes sociais sobre eles. Foi o que aconteceu com Nena de Laredo, em 2011. No jornal local de Nuevo Laredo, onde trabalhava, ela assinava como Maria Elizabeth Macías Castro. No Twitter e no site “Nuevo Laredo en Vivo”, usava o pseudônimo “La NenaDLaredo”, escrevia sobre os negócios dos cartéis mexicanos e conclamava as pessoas a denunciarem fatos relacionados ao tráfico de drogas. Ela acreditava que, para combater esses grupos, era preciso começar compartilhando informação. No dia 24 de setembro de 2011, seu corpo foi encontrado numa estrada próxima a Nuevo Laredo, aos pés da estátua de Cristóvão Colombo. Em cima do monumento, foi colocada sua cabeça decapitada. Isso foi obra de um dos cartéis mais poderosos e violentos do país, Los Zetas. Não há ambiguidade nessa mensagem: quem falar sobre as organizações criminosas morre.
Você já sofreu ameaças de morte e é obrigado a andar com escolta policial. Como você ainda consegue fazer entrevistas e descobrir novas informações sobre o crime organizado?
A escolta me foi dada para que eu pudesse continuar trabalhando. Escondido, sem escrever, sem trabalhar, sem poder ir à televisão, dar entrevistas, significaria que as máfias poderiam vencer, que eles são mais fortes porque são capazes de me silenciar. Apesar das dificuldades de uma vida vigiada, apesar das críticas de quem me acusa de enriquecer escrevendo sobre as máfias, eu continuo fazendo o meu trabalho porque é o único modo de resistir, de demonstrar que essas organizações não são onipotentes.
Mas você se arrepende de ter escrito os seus livros e do rumo que sua vida tomou por conta das ameaças?
Não me arrependo de ter escrito, mas sim de não ter compreendido quais seriam as consequências das minhas palavras. Acredito, aliás, tenho certeza, de que sem uma boa dose de inconsciência não é possível escrever sobre máfias. Eu lamento não por mim, mas pela minha mãe, minha família, que sofreram as consequências de escolhas que não fizeram, que eu fiz por eles.
Como avalia a decisão do governo italiano de incluir no cálculo do PIB a prostituição e o tráfico de drogas?
A Itália não tomou essa decisão sozinha. Periodicamente há a necessidade de padronizar a contabilidade de todos os países membros das Nações Unidas. Nesse novo cálculo do PIB ( da Itália), as atividades ilegais valem menos de € 59 bilhões, o equivalente a 3,2%. Contudo, não é a introdução desta nova fórmula de cálculo que é controversa, mas sim a extensão do impacto da economia ilegal no PIB já que, por ser ilegal, não pode ser calculada integralmente. Nós ainda estamos longe da dimensão atual ( da economia ilegal) em qualquer outro país.
Há uma tendência em muitos países de legalizar o comércio de maconha. Mas nada é dito sobre a cocaína. Qual é sua opinião sobre a política de guerra às drogas?
As políticas proibicionistas falharam e a necessidade de abandoná-las é um fato irrefutável. Há conversas sobre a legalização da maconha porque é a única droga que provoca, talvez, menos problemas de consciência naqueles que continuam acreditando que o debate sobre a legalização deve ser baseado em questões morais. Eu nunca fui um consumidor de drogas leves, nunca fumei cigarros nem tomei bebidas alcoólicas, mas como um analista não posso deixar de observar que a legalização de todas as drogas e o controle de sua venda pelo Estado reduziria, ao longo do tempo e acompanhada de políticas focalizadas, os ganhos das organizações criminosas e o enorme dano econômico e de vidas humanas que a droga causa na sociedade em termos de saúde e de sofrimento social.
O México é um país conflagrado pelas disputas dos cartéis, como a Colômbia foi no passado. No livro, você deixa clara a mudança do eixo do poder do narcotráfico de um país para o outro. Haverá um novo México no futuro?
Nas últimas décadas, não só México e Colômbia, mas também Peru, Bolívia, Equador e Guatemala entraram no centro do comércio global de drogas. As guerras sangrentas entre os cartéis, que se enfrentaram diariamente no México e na Colômbia, promovem gradualmente uma mudança das rotas de distribuição para países vizinhos, que também são produtores, cujos governos não se esforçam para combater o tráfico pois se trata de uma das principais atividades econômicas desses países. É difícil dizer quem pegará o bastão porque o México construiu uma espécie de Commonwealth do tráfico de drogas incluindo toda a América Central, e também Argentina, Peru, Chile, e, é claro, o Brasil, outro gigante do narcotráfico que pode tomar o seu lugar.
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Redes perigosas. Entrevista com o jornalista Roberto Saviano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU