20 Junho 2023
"Mais seiscentos morreram perto do litoral grego porque não havia braços estendidos, braços que os salvassem e permitissem desembarcar em terra firme. Não sei se gritaram, mas os rabinos têm certeza: um grande grito elevou-se daquela gente, um grito de socorro e um grito que pede vingança", escreve Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 19-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
É verdade que não sou jornalista de profissão, mas muitas vezes me vejo pensando em como é inadequada a matéria que escrevo e é publicada, algo que se impõe a mim porque o coração o exige. Vinte anos atrás escrevi um livro sobre a chegada massiva de migrantes às nossas terras com uma dedicatória: “Aos homens, mulheres e crianças que, indo ao encontro do pão, sonham com o nosso acolhimento. Morreram como estrangeiros nas águas do Mediterrâneo, um mar que eu gostaria que eles pudessem chamar e sentir 'nostro' (nosso) como eu o sinto e amo".
Esperava que aquele fenômeno fosse passageiro e que o acolhimento pudesse se tornar realidade num mundo como o nosso, que não deve ter medo da chegada de gente desconhecida, e que, aliás, necessita dela para que uma nova civilização possa ser forjada juntos. Em vez disso, a Europa tornou-se cada vez mais inóspita, fechada a quem vem de outras terras em busca de bem-estar e pão. Os países europeus com suas culturas se colocaram em busca de uma identidade própria, preferindo a autarquia à troca fecunda do que surge como novo. A Europa agora só sabe repetir: "Não devem partir, fiquem onde estão...!".
Também nossas igrejas tradicionais não mais defendem o direito universal ao acolhimento de pessoas de diferentes origens com a mesma convicção. Continuam a manter entidades socioassistenciais como a Caritas, mas são incapazes de salvaguardar para todos os seres humanos aqueles direitos que nascem da concreta fraternidade dos filhos de Adão.
Se olharmos para o passado, ainda que encontremos na análise tragédias e sangue derramado de ambos os lados, devemos constatar como o mundo greco-romano soube acolher aquele judaico e depois o mundo bárbaro, doando-nos o fruto maduro da cultura europeia, hoje não sabemos ter uma visão tão previdente. Mas os mortos não são corpos, não são estatísticas sobre a quantidade de cadáveres: são homens, mulheres e crianças com uma vida truncada para sempre.
Mais seiscentos morreram perto do litoral grego porque não havia braços estendidos, braços que os salvassem e permitissem desembarcar em terra firme. Não sei se gritaram, mas os rabinos têm certeza: um grande grito elevou-se daquela gente, um grito de socorro e um grito que pede vingança.
Também será necessário que alguém ouça aquele grito e intervenha e traga a salvação da morte! Os crentes o pensam, o gostariam, até o desejam gritar por sua vez, mas talvez eles também saibam que é inútil: o céu está fechado, Deus está calado, a injustiça continua a triunfar. Sim, a nós também faltam as palavras da dor, da raiva diante desses imensos massacres de migrantes.
Se não há homem, não há nem mesmo Deus. Demasiados sofrimentos, demasiadas mortes, demasiadas descidas no inferno quisto pelos homens sem que apareça um sinal de esperança.
Nas águas do Egeu ouvi o homem blasfemar e eu também senti a tentação de blasfemar contra ele.
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Quando faltam as palavras da dor. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU