20 Mai 2023
Em 11 de maio passado, o sacerdote russo Joann Koval, pastoralmente ativo na paróquia de Santo André, no vicariato de Ljublino, um entre aqueles da diocese moscovita (guiados por um bispo auxiliar), foi reduzido ao estado laical por um tribunal eclesiástico por ter modificado uma palavra na "oração pela Santa Rus’" escrita pelo Patriarca Kirill em 25 de setembro de 2022.
Sobre o caso, oferece uma ampla informação Sergei Chapnin, ex-editor da revista Patriarcato, claro opositor da guerra na Ucrânia e atualmente trabalhando na Fordham University (EUA). Ele escreve uma carta aberta aos bispos russos para denunciar a sua ignávia. Reproduzimos a seguir a "oração pela Santa Rus'" na qual Joann Kowal trocou o termo "vitória" pelo termo "paz".
"Senhor Deus dê força, Deus da nossa salvação, olhe com misericórdia para o seu humilde servo, ouça e tenha piedade de nós. Aqueles que lutam contra a Santa Rus esperam dividir e destruir o nosso povo.
Levante-se, ó Deus, para ajudar o seu povo e dê-nos a vitória com o seu poder. Venha para seus filhos fiéis, defensores da unidade da Igreja russa, fortaleça-os no espírito do amor fraterno e livre-os dos perigos. Empeça aqueles que jogam a sorte sobre a sua veste, obscurecendo as mentes e endurecendo os corações, que ameaçam a Igreja do Deus vivo. Reverta seus planos.
Pela graça do seu poder, guie-nos para todo o bem e enriqueça a nossa sabedoria! Confirme os soldados e todos os defensores de nossa pátria nos seus mandamentos. Envie-lhes a força do Espírito, salve-os da morte, das feridas e do cativeiro! Quantos estão desprovidos de abrigo e no exílio, hospede-os nas casas, alimente os famintos, fortaleça e cure os enfermos e os sofredores, dê boa esperança e conforto aos que estão confusos e aflitos! Conceda (Ó Deus) perdão dos pecados a todos os mortos destes dias, mortos por feridas ou doenças. Conceda-lhes um descanso abençoado!
Aumente a nossa fé em Você que é esperança e amor, garanta a paz e a unidade de todos os países da Santa Rus'. Renove no seu povo o amor recíproco, confessando em você, único Deus na Trindade gloriosa, a uma só voz e com um só coração. Você é intercessão, vitória e salvação para aqueles que confiam em Você e nós elevamos a glória a Você, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, agora e sempre nos séculos dos séculos. Amém"
A reportagem é de Sergei Chapnin, publicada por Settimana News, 17-05-2023.
Em Moscou eram relativamente poucas pessoas que conheciam pe. Joann Koval antes de fevereiro de 2023. Originário de Luhansk, na Ucrânia, mudou-se para Moscou e se formou na famosa Escola Central de Música do Conservatório Estatal de Moscou “Tchaikovsky”. Recebeu uma formação teológica na Universidade Ortodoxa de Humanidades “São Thikhon” antes de ser ordenado há cerca de vinte anos e designado para trabalhar nas paróquias do sudeste da capital russa. Desde o início de fevereiro, a vida do sacerdote mudou radicalmente. O nome do pe. Koval apareceu em muitas mídias russas, entre as quais a Rossiyskaya Gazeta, administrada pelo governo.
Por que tanto interesse em torno de um pároco discreto? O que ele realmente fez? A causa direta foi sua suspensão formal do exercício do ministério sacerdotal. Porém, por trás da censura havia outro motivo que causou o escândalo.
Em 2 de fevereiro de 2023, o primaz da Igreja Ortodoxa Russa, Patriarca Kirill, ordinário diocesano ex officio da cidade de Moscou, emitiu um decreto (ukase) que dizia: “O sacerdote Joann Koval, clérigo da igreja do Santo Apóstolo André, o Primeiro Chamado, em Lyublino, Moscou, está proibido de prestar serviço até o final do exame de seu caso pela Comissão Disciplinar do Conselho diocesano de Moscou".
A providência não dizia nada sobre o motivo da censura, coisa estranha, até bizarra, mas que logo se tornou conhecido. A ação de Kirill respondia à denúncia de um membro da paróquia do pe. Koval, segundo o qual o padre teria substituído repetidamente a palavra "vitória" por "paz" nas orações da igreja.
Depois que o exército de invasão russo foi duramente atingido na Ucrânia, o Patriarca Kirill compôs uma especial Oração pela Santa Rus' para ser rezada regularmente nas igrejas da Federação Russa. A oração contém uma súplica direta pela vitória da "Santa Rus’" – que é uma forma clerical de dizer a Rússia de Putin – e invocar a ajuda de Deus para os "guerreiros e defensores" da própria Rússia.
Ouvi muitas vezes do clero de Moscou que os homens do patriarca espionam as igrejas para garantir que a oração seja sempre rezada sem alterações ou acréscimos. O patriarca Kirill e a chamada "Igreja oficial" provavelmente a consideram como uma forma de expressar sua lealdade ideológica ao Kremlin.
Naquela oração, o pe. Koval, de etnia ucraniana, mudou uma palavra: “Levante-se, ó Deus, em socorro do seu povo e conceda-nos a paz com o seu poder". O patriarca entrou em campo porque a palavra que o pe. Koval tinha substituído era “vitória”. De acordo com Kirill, a vitória da Rússia (ou da Santa Rus') é a única maneira de alcançar a paz.
Quando a notícia da suspensão do pe. Koval apareceu nas mídias, o vice-presidente do Departamento de Comunicações Públicas da Igreja Ortodoxa Russa, Vakhtang Kipshidze, reafirmou o status sacrossanto da formulação utilizada na oração: "Devo dizer-vos com autoridade que, se um sacerdote muda as orações para adequá-las à sua mentalidade, aspiração ou preferência política, a própria unidade da nossa Igreja é posta em discussão".
A afirmação é fundamental para entender como as coisas funcionam no Patriarcado de Moscou. Com seu habitual modo brutal, Kipshidze afirma que só pode haver uma "preferência política" na Igreja Ortodoxa Russa: aquela do Patriarca Kirill. Todas as outras opções constituem uma heresia ou, pelo menos, uma violação grave da disciplina eclesiástica e comportam imediatamente uma censura, como a suspensão.
A declaração de Kipshidze, no entanto, também expressa uma posição teológica mais radical. Em suas palavras, a unidade da Igreja depende diretamente da orientação política da hierarquia, o que significa que todo o clero é obrigado (para dizer o mínimo) a aderir a uma única ideologia pró-Kremlin.
O caso do Pe. Joann Koval é um exemplo perfeito de como o Patriarcado de Moscou está agindo para que o clero seja ideologicamente unido. Já se sabem os nomes de quem apresentou a denúncia e a encaminhou ao gabinete do Patriarca e como isso mudou a relação entre o pe. Koval e seus coirmãos.
Acontece que o espião é um acólito de Santo André de cinquenta anos, que ouviu o pe. Joann substituir paz à palavra vitória. Sua indignação foi tanta que ele interrompeu a liturgia para proclamar ele mesmo a fórmula "politicamente correta" da oração. No entanto, essa reparação não pareceu suficiente para o homem, tanto que também apresentou uma denúncia ao reitor da paróquia, o arcipreste Victor Shkaburin.
O padre Shkaburin nunca brilhou por coragem. Ele imediatamente tentou ficar acima de qualquer suspeita de simpatia pelo turbulento padre, apresentando por sua vez uma denúncia ao arcebispo Matfei Kopylov, chefe do vicariato local, um território com direção episcopal dentro de uma diocese. Assim, as engrenagens da burocracia eclesiástica começaram a girar. O arcebispo Matfei certamente não é um homem ansioso para assumir responsabilidades, então se limitou a telefonar para o pe. Koval dizendo-lhe que tinha sido “interditado” das funções ministeriais; sem apresentar nenhum documento oficial e nem mesmo uma explicação. O pe. Koval celebrou no Natal, mas não mais na Epifania, duas semanas depois. O decreto oficial foi emitido depois de mais duas semanas.
Oração pela Santa Rus, modificada por Joann Koval, foi escrita pelo Patriarca Kirill, primaz da Igreja Ortodoxa Russa (Foto: Reprodução | Vatican News)
No final de março, alguns membros da comissão disciplinar diocesana foram a Santo André, liderados pelo arcipreste Nikolai Inozemtsev, reitor da igreja de Nossa Senhora de Kazan na Praça Vermelha. Eles questionaram a congregação por várias horas. Segundo os participantes e testemunhas oculares, a maioria absoluta dos paroquianos defendeu o pe. Koval e se declarou insatisfeita com sua remoção.
“Pe. Joann é um pastor piedoso e devoto; sempre foi delicado e manso com todos. Ele é aquele tipo de confessor que faz sentir o Senhor perto de você, se é que me entende”, foram as típicas palavras compartilhadas e expressas pelos fiéis de Santo André e por outros.
No entanto, a comissão não tinha vindo para esclarecer a situação, muito menos para ouvir os paroquianos. Cerca de oitenta membros da paróquia defenderam o pe. Koval. Mas para a Comissão era muito mais importante encontrar algumas vozes críticas e contrárias ao padre e, no final, foram encontradas: cerca de cinco ou seis. Uma delas era o denunciante, que – coincidentemente – também desempenhou o papel de provocador: agrediu fisicamente uma pessoa que havia testemunhado a favor do pe. Koval, mesmo que tenha sido imediatamente afastado. No entanto o objetivo foi alcançado: os comissários consideraram o incidente como "uma prova" do "fracasso pastoral do pe. Koval".
Enquanto isso, o reitor de Santo André manteve-se em disparte. Ele não deu nenhum apoio ao pe. Koval e, quando a posição oficial ficou mais clara, passou a chamar o sacerdote de "inimigo da Igreja".
Mas o pe. Shkaburin sempre foi uma pessoa tão especial? Não exatamente. Ele se formou no Conservatório Estatal de Moscou e ali também fez um pós-doutorado. No site de Santo André se pode encontrar gravações musicais de Victor Shkaburin (sim, exatamente assim, sem o título “padre”) interpretando canções de amor – música sua, letras de Veronica Tushnova. O título do álbum: "Desejo-lhe todo o bem". No entanto, os votos do pe. Shkaburin não são dirigidos a ninguém. Além de histórias de amor, ele também compõe canções de apoio à invasão russa da Ucrânia e publica os links no YouTube – sim, no mesmo site de Santo André.
Pouco tempo depois, outro incidente destacou claramente a nova atmosfera que reina em Santo André e em muitas outras igrejas de Moscou. No domingo seguinte à Páscoa ortodoxa russa (este ano, 16 de abril), o pe. Koval foi à igreja com a sua família. Ele não usava o hábito sacerdotal e se misturou com a congregação.
O padre Shkaburin o viu, mas optou por ignorá-lo. Ele não o convidou a entrar no santuário [a parte da igreja reservada ao clero e coberta pela iconóstase] para ouvir o serviço sem realizar qualquer ministério, uma prática comum na Rússia para os padres suspensos. Alguns paroquianos perceberam a presença do seu querido pastor e começaram a dirigir-se a ele, em silêncio, para pedir a sua bênção. O reitor se deu conta disso. Ele esperou que o padre suspenso e sua família deixassem a igreja no final da função e se dirigiu à congregação alegando que pe. Koval "espalha material extremista" e pediu aos paroquianos que lhe enviassem as capturas de tela de suas comunicações privadas com o pe. Koval. Finalmente, acrescentou que todos aqueles que haviam pedido a bênção do pe. Koval não podiam mais receber a Sagrada Comunhão.
Os membros excomungados da congregação perguntaram ao pe. Koval se seria o caso de apresentar uma petição ao Patriarca, mas ele os aconselhou a não prosseguir. Quando o pe. Koval foi a Santo André, em uma ocasião posterior, ninguém mais foi lhe pedir a bênção. Aliás, as pessoas temiam sua presença.
Existe outro aspecto interessante a ressaltar. Ter sido tão fiel à posição ideológica do patriarca não parece ter ajudado muito o pe. Shkaburin. A Páscoa é tradicionalmente o dia em que um sacerdote ortodoxo russo pode receber uma nagrada (uma honraria) de seu bispo ou do patriarca. No dia da Páscoa de 2023 era aguardada uma para o pe. Shkaburin. Mas, no final, não chegou nada: o reitor deve ter criado demasiados problemas.
Em abril, a Comissão disciplinar concluiu sua investigação e encaminhou seu parecer ao tribunal diocesano. Sob a autoridade do Patriarca Kirill, o sacerdote acusado não tem o direito de receber uma cópia da acusação antes de seu comparecimento no tribunal e, consequentemente, não pode preparar sua defesa. O pe. Koval não recebeu nenhum documento antes de enfrentar o processo.
A audiência se realizou em 11 de maio e foi presidida pelo arcipreste Mikhail Ryazantsev, reitor encarregado da Catedral de Cristo Salvador de Moscou. Os membros do tribunal pressionaram para que o pe. Koval declarasse a sua posição política: “O que você é, um pacifista, um defensor da Ucrânia?”. O sacerdote insistiu que não considerava o tribunal eclesiástico um lugar adequado para discutir política.
Outro traço típico da Rússia de Putin. O fervor do pe. Shkaburin não se limitou às agressões verbais contra o pe. Koval: ele também apresentou denúncia por escrito, desta vez não contra o pe. Koval, mas contra os seus filhos menores de idade, acusando-os de terem crescido em um "espírito nacionalista ucraniano".
O veredicto havia sido escrito com antecedência; consequentemente, a audiência foi uma mera formalidade. A sentença do tribunal, como era previsível, foi muito severa: com base no XXV Cânon Apostólico, ou seja, por ter "infringido" os votos de ordenação, o pe. Koval foi reduzido ao estado laical. Para se tornar efetiva, a sentença agora deve ser confirmada pelo Patriarca Kirill, bispo diocesano da região de Moscou.
Aparentemente, os líderes da Igreja Ortodoxa oficial russa estão claramente cientes de que a posição contrária à guerra ainda é muito difundida entre o clero e acreditaram que um veredito severo serviria para gerar medo nos padres pacifistas. O medo, portanto, continua sendo o instrumento fundamental usado pela Igreja oficial na Rússia para manter o clero sob rígido controle.
A "Igreja oficial" russa continua a desafiar descaradamente as normas fundamentais do direito canônico ortodoxo em relação ao seu clero. Às vezes, apelar para o Patriarcado Ecumênico pode ajudar para fazer prevalecer a verdade. Talvez tenha chegado a hora de considerar a criação de órgãos cristãos de assistência jurídica encarregados de defender o clero e os leigos abusados pelas autoridades da Igreja Ortodoxa russa.
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Rússia - não usar a palavra paz em vão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU