29 Abril 2023
“Para ser franco, não é provável, em um futuro previsível, que todos os insetos desapareçam: na verdade, alguns insetos provavelmente sobreviveriam à humanidade. O que as evidências mostram é uma combinação de extinções definitivas e declínios populacionais drásticos que alguns cientistas chamam de defaunação”. A reflexão é de Ian Angus, filósofo canadense, em artigo publicado por Alencontre, 27-04-2023. A tradução é do Cepat.
“A questão é saber se uma civilização pode travar uma guerra implacável contra a vida sem se autodestruir e sem perder o direito de ser chamada de civilizada” [1].
Já se passaram seis décadas desde que Rachel Carson escreveu seu brilhante livro Primavera silenciosa, muitas vezes descrito como a obra fundadora do movimento ambientalista moderno. O objetivo de Rachel Carson era acabar com a matança de insetos, e muitas pessoas pensaram que sua causa foi bem-sucedida quando o uso generalizado do DDT foi suspenso [Paul Hermann Müller, funcionário da Geigy, é o inventor do DDT, e recebeu um Prêmio Nobel por esta façanha].
A vitória durou pouco. Quando Primavera silenciosa foi publicado, minha família tinha acabado de se mudar para a zona rural do leste de Ontário (Canadá). Na adolescência, não fiquei feliz por perder a vida social urbana, mas me encantei pelas paisagens que nunca tinha visto na cidade. Especialmente, no verão, um campo perto de nossa casa ficava repleto de borboletas-monarca durante o dia e vaga-lumes à noite. Passei muitas horas observando esses insetos.
Lis Angus e eu ainda moramos nesta casa. Esse campo ainda existe, em estado selvagem, mas não vemos uma monarca ou um vaga-lume há décadas. A matança contínua dos animais de seis patas é maior e mais prejudicial do que qualquer coisa que Rachel Carson poderia ter imaginado.
* * *
Em 3 de fevereiro, um relatório detalhado mostrou que 80% das espécies de borboletas do Reino Unido viram seu número ou distribuição diminuir desde a década de 1970, e metade delas agora é considerada ameaçada ou quase ameaçada de extinção [2]. Com as borboletas sendo de longe os insetos selvagens monitorados com maior regularidade, seu declínio é comparável ao proverbial canário que parou de cantar ou morreu alertando os mineiros de carvão sobre o acúmulo de gases mortais. Se houver menos borboletas, provavelmente haverá menos insetos de todos os tipos.
No mesmo dia, cientistas da Academia Chinesa de Ciências Agrícolas relataram que, desde 2005, as 98 espécies de insetos voadores que migram a cada ano para a Baía de Bohai, entre a China e a Coreia, estão experimentando um declínio constante. O número de insetos que se alimentam de plantas (fitófagos) diminuiu 8% e os insetos predadores que as comem caíram quase 20%. Segundo os autores, esses dados revelam “um declínio crítico na diversidade funcional (de insetos) e uma perda constante de resiliência ecológica em todo o leste da Ásia” [3].
Esses estudos, realizados em todo o mundo, aumentam as evidências cada vez maiores de um rápido declínio na vida dos insetos em todo o mundo. Embora a maioria dos grupos de conservação ilustre seus apelos de arrecadação de fundos com fotografias de pandas, tigres e pássaros raros, o declínio generalizado de insetos representa a maior ameaça a toda a vida no Antropoceno. Scott Black, diretor executivo da Xerces Society, uma organização sem fins lucrativos que se concentra na proteção de insetos e outros invertebrados, resume o perigo de forma concisa:
“Por mais que cuidemos do planeta, vamos desaparecer antes dos insetos. Mas o que veremos são menos pássaros no céu, se ainda houver algum. Para haver pássaros, você precisa de insetos. Se você quer frutas e legumes, precisa de insetos. Se você quer solos saudáveis, precisa de insetos. Se você quer populações diversas de plantas, precisa de insetos” [4].
Os insetos são fundamentais para aquilo que Karl Marx chamou de metabolismo universal da natureza, a reciclagem constante da energia e da matéria que torna a vida possível. Os artrópodes – majoritariamente insetos, mas também aranhas, ácaros, centopeias e lacraias – polinizam 80% de todas as plantas, reciclam os nutrientes essenciais à vida, criam solos saudáveis e férteis, purificam a água e são o principal alimento de muitas aves e animais. Se eles desaparecessem completamente, a biosfera entraria em colapso, e o homem não sobreviveria por muito tempo.
“A maioria dos peixes, anfíbios, pássaros e mamíferos seriam extintos em questão de pouco tempo. Em seguida, a maioria das plantas com flores desapareceria e, com elas, a estrutura física da maior parte das florestas do mundo e de outros habitats terrestres. A terra apodreceria. À medida que a vegetação morta se acumulasse e secasse, encolhendo e obstruindo os circuitos dos ciclos de nutrientes, outras formas complexas de vegetação desapareceriam e, com elas, os últimos vestígios de vertebrados. Os fungos remanescentes, depois de experimentarem uma explosão populacional de proporções assombrosas, também desapareceriam. Em poucas décadas, o mundo voltaria ao estado de um bilhão de anos atrás, consistindo principalmente de bactérias, algas e algumas outras plantas multicelulares muito simples” [5].
Para ser franco, não é provável, em um futuro previsível, que todos os insetos desapareçam: na verdade, alguns insetos provavelmente sobreviveriam à humanidade. O que as evidências mostram é uma combinação de extinções definitivas e declínios populacionais drásticos que alguns cientistas chamam de defaunação [desaparecimento gradual de animais em uma comunidade]. “Se não for controlada, a defaunação pode se tornar não apenas uma característica da sexta extinção em massa do planeta, mas também um impulsionador de transformações globais fundamentais no funcionamento do ecossistema” [6].
A maioria dos relatos sobre a vida na Terra concentra-se em mamíferos, pássaros, peixes e répteis, mas, na verdade, a grande maioria dos animais são insetos. Ninguém sabe exatamente quantos são, mas uma boa estimativa é de dez quintilhões – 10 seguido de dezoito zeros, ou bem mais de um bilhão de insetos para cada ser humano. Juntos, eles pesam muito mais do que todos os outros tipos de animais (incluindo os humanos) juntos. São imensamente variados: só nos Estados Unidos existem aproximadamente 23.700 espécies de besouros, 19.600 espécies de moscas, 17.500 espécies de formigas, abelhas e vespas e 11.500 espécies de mariposas e de borboletas diurnas. Um milhão de espécies de insetos foram registradas em todo o mundo, e acredita-se que outras quatro milhões ainda não foram identificadas ou nomeadas. No ritmo atual, muitos delas desaparecerão antes que os humanos saibam que elas existem.
Com populações tão grandes, é difícil imaginar que todas as espécies, ou mesmo uma proporção significativa delas, possam estar ameaçadas. Além das borboletas, que são bonitas, e das abelhas, que são úteis, até recentemente as ameaças à vida dos insetos raramente eram mencionadas nos relatórios de degradação da biodiversidade [7]. O premiado livro de Elizabeth Kolbert, A sexta extinção, publicado em 2014 [a versão portuguesa é da Intrínseca, 2015], por exemplo, refere-se apenas brevemente ao declínio dos insetos, como uma consequência difícil de mensurar do desmatamento da Amazônia. Dodging Extinction. Power, Food, Money, and the Future of Life on Earth, de Anthony Barnosky, também publicado em 2014 [University of California Press], menciona os insetos apenas duas vezes. Da mesma forma, o best-seller de David Wallace-Wells de 2019, A terra inabitável: Uma história do futuro (Companhia das Letras, 2019) contém apenas três parágrafos sobre insetos.
Esses autores não ignoraram arbitrariamente nossos parentes de seis patas: suas omissões refletem uma lacuna de longa data na literatura científica. Embora os entomologistas tenham publicado muitos relatórios sobre a biologia e o comportamento de espécies específicas, poucos examinaram ou mediram a evolução das populações de insetos ao longo do tempo [8]. Mesmo entre as abelhas, um dos grupos de insetos mais estudados, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos lamentou em 2007 que “faltam dados de longo prazo sobre as populações e o conhecimento de seu ecossistema básico é incompleto” [9].
Uma inflexão se deu em outubro de 2017, quando doze cientistas europeus publicaram um relatório inovador sobre o declínio de insetos voadores em áreas de conservação da natureza na Alemanha. Durante quase três décadas, membros da Sociedade Entomológica de Krefeld (Renânia do Norte-Vestfália), administrada por voluntários, capturaram e contaram insetos em sessenta e três reservas naturais, usando armadilhas em forma de tenda. Uma análise de suas pesquisas, publicada na revista PLOS One, revelou uma tendência alarmante no tocante a abelhas, vespas, borboletas, moscas, besouros e outras espécies.
“Nossos resultados documentam um declínio dramático na biomassa média de insetos suspensos no ar de 76% (até 82% no meio do verão) em apenas 27 anos nas áreas naturais protegidas da Alemanha…
O declínio generalizado da biomassa de insetos é alarmante, especialmente porque todas as armadilhas foram colocadas em áreas protegidas destinadas a preservar as funções do ecossistema e da biodiversidade. Embora o declínio gradual de espécies raras de insetos seja conhecido há algum tempo (por exemplo, as borboletas especializadas, dependentes de certos tipos de vegetação), nossos resultados ilustram um declínio contínuo e rápido na quantidade total de insetos voadores ativos no espaço e no tempo [10].
Em 2018, outro grupo de cientistas mostrou que entre 2008 e 2017 a diversidade, a biomassa e a abundância de insetos diminuíram significativamente nas pastagens e nas florestas alemãs, e um estudo publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences revelou que as populações de insetos nas florestas tropicais porto-riquenhas caíram 98% desde a década de 1970 [11]. (Embora houvessem debates sobre os números precisos e a metodologia, agora existem – como escreveu o ecologista britânico William Kunin na prestigiada revista Nature – “sólidas evidências sobre o declínio de insetos” [12].)
Essas conclusões levaram os ecologistas e os entomologistas de todo o mundo a se debruçar sobre os estudos e registros anteriores, em busca de dados que possam ser usados para medir as mudanças nas populações de insetos. Em 2019, a revista Biological Conservation apresentou uma revisão detalhada de 73 estudos publicados sobre o declínio dos insetos.
“A partir da nossa compilação dos relatórios científicos publicados, estimamos que a proporção atual de espécies de insetos em declínio (41%) é duas vezes maior que a de vertebrados, e que a taxa de extinção de espécies locais (10%) é oito vezes maior, o que confirma os resultados anteriores. Atualmente, cerca de um terço de todas as espécies de insetos estão ameaçadas de extinção nos países estudados. Além disso, a cada ano, cerca de 1% de todas as espécies de insetos são adicionadas à lista, e esse declínio na biodiversidade resulta em uma perda anual de 2,5% de biomassa em escala mundial” [13].
De lá para cá, como ilustram os estudos citados no início deste artigo, proliferaram as pesquisas sobre as populações de insetos. Em fevereiro de 2023, o Google encontrou mais de 30.600 entradas para “insetos ameaçados” e o Google Scholar encontrou mais de 1.000 artigos acadêmicos. Para relatos acessíveis das pesquisas mais recentes, recomendo ardorosamente dois livros recentes: Silent Earth, de Dave Goulson, e The Insect Crisis, de Oliver Milman. Ambos são escritos por estudiosos sérios que evitam o sensacionalismo; no entanto, um se refere a um “apocalipse dos insetos” e o outro descreve o declínio das populações de insetos como “uma situação desastrosa [que] dificilmente pode ser compreendida” [14].
Em The Cosmic Oasis, uma história da biosfera publicada em 2022, Mark Williams e Jan Zalasiewicz, dois importantes cientistas especializados na questão do Antropoceno, alertam que é impossível exagerar a ameaça representada pelo declínio da vida dos insetos, o que pesquisas recentes confirmaram.
“Cerca de dois quintos das espécies de insetos do mundo podem estar ameaçadas de extinção dentro de algumas décadas; elas estão sendo amplamente exterminadas nas paisagens urbanas e agrícolas, e são dizimadas pela poluição em ambientes aquáticos… Sendo os insetos profundamente integrados ao funcionamento dos ecossistemas terrestres, uma redução significativa do seu número e de sua diversidade teria efeitos incalculáveis; na verdade, provavelmente causaria um colapso total dos ecossistemas, incluindo aqueles que nos sustentam” [15].
[1] Rachel Carson, Primavera silenciosa (Editora Gaia, 2010), p. 99 (na edição original).
[2] R. Fox et al., The State of the UK’s Butterflies 2022 (Butterfly Conservation, 2023).
[3] Yan Zhou et al., “Long-Term Insect Censuses Capture Progressive Loss of Ecosystem Functioning in East Asia”, Science Advances, 9, n. 5 (3 fevereiro 2023).
[4] Citado em Oliver Milman, The Insect Crisis: The Fall of the Tiny Empires That Run the World (W.W. Norton, 2022), p. 61.
[5] E. O. Wilson, “The Little Things That Run the World* (The Importance and Conservation of Invertebrates)”, Conservation Biology, 1, n. 4 (1987), p. 345.
[6] Rodolfo Dirzo et al, “Defaunation in the Anthropocene”, Science, 345, n° 6195 (25 julho 2014), p. 406.
[7] Rachel Carson é uma exceção óbvia, mas sua principal preocupação não eram os insetos em si, mas o efeito do DDT nos pássaros que se alimentam de insetos.
[8] Simon Leather, “Taxonomic Chauvinism Threatens the Future of Entomology”, Biology, 56, n. 1 (fevereiro 2009): p. 10-13.
[9] May Berenbaum et al., Status of Pollinators in North America (National Academic Press, 2007), p. 1.
[10] Caspar A. Hallmann et al., “More than 75 Percent Decline over 27 Years in Total Flying Insect Biomass in Protected Areas”, PLOS ONE, 12, o. 10 (18 outubro 2017), p. 14-16.
[11] Sebastian Seibold et al., “Arthropod Decline in Grasslands and Forests is Associated with Landscape-Level Drivers”, Nature 574, no 7780 (30 outubro 2019): pp. 671-674; Bradford C. Lister e Andres Garcia, “Climate-Driven Declines in Arthropod Abundance Restructure a Rainforest Food Web”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 115, n. 44 (15 outubro 2018).
[12] William E. Kunin, “Robust Evidence of Declines in Insect Abundance and Biodiversity”, Nature, 574, n. 7780 (30 outubro 2019), p. 641.
[13] Francisco Sánchez-Bayo e Kris A. G. Wyckhuys, “Worldwide Decline of the Entomofauna: A Review of Its Drivers”, Biological Conservation, 232 (2019), p. 16, 22.
[14] Oliver Milman, The Insect Crisis: The Fall of the Tiny Empires That Run the World (W.W. Norton, 2022), 5; Dave Goulson, Silent Earth: Averting the Insect Apocalypse (HarperCollins, 2021).
[15] Mark Williams e J. A. Zalasiewicz, The Cosmic Oasis: The Remarkable Story of Earth’s Biosphere (Oxford University Press, 2022), p. 130-131.
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O apocalipse dos insetos no Antropoceno. Artigo de Ian Angus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU