A partir da infestação de mariposas na região das Ilhas, em Porto Alegre, bióloga alerta sobre a importância de conhecer mais sobre os insetos. O aumento ou o desaparecimento de populações desses animais podem pôr em risco até a vida humana no planeta
Agora em meados de março de 2023, o verão ainda não mostrava sinais de que deixaria o sul brasileiro tão cedo. Em meio às persistentes altas temperaturas, escolas da região das Ilhas do lago Guaíba, em Porto Alegre, tiveram de ser fechadas. O motivo: uma infestação de mariposas causava alergia nas crianças. “As mariposas que causam este tipo de dermatite pruriginosa são do gênero Hylesia Hübner, um grupo de mais de uma centena de espécies exclusivamente neotropicais. Este grupo tem a particularidade de apresentar ação urticante tanto na fase de lagarta como na fase adulta”, explica a bióloga Helena Piccoli Romanowski, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O curioso nesse caso é que só nos demos conta da existência dessas mariposas depois dessa infestação. Para Helena, essa é uma preocupação bem típica, dado que os humanos com frequência renegam a importância dos insetos para a vida no planeta. O caso das mariposas é um dos efeitos do aquecimento ambiental e descontrole climático. “As populações de insetos potencialmente podem crescer mais rápido quando a temperatura está mais alta. Assim, o aquecimento global poderia promover o aumento populacional de pelo menos algumas espécies”, detalha a entrevistada. Ela acrescenta que “as mudanças climáticas podem ser consideradas uma das principais ameaças à conservação. As espécies com distribuição restrita possivelmente serão mais afetadas do que aquelas que têm distribuição ampla, mas não serão as únicas”.
Como bem podemos lembrar, o episódio das mariposas em Porto Alegre não é isolado. Também em 2023, em Buenos Aires, uma infestação de pulgões, parecidos com piolhos, tomou conta da cidade em meio ao calorão. Em outra época, nuvens de gafanhotos ameaçaram campos do sul do continente. Helena aponta que casos como esse se multiplicam pelo mundo como consequência de desequilíbrios ambientais causados pela humanidade. Assim, olhando para os insetos, podemos ter ideia do tamanho dos estragos que temos causado. “Os insetos são um elo central em muitas cadeias alimentares. São a principal fonte de alimento para aproximadamente 60% dos pássaros e, também, para pequenos mamíferos, répteis e outras criaturas, inclusive outros insetos. Como herbívoros, são cruciais na dinâmica das populações de plantas. Os insetos desempenham um papel muito importante na formação e manutenção da estrutura do solo e na decomposição de matéria orgânica, permitindo que os nutrientes voltem ao solo e possam ser aproveitados pelas plantas”, observa.
Para a pesquisadora, o que pode ser ainda mais preocupante é que sabemos muito pouco sobre a diversidade de espécies de insetos, ao passo que estamos destruindo seus ambientes. Logo, se continuarmos nesse ritmo, muitas espécies nem sequer serão estudadas. “Dada sua imensa abundância e diversidade e inúmeras interações, a perda de diversidade e abundância de insetos deverá provocar efeitos em cascata em redes alimentares e pôr em risco os serviços dos ecossistemas. Por todos os motivos já enumerados, é impossível imaginar a vida humana sem insetos sobre a terra. Os insetos viveriam sem problemas na ausência da humanidade; nós não sobreviveríamos”, diz.
Os desafios são muitos, entre eles assumir nosso antropocentrismo e colocá-lo em desconstrução, pensando também nas outras formas de vida. Quanto aos insetos, os desafios são ainda maiores, observa Helena. O primeiro deles é, talvez, eliminar a ideia de praga. “Não existem espécies ‘pragas’: insetos tornam-se ‘praga’ quando há alterações no ambiente (em geral, causadas pela humanidade) que fazem com que suas populações se tornem excessivamente grandes”, provoca a pesquisadora. “Também é indispensável aceitar que a terra é finita, é apenas uma. Precisamos abandonar esta visão desenvolvimentista que equaciona progresso com o aumento de crescimento e produção de bens”, acrescenta.
Helena Piccoli Romanowski (Foto: Arquivo pessoal)
Helena Piccoli Romanowski é bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutora em Biologia Pura e Aplicada pela Universidade de Leeds, no Reino Unido. É professora titular do Departamento de Zoologia e do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal na UFRGS. Participou do PPG em Ecologia da UFRGS durante 22 anos. Suas áreas de pesquisa são Zoologia e Ecologia e, desde 1991, tem concentrado interesses nos insetos dos ecossistemas do Brasil Meridional, com ênfase em Comunidades e Populações de Borboletas. Coordena o Programa Borboletas do Rio Grande do Sul e o Programa Pampas e Mata Atlântica Sul da Rede Nacional de Pesquisa e Conservação de Lepidópteros – REDELEP.
IHU – Agora em março, uma infestação de mariposas causou reações alérgicas em mais de 100 pessoas e suspendeu aulas na Ilha da Pintada, em Porto Alegre. Como podemos compreender essa espécie, as causas dessa infestação e as reações em humanos?
Helena Piccoli Romanowski – As mariposas que causam este tipo de dermatite pruriginosa são do gênero Hylesia Hübner (Lepidoptera: Saturniidae, Hemileuciinae), um grupo de mais de uma centena de espécies exclusivamente neotropicais. Este grupo tem a particularidade de apresentar ação urticante tanto na fase de lagarta (erucismo) como na fase adulta (lepidopterismo), o que não é comum na ordem Lepidoptera (lépido = escamas + pterus = asa).
As mariposas fêmeas deste gênero apresentam, na porção final do abdômen, escamas modificadas em espículas alongadas com bordas “serrilhadas” (farpas), com as quais cobrem seus ovos para protegê-los de predadores. São estas espículas que podem se desprender do corpo das fêmeas ou das posturas o que causa muita coceira e ardência nas pessoas. As mariposas não “atacam” as pessoas. Ao contrário, as espículas são uma estratégia de defesa das mariposas. São as pessoas que ocupam locais em que a Hylesia costumava viver e se colocam em meio a suas estratégias de defesa.
Escamas da asa de uma borboleta azul Morpho aega ao microscópio (aumento 20 x) (Foto: Luan Lima)
Casos de lepidopterismo motivados por Hylesia spp foram registrados desde o início do século passado em vários países da América Central e do Sul, incluindo México, Costa Rica, Guiana Francesa, Suriname, Venezuela, Peru, Argentina e Uruguai. No Brasil, há registros de Amapá, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. A espécie que ocorre aqui é Hylesia nigricans (Berg, 1875) e está presente do sudeste do Brasil até o Uruguai e a Argentina. No RS, surtos de variadas intensidades têm se repetido periodicamente sobretudo na região de Três Coroas e Igrejinha (Iserhard et al., 2007).
A espécie passa o inverno em dormência como ovo (massas de ovos (~1cm diâmetro x 05, altura), cobertas por cerdas urticantes pardo-alaranjadas são colocadas sobre ramos das plantas das quais irão se alimentar) e as lagartas eclodem com o fim do inverno e podem comer uma gama extremamente variada de plantas, o que lhes permite viver em muitos tipos de ambientes. Várias destas plantas são comuns em nossas matas (p. ex., aroeiras, canelas, guajuvira, tipuana, quaresmeira, salgueiro etc.), particularmente em regiões de contato entre vegetação silvestre e áreas urbanizadas.
A espécie pode consumir também plantas cultivadas nativas e exóticas (p. ex., plátano, eucalipto), frutíferas (macieira, ameixeira, pessegueiro...) e Ilex paraguayensis (erva mate) (Specht et al., 2006). Cada fêmea coloca em média mais de 250 ovos. Logo, se 5% destes sobreviver (o que é razoável para insetos), teremos 12, cinco novos indivíduos na geração seguinte a cada fêmea. A alta capacidade reprodutiva é uma característica de espécies com explosões populacionais (por exemplo, gafanhotos).
Hylesia nigricans imaturos – ilustr de Specht et al., 2006
As mariposas adultas costumam aparecer pelo fim da primavera e permanecem presentes até o outono. São ativas à noite e fortemente atraídas por luz. Assim, nestas épocas, se há populações humanas em locais próximos à vegetação onde os números de mariposas são altos, podem ocorrer problemas de dermatite nas pessoas.
Foto dos exemplares. Fonte: Specht (2006).
A iluminação noturna cada vez mais intensificada em áreas urbanizadas fomenta esta atração. Em áreas onde há ocupação humana em bordas de matas, construções e moradias fortemente iluminadas – frequentemente pintadas de branco e outras cores claras, que refletem a luz – intensificam esta atração. A profusão de mariposas voando próximas à luz e muitas vezes se batendo umas nas outras e nas paredes facilita a liberação das espículas.
Vale repetir: não são as mariposas que vão em direção às pessoas e as atacam: são as pessoas que ocupam seus habitats naturais, as atraem e se colocam em meio a estratégias de defesa das mariposas.
Como evitar as mariposas Hylesia? Não atraí-las! Nos locais em que a mariposa ocorre, do fim da primavera ao início do outono, não ligar luzes à noite, evitar revestimentos claros (refletem a luz), fechar janelas ao anoitecer, sobretudo no horário de maior atividade (da meia-noite às 6h), principalmente em áreas de ocupação humana recente onde anteriormente havia mata ou junto à vegetação. Aliás, repensar nosso modelo de uso da terra seria o ideal.
Para evitar ficar com dermatite onde há a ocorrência de Hylesia:
Tomar cuidado para não tocar em posturas (cobertas com cerdas urticantes). Também evitar espalhar cerdas que possam estar presentes no ambiente. O ideal é usar pano úmido e luvas para limpeza. Não se deve varrer, pois a dispersão é muito maior.
Em geral, o principal problema que causam é a irritação na pele e muita coceira. E, secundariamente, pelo ato de coçar a pele irritada, podem advir feridas e talvez infecções secundárias. Para evitar, o melhor é agir desde o início: se há cerdas visíveis na pele, tentar removê-las sem esfregar (até o uso de fita adesiva sobre a região afetada pode ajudar) e lavar com água fria abundante os locais afetados.
Para aliviar a irritação e a coceira, compressas frias são extremamente úteis. Para um efeito calmante adicional, podem ser utilizados chá de camomila ou água de aveia nas compressas. Caso a irritação persista ou apareçam lesões maiores na pele, procurar um posto de saúde para atendimento. Não se automedicar.
O ideal seria o poder público implementar medidas de monitoramento desta mariposa a partir do fim do inverno (época de eclosão das lagartas) para avaliar o risco de novos surtos e, caso os níveis populacionais sejam altos, implementar medidas de controle local precoce (busca, retirada e eliminação mecânica de lagartas por pessoal treinado e adequadamente protegido (Iserhard et al., 2007). Não devem ser usados venenos para matar a mariposa. Além de ser pouco eficiente, é tóxico para humanos e para outros animais que podem reduzir a população das mariposas.
IHU – Em que medida podemos associar o caso aos efeitos do aquecimento global?
Helena Piccoli Romanowski – Todos os insetos são extremamente influenciados pelo clima. Como dependem da temperatura ambiente para regular a temperatura corporal, seu metabolismo (e desenvolvimento) acelera quando está mais quente e diminui quando está mais frio. Logo, as populações de insetos potencialmente podem crescer mais rápido quando a temperatura está mais alta. Assim, o aquecimento global poderia promover o aumento populacional de pelo menos algumas espécies.
Mas o clima é bem mais do que temperatura: pluviosidade, umidade relativa, ventos, eventos extremos de qualquer natureza, todos são componentes do clima e estão sendo drasticamente alterados na atual crise climática e afetam direta e intensamente todos os organismos e, em particular, organismos pequenos como os insetos. Qualquer organismo vivo está adaptado às condições de seu ambiente, e alterações tão aceleradas (como as que a civilização ocidental tem causado) têm grande impacto – direto e indireto – em suas populações.
Além disso, nenhuma espécie vive isolada: interage com muitas outras, seja por serem seu alimento (por exemplo, as plantas das quais as lagartas se alimentam), seja por competirem com outras por este alimento (por exemplo, outras espécies que consomem o mesmo alimento/planta), seja por ser alimento para outras espécies (por exemplo, predadores – vespas, aranhas, aves, lagartos etc. – das lagartas), seja por serem micro-organismos patógenos.
Então, anos mais quentes podem significar maiores populações de insetos, mas se estiver mais seco pode ser prejudicial a muitas espécies; temporais e vendavais podem causar mortalidade intensa pela ação física das intempéries. Há que considerar também o efeito do clima sobre os alimentos – plantas, no caso das mariposas – que os insetos precisam para se desenvolver e sobre seus inimigos naturais – predadores, parasitas etc. E isto varia de espécie para espécie, dependendo de sua história de vida.
Assim, é difícil precisar, neste caso específico, como mudanças climáticas podem estar afetando. Para adequadamente compreender estes efeitos, pesquisa básica é fundamental. E, para além dos impactos das dermatites em humanos, há poucos estudos sobre a ecologia de Hylesia. Só nos damos conta do quanto faltam estudos quando algum acontecimento nos toca diretamente. E, em última análise, nada é isolado, tudo, mais cedo ou mais tarde, nos toca.
Lagarta (Riodinidae) interagindo com formiga | Foto: L.A. Kaminski
Adulto de Morpho catenária se alimentando | Foto: Vanessa Pedrotti
Por isso, conhecimento básico de biologia, distribuição e ocorrência das espécies, de seus papéis e funções ecossistêmicos e monitoramentos ao longo do tempo (para detectar eventuais mudanças) é fundamental. Assim como é necessário entender o impacto dos modos de vida da humanidade sobre os ecossistemas que suportam nossa vida nesta – única! – Terra.
Ainda em relação a este surto, é importante comentar que flutuações populacionais em animais – sobretudo insetos – são comuns na natureza. Várias espécies costumam ter grandes explosões populacionais seguidas de declínios, que, em algumas espécies podem ser cíclicas, mas em outras podem ser bastante erráticas. Esta última situação é usual para diversas espécies de mariposas (por exemplo, mariposas que se alimentam de pinheiros, carvalhos, acácias, etc.), mas quais fatores determinam estas explosões populacionais nem sempre são bem entendidos.
IHU – Para além do caso de Porto Alegre, como o desequilíbrio climático tem impactado a vida dos insetos?
Helena Piccoli Romanowski – Mudanças climáticas, conforme exposto acima, não apenas com aquecimento, mas sobretudo com o agravamento de seus efeitos catastróficos, são uma ameaça imensa à fauna, em particular aos organismos ectotérmicos de pequeno porte e ciclo de vida curto. Atualmente, as mudanças climáticas podem ser consideradas uma das principais ameaças à conservação. As espécies com distribuição restrita possivelmente serão mais afetadas do que aquelas que têm distribuição ampla, mas não serão as únicas.
As mudanças climáticas podem afetar potencialmente os herbívoros e suas plantas hospedeiras (plantas que as lagartas das borboletas se alimentam) e reduzir a extensão geográfica das áreas propícias a sua ocorrência. A natureza e a intensidade das respostas, no entanto, podem diferir entre espécies que hoje interagem, tornando-as separadas no espaço e/ou no tempo.
Recentemente Juliane Bellaver, do grupo Laboratório de Ecologia de Insetos da UFRGS, em trabalho de doutorado, investigou os efeitos sinérgicos das alterações climáticas sobre a distribuição potencial de espécies de borboletas neotropicais e de suas respectivas plantas hospedeiras. A avaliação realizada neste estudo contribui para o conhecimento de cenários de mudanças climáticas até o final deste século. Investigamos, através de modelos matemáticos, os efeitos sinérgicos das mudanças climáticas em duas espécies de borboletas neotropicais e suas respectivas plantas hospedeiras em dois cenários climáticos projetados para o futuro: moderado e grave em relação às emissões de gases de efeito estufa (RCP4.5 e RCP8.5, respectivamente, no padrão do IPCC, Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).
As espécies de borboletas, que escolhemos para estudar, contrastam em termos de distribuição, hábitos alimentares e status de conservação: Battus polystictus é generalista, ocorre ao longo da Mata Atlântica e também em áreas de mata nos campos sulinos, alimenta-se de plantas de pelo menos cinco espécies diferentes, e é comum; Parides ascanius tem distribuição muito restrita nas restingas fluminenses, suas lagartas comem apenas uma espécie planta e está listada como vulnerável na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza – IUCN.
Foram produzidos mapas das áreas de distribuição potencial (em relação às condições climáticas) para as borboletas e suas plantas hospedeiras, para a situação presente e para o futuro prevendo mudanças climáticas, e analisaram-se as mudanças na distribuição, na direção destas mudanças e na área potencial de sobreposição entre as borboletas e as plantas das quais dependem para sobreviver. Sob as mudanças climáticas previstas, todas as extensões de ocorrência e áreas de interação diminuíram e os impactos foram proporcionais à intensidade da mudança climática em cenários futuros.
Parides ascanius, borboleta ameaçada, de áreas de restinga do RJ
A borboleta especialista, com distribuição restrita, sofreu mais severamente esses efeitos do que a espécie generalista, amplamente difundida. Não antecipamos, no entanto, a enorme força possível dos efeitos previstos. Sob as condições modeladas, a espécie ameaçada – P. ascanius – provavelmente não encontrará condições adequadas para a sobrevivência, independentemente da planta hospedeira, e poderá se extinguir. A espécie comum, B. polystictus, por outro lado, deverá sofrer reduções acentuadas na área climaticamente adequada (46% para o cenário moderado de mudanças – RCP4.5 – e 92% para o cenário futuro mais severo, mas mais provável – RCP8.5) e mudanças drásticas na distribuição em direção ao sul (cerca de 1.400 a 2.000 km).
Esse efeito é ainda pior, porque, embora a maioria das plantas hospedeiras também seja muito afetada pelas mudanças, o efeito previsto é, em média, muito menor e cada espécie responde de maneiras sutilmente diferentes às variações futuras no clima. Assim, a maior parte da extensão da área climaticamente favorável para futura ocorrência das plantas pode ser espacialmente incompatível com as áreas favoráveis para B. polystictus. Estas previsões são mais graves ainda porque os habitats naturais englobados por estas áreas climaticamente favoráveis modeladas já se encontram extremamente reduzidos, fragmentados e degradados; dada a realidade atual, tudo leva a crer que esta situação só piore.
Propomos que o risco de extinção de P. ascanius seja reavaliado com urgência para “criticamente ameaçada”, bem como que o risco que B. polystictus corre seja considerado, e apontamos que é indispensável que as interações entre espécies sob cenários de mudanças climáticas sejam consideradas no planejamento para políticas de conservação.
Outro exemplo de espécie de nossa região que poderá ser seriamente afetada pelas mudanças climáticas: Taygetis yphtima, a borboleta de inverno. A constatação é a partir do estudo realizado no Parador Hampell, área particular em São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul.
Taygetis yphtima. Observe como a borboleta parece com ramos secos de araucária (Foto: Vanessa Pedrotti)
É uma de borboleta que vive em interior de mata bem conservada, típica de regiões de floresta de araucária na Mata Atlântica até Sul do Brasil; mas também no Paraguai e na Argentina. Os adultos começam a emergir das pupas de forma sincronizada no início do verão e vivem ao longo de todo o ano (o que é muito incomum). Registramos provavelmente a maior longevidade conhecida para borboletas nos neotrópicos: 247 dias.
Também, ao contrário do usual e esperado para borboletas em regiões subtropicais, esta espécie tem grande abundância no inverno (e veja que os ambientes que ela habita costumam apresentar temperaturas baixíssimas em julho e agosto, às vezes até abaixo de zero). Mais estudos deverão ser conduzidos para entender estas adaptações. Estas interessantes características, porém, têm o potencial de tornar a borboleta especialmente em risco frente ao quadro de aquecimento climático que deveremos enfrentar nos próximos anos.
IHU – Como essas mudanças nos ciclos de vida de insetos podem levar a outras transformações ambientais?
Helena Piccoli Romanowski – Entre todos os seres vivos na terra, os insetos formam, de longe, o grupo mais numeroso. Atualmente, calcula-se que, no total, entre 1,2 e 2 milhões de espécies já tenham sido nomeadas cientificamente. Destas, pelo menos a metade são insetos. E, estima-se que ainda desconhecemos 80% das espécies existentes (Wilson, 2017).
Pelo simples fato de serem tão diversos, os insetos já são importantes, pois são cosmopolitas e participam das mais variadas interações com outros seres vivos e o meio. Além disso, são extremamente numerosos. E ser abundante significa ter “peso” nestas interações.
Os insetos são um elo central em muitas cadeias alimentares. São a principal fonte de alimento para aproximadamente 60% dos pássaros e, também, para pequenos mamíferos, répteis e outras criaturas, inclusive outros insetos. Como herbívoros, são cruciais na dinâmica das populações de plantas. Os insetos desempenham um papel muito importante na formação e manutenção da estrutura do solo e na decomposição de matéria orgânica, permitindo que os nutrientes voltem ao solo e possam ser aproveitados pelas plantas. Eles também são fundamentais para a produção de alimentos para as pessoas, já que a maioria das nossas culturas depende de insetos para a polinização, para produção de frutos e sementes.
Estima-se que cerca de 80% das plantas silvestres são polinizadas por insetos e, pelo menos, 75% da alimentação humana depende direta ou indiretamente de plantas polinizadas por animais. Mesmo quando não são indispensáveis, insetos como as abelhas ajudam a aumentar a produtividade e a qualidade dos frutos. A importância é tal que, recentemente, o valor dos polinizadores na agricultura global da agricultura por ano foi estimado, na Avaliação Polinizadores, Polinização e Produção de Alimentos da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – IPBES, entre US$ 235 bilhões e US$ 577 bilhões, em 2015. Serviços ecossistêmicos em geral fornecidos anualmente nos EUA por insetos selvagens foram estimados em US $ 57 bilhões.
Logo, conhecer as espécies de insetos e compreender como garantir sua conservação é fundamental para a espécie humana também.
Dada sua imensa abundância e diversidade e inúmeras interações, a perda de diversidade e abundância de insetos deverá provocar efeitos em cascata em redes alimentares e pôr em risco os serviços dos ecossistemas. Por todos os motivos já enumerados, é impossível imaginar a vida humana sem insetos sobre a terra. Os insetos viveriam sem problemas na ausência da humanidade; nós não sobreviveríamos.
IHU – Estamos sujeitos a novas explosões populacionais de insetos que podem causar danos à sobrevivência de humanos?
Helena Piccoli Romanowski – Quanto a novas explosões populacionais de quaisquer espécies poderem ocorrer novamente, frente a tantas alterações ambientais, não há dúvida. Muitas espécies são negativamente afetadas por mudanças, mas sempre há alguma(s) que pode(m) beneficiar-se e crescer drasticamente frente à nova condição ambiental ou dar um “salto evolutivo” (sofrer alguma mutação), que lhe permitirá tirar vantagem de uma nova situação, à qual outras não conseguem adaptar. Temos a recente pandemia de covid-19 para bem ilustrar isto.
Não tem nada a ver com “pragas” ou maldições, tem a ver com ciclos naturais e respostas da natureza a alterações em condições. Nos casos citados, consequências de nosso padrão de “civilização”.
IHU – Em que medida os ciclos de vida dos insetos vêm sendo alterados por ações diretas dos seres humanos, como o uso de agrotóxicos nas lavouras ou mesmo inseticidas em ambientes urbanos?
Helena Piccoli Romanowski – As principais causas das alterações de biodiversidade são fortemente interconectadas e relacionam-se com nosso modo de vida. Alterações climáticas, supressão de vegetação nativa (termo necessariamente mais adequado e abrangente do que “desmatamento”), conversão, homogeneização e destruição de hábitats (sobretudo pelo agronegócio: monoculturas de soja, arroz, milho, algodão..., árvores exóticas (“silvicultura”, etc.) e consequente mudança de ciclos hidrológicos, uso indiscriminado de agrotóxicos (fertilizantes, herbicidas, pesticidas), com a decorrente inviabilização inclusive de pequenas manchas de hábitat que poderiam servir de refúgio e corredores para dispersão, como faixas de vegetação nativa em beira de estradas, APPs, áreas de reserva legal, etc. Todos se enquadram em importância como impactos extremamente severos.
Um estudo recente, revisando as principais causas do declínio de insetos (Sánchez-Bayo et al., 2019), aponta os principais fatores de declínio de espécies:
I) perda de habitat e conversão para agricultura intensiva e urbanização
II) poluição, principalmente por pesticidas e fertilizantes sintéticos
III) fatores biológicos, incluindo patógenos e espécies introduzidas
IV) mudanças climáticas.
Chamam atenção que a crise climática parece ser particularmente importante em regiões tropicais, para as quais há imensa lacuna de dados. Além disso, cabe citar também as que são pouco consideradas, mas muito relevantes, como a poluição luminosa (com efeitos devastadores em vagalumes e outros insetos noturnos, vide o discutido surto de Hylesia), a poluição sonora (ruptura de sistemas sonoros de comunicação de insetos como grilos, cigarras etc., e perturbações menos evidentes em outras espécies menos (Barton et al., 2018)), a vibração (alterações em bordas de estradas etc.) e muitas outras formas que nem entendemos adequadamente.
Todos estes fatores, além de causar morte direta de indivíduos (agrotóxicos por exemplo), podem interferir diretamente na sua fisiologia (calor, umidade, hormônios, nutrientes...), e romper suas formas de ser no ambiente: interferindo na disponibilidade e qualidade do que comem, onde se abrigam, como se comunicam, como se desenvolvem. Atuam ainda, indiretamente, alterando os ciclos, fenologias e sincronias das espécies com as quais os insetos interagem (alimento, predação etc.) nas suas diversas fases (adultos e juvenis: são diferentes, têm necessidades diferentes), bem como a estrutura do ambiente e disponibilidade de recursos e refúgios.
Um exemplo local, marcante, sobre como as atuais práticas de uso do solo, agronegócio extensivo, baseado em monoculturas com uso intensivo de insumos químicos (fertilizantes, herbicidas e pesticidas) pode causar é o da “campoleta”, borboleta típica dos campos sulinos e cujas lagartas se alimentam de plantas que crescem em campos nativos (mais detalhes adiante). Com a crescente substituição destes campos naturais por monoculturas, pastagens artificiais e por outras práticas destrutivas de ocupação humana, esta borboleta, que costumavam ser muito comum e abundante, está desaparecendo: nossos estudos apontaram seu sumiço em 77% de áreas onde ocorriam anteriormente.
Campoleta, borboleta típica dos campos sulinos | Foto: Helena Piccoli Romanowski
IHU – No Brasil, já viraram rotina todos os anos números alarmantes de contaminação por dengue. No discurso do poder público, a multiplicação de mosquitos transmissores de dengue acontece porque as pessoas acumulam recipientes com água. Mas, efetivamente, como podemos controlar e conviver com populações de mosquitos em ambiente urbano para além de evitar focos de água parada?
Helena Piccoli Romanowski – Saneamento e letramento científico da população (educação básica e ambiental).
IHU – Ainda sobre o controle de mosquitos em ambiente urbano, como a aplicação de inseticidas nas ruas das cidades, prática defendida por muitas prefeituras, interfere nos ciclos de outros insetos? Que outros problemas essa aplicação pode acarretar?
Helena Piccoli Romanowski – A questão da dengue está seriíssima, merece reportagem em si mesma. Aplicação de inseticidas só como último recurso em situação crítica, caso contrário, é uma péssima alternativa: fomenta resistência das espécies-alvo ao produto, é tóxico a outras espécies (humanos, inclusive) e não resolve a longo prazo.
IHU – O que a observação da vida dos insetos pode revelar sobre a saúde de planeta?
Helena Piccoli Romanowski – Por ser um grupo de organismos pequenos, ectotérmicos, com íntimas e múltiplas relações com outras espécies (conforme explicado acima), e, assim, muito sensíveis a variações em seu ambiente físico e biológico, com gerações relativamente curtas, populações de insetos respondem rapidamente a mudanças ambientais. São por isso considerados indicadores de qualidade ambiental. Além disso, exatamente pelas inúmeras interações com outras espécies são também indicadores de biodiversidade.
Isto significa que a presença ou ausência de algumas espécies pode indicar o estado de conservação de muitas outras e dos ecossistemas onde vivem e, ao mesmo tempo, permitem monitorar as alterações ou perturbações ao longo do tempo. Assim, a redução (ou o aumento) da riqueza de espécies ou de determinadas populações de insetos numa região pode indicar que o ambiente está apresentando alterações, que estão afetando suas populações e conjuntamente as populações de outros grupos biológicos.
IHU – O que nossa visão de que insetos são “pragas” revela acerca de nosso antropocentrismo? Quais os desafios para rompermos essa visão antropocêntrica e compreender a ecologia da vida na Terra?
Helena Piccoli Romanowski – Não existem espécies “pragas”: insetos tornam-se “praga” quando há alterações no ambiente (em geral, causadas pela humanidade) que fazem com que suas populações se tornem excessivamente grandes. Em sentido literal, uma praga só é praga quando causa prejuízo econômico... às pessoas!
Pense numa monocultura extensiva: receita perfeita para “criar pragas”. Uma enorme extensão de uma mesma planta, todas a partir de sementes homogêneas, produzidas (frequentemente fora do local de plantio, portanto não selecionadas para as condições ambientais em que são plantadas) para gerar plantas que tornem o consumo humano mais fácil e atraente: o mais nutritivas possível, fáceis de consumir (com folhas tenras ou sem cascas grossas, por exemplo). Ocorre que tudo isto também facilita o consumo por outras espécies que comem a mesma planta e limitam a ação (ou mesmo ocorrência) de inimigos naturais destas espécies. O uso de pesticidas só piora o quadro.
IHU – Quais são os insetos mais ameaçados de extinção? Como compreender esse processo de extinção?
Helena Piccoli Romanowski – A perda de biodiversidade global é crítica e a atual taxa de declínio de espécies – que podem progredir para a extinção – é sem precedente. Porém, talvez como reflexo da postura humana autocentrada (supervalorizar o que é mais parecido conosco), da visão antropocêntrica (considerar só o que dá benefício imediato para nossa espécie) ou até por limitação de percepção (não enxergar o que é pequeno) ou inteligência (não conseguir ou não querer perceber relações fundamentais entre espécies e funcionalidades ecossistêmicas invisíveis mais vitais), até recentemente, a maior parte da atenção do público em geral e, lastimavelmente, de cientistas também se concentrou em vertebrados carismáticos, particularmente em mamíferos e aves (o que eu chamo de “fofofauna”), enquanto os insetos eram esquecidos e sub-representados em estudos de biodiversidade e conservação (Dirzo, 2004). Isso, apesar de sua suprema importância para o funcionamento geral e a estabilidade dos ecossistemas em todo o mundo.
Quando falamos em “declínio de insetos”, podemos estar falando em muitas coisas: em diminuição do número de espécies, em limitação do número de indivíduos, em redução da biomassa, em contração da extensão de ocorrência (área geográfica em que a espécie pode ocorrer) e/ou área de ocupação (área na qual a espécie realmente ocorre). Todos estes aspectos são importantíssimos.
A ciência se baseia em evidências, dados concretos, confiáveis; não em opiniões ou impressões subjetivas. Para avaliar se uma espécie (ou grupo de espécies) está ameaçada, é necessário ter dados ao longo do tempo sobre um mesmo aspecto (riqueza de espécies, número de indivíduos, biomassa, área de distribuição ao longo do tempo) ou mais. Comparações temporais requerem procedimentos consistentes com metodologia estandardizada por um largo período de tempo. Só assim, a direção da mudança, a intensidade, o ritmo e, se possível, as causas podem ser identificadas.
Infelizmente, estas desvalorizações e cegueiras humanas em relação aos insetos limitam em muito os dados disponíveis, sobretudo para regiões tropicais do hemisfério sul, nas quais a ciência – sobretudo básica – tradicionalmente tem sido subvalorizada e miseravelmente financiada, e os financiamentos estão diretamente associados com a conservação (Waldron et al., 2017).
Mesmo assim, os dados existentes, em grande maioria para Europa e EUA, apontam o desaparecimento de insetos nos principais táxons, declínio iniciado no alvorecer do século XX, acelerado durante 1950-1960 (revolução verde), atingindo proporções alarmantes globalmente ao longo das últimas duas décadas.
A magnitude e o ritmo destas perdas ultrapassam dramaticamente aquelas (muito mais bem documentadas) sofridas pelos vertebrados: baseado nas evidências disponíveis, 41% das espécies de insetos parecem estar diminuindo e isto está aumentando; a perda de biomassa é de cerca de 2,5% ao ano.
Nos ecossistemas terrestres, Lepidoptera, Hymenoptera e escaravelhos (Coleoptera) parecem ser os táxons mais afetados, enquanto quatro táxons aquáticos principais (Odonata, Plecoptera, Trichoptera e Ephemeroptera) já perderam uma proporção considerável de espécies. Os grupos de insetos afetados não incluem apenas especialistas que ocupam nichos ecológicos particulares, mas também muitas espécies comuns e generalistas.
Para o Brasil, recentemente foi publicado um estudo (Lewinsonh, 2022) revisando evidências disponíveis e buscando identificar as tendências gerais: dados são muito esparsos, muitas vezes com monitoramentos infrequentes e/ou não regulares. Mesmo assim, a significativa maioria dos estudos realizados aponta para sérias diminuições em abundância (17:1) e diversidade (11:1) de insetos terrestres, com espécies tornando-se extintas em vários locais.
Espécies de borboletas ameaçadas, registradas apenas nos campos de altitude do sul. *Gênero novo, assim nomeado em homenagem ao seu habitat de registro e à obra do escritor gaúcho Érico Verissimo | Imagem: acervo de pesquisa de Helena Piccoli Romanowski
Há várias subespécies criticamente ameaçadas. O ICMBio publica listas e coordena Planos Nacionais de Ação para Conservação – PNAC de espécies ameaçadas de extinção (Lepidopta). Atualmente está em elaboração o PNAC para insetos polinizadores. A lista vermelha de espécies ameaçadas do Brasil assinalava quais são as espécies criticamente ameaçadas.
Reprodução ICMBio
IHU – A senhora é especialista em borboletas. Sabemos da beleza e da importância desses animais para a polinização. Mas o que mais essas formas de vida podem nos ensinar sobre a ecologia da vida, a relação entre animais e plantas?
Helena Piccoli Romanowski – As borboletas são organismos adoráveis para se trabalhar. São, como as mariposas, da ordem Lepidoptera. Cada espécie de borboleta possui uma história de vida única, que começa com um ovo e passa pela lagarta que precisa completar a metamorfose, durante a fase de pupa, para se tornar uma borboleta. Interagem com inúmeras espécies, quer aquelas das quais se alimentam – em geral, plantas; folhas, quando lagartas e néctar quando adultas, mas também podem ter outros hábitos e ser parasitas ou predadoras quando lagartas ou se alimentar de frutas e matéria orgânica em decomposição quando adultas – quer aquelas com quem cooperam ou são suas inimigas, como parasitas e predadores. E, assim, elas têm grande importância: no controle do crescimento de plantas, como polinizadoras, como alimento para inúmeras espécies etc.
As borboletas, além disso, entre outras vantagens como objeto de estudo, dado seu apelo estético, são ótima ferramenta para educação ambiental. Além disso, são excelentes indicadores ambientais, ou seja, aqueles efeitos que observamos nas espécies de borboletas sinalizam a saúde do ambiente e, também, o que ocorre com os outros grupos de seres vivos.
As borboletas têm servido como organismo modelo para estudos em biologia, ecologia, genética, evolução etc., sendo, assim, um dos grupos animais mais estudados.
Exemplos dos nossos campos nativos:
Campoleta, endêmica dos campos sulinos
Campoleta adulta sugando néctar de flor | Foto: Helena Piccoli Romanowski
A borboleta Euryades choretrus – grande, bonita, vistosa e de fácil identificação por leigos – costumava ser muito abundante e é endêmica e depende para existir dos campos nativos do sul. As lagartas alimentam-se de uma planta rasteira que só ocorre em meio a campos bem conservados: Aristolocchia sessilifolia. Por este motivo, foi batizada, através de uma campanha nas redes sociais e eventos de extensão, como “campoleta” e decidimos torná-la espécie-bandeira para conservação dos campos nativos.
Na atualidade, tem sido extremamente difícil encontrá-la, devido à destruição assustadoramente crescente de seu habitat. Temos estudado a espécie há mais de cinco anos e é notável o declínio de suas populações e de áreas adequadas para a espécie. Recentemente, durante dois anos, realizamos uma série de expedições, por toda sua extensão de ocorrência potencial, abrangendo inúmeras regiões dos Campos Sulinos, do Paraná, passando por Santa Catarina, varrendo o Pampa gaúcho, e incluindo inclusive áreas do Uruguai e Argentina. Em 77,5% das áreas previamente selecionadas por modelagem matemática e imagens de satélite, onde deveria haver habitat adequado para a ocorrência da campoleta, não existiam mais campos nativos. Onde encontramos áreas adequadas, apenas em 14% dos casos, a espécie foi localizada.
Em vários dos poucos locais que achamos campos em bom estado de conservação, não havia inseto algum, provavelmente devido ao uso indiscriminado de agrotóxicos nas monoculturas (em geral de soja), que invariavelmente circundavam as áreas. (O uso de agrotóxicos nestas monoculturas tem, inclusive, causado danos comprovados em outras culturas no RS, como videiras e macieiras, com prejuízos enormes para os produtores.)
A campoleta é considerada “vulnerável à extinção” nas listas de espécies ameaçadas dos estados do sul do Brasil, mas com base neste nosso estudo, aconselhamos que seu status seja mudado para “ameaçada” na lista estadual e incluída na lista nacional. Uma vez que era uma espécie comum e robusta, a campoleta é um bom indicador das condições de conservação do campo. Muitas outras espécies devem estar em situação preocupante como a da campoleta (ou pior); apenas, por não ser grandes e/ou vistosas e/ou talvez não ter sido tão abundantes anteriormente, não são tão evidentes para nós.
Só muito recentemente a fauna de borboletas do Pampa tem sido foco de estudos. Os dados cresceram muito nos últimos 10 anos, mas ainda faltam muitas informações. Em face à velocidade com que os campos nativos têm sido convertidos, é fundamental que ações de proteção sejam efetivadas, pois corre-se o risco concreto que espécies se extingam sem que tenhamos tido tempo de registrá-las.
Já existem fortes evidências de espécies extintas nos campos naturais do Paraná e Santa Catarina, dada a completa destruição do habitat e agrotóxicos. Algumas destas espécies ameaçadas de extinção ainda podem ser encontradas em áreas do Pampa (p. ex., Pseudolucia parana, outra espécie ameaçada de extinção, que estudamos e que é exclusiva de campos ruprestes, para a qual atualmente só temos registros em três pequenas áreas nos morros graníticos de Porto Alegre; Benyamini, 2019) e necessitam de um esforço urgente para a sua conservação.
Pseudolucia parana | Foto: Helena Piccoli Romanowski
O Pampa ainda é subamostrado (em comparação com outras partes do mundo é riquíssimo: o Pampa gaúcho sozinho tem pelo menos o mesmo número de espécies de borboletas que a Europa inteira). Atualmente, ainda é difícil saber qual é a riqueza real dos ambientes campestres. A maior parte das amostragens realizadas até o momento foi próxima a áreas de Mata Atlântica, ou em ambientes de mata dentro do bioma Pampa. As evidências apontam que os campos sulinos – não apenas o Pampa – abrigam uma fauna particular e muito variada espacialmente (veja Andrade et al., 2019).
Muitas espécies de borboletas dependem de habitats específicos, em particular da composição florística, dada a dependência da maioria das espécies de alguma(s) (poucas) planta(s) hospedeira(s). Nesse sentido, a variação fisionômica e florística observada nos campos no Pampa deve se refletir nas comunidades de borboletas em cada um destes ambientes. De fato, as poucas áreas de campo nativo em bom estado de conservação razoavelmente amostradas têm apontado fortemente nesta direção e, com frequência, encontramos espécies especiais, raras ou até mesmo gênero novo (Prenda clarissa).
As mudanças climáticas, não apenas com aquecimento, mas sobretudo com o agravamento de efeitos catastróficos, são uma ameaça imensa à fauna, em particular aos organismos ectotérmicos de pequeno porte e ciclo de vida curto. Conversão e destruição de habitat, sobretudo pelo agronegócio (soja, arroz, silvicultura etc.); uso indiscriminado de agrotóxicos, com a inviabilização inclusive de pequenas manchas de habitat que poderiam servir de refúgio, como faixas de vegetação nativa na beira de estradas, áreas de preservação permanentes (APPs), áreas de reserva legal, somam-se à lista dos impactos extremamente severos.
Também, o uso indiscriminado de fogo e conversão de campos nativos em pastagens artificiais para pecuária intensiva; a destruição da vegetação nativa: falta de compreensão que, além do desmatamento propriamente dito (ou seja, corte de árvores), a destruição da vegetação dos campos nativos (e outras formações não florestais) é igualmente nociva e, lamentavelmente, não é tão obviamente identificável. Qualquer fator que altere a dinâmica natural dos campos fará inevitavelmente sumir as espécies especialistas de campo.
IHU – Que ações devem ser tomadas para tanto para a preservação quanto controle das populações de insetos?
Helena Piccoli Romanowski – Conservemos o ambiente e automaticamente estaremos conservando a biodiversidade. Também é indispensável aceitar que a terra é finita, é apenas uma. Precisamos abandonar esta visão desenvolvimentista que equaciona progresso com o aumento de crescimento e produção de bens. Rever nossos modelos de produção e consumo, de exploração predatória da natureza como se não fizéssemos parte e dependêssemos da saúde dos ecossistemas para sobreviver. Mudar de estilo de vida.
E, claro: educação pública de qualidade e acessível a todes, desenvolvendo pensamento crítico, letramento científico e filosófico da população.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Helena Piccoli Romanowski – Tenho trabalhado com populações e comunidades de insetos – mais especificamente com foco em borboletas – desde 1979, então como estudante, e desde 1991, já como docente da UFRGS. Integrando trabalho de campo, atividades de laboratório e simulações matemáticas, nosso grupo de pesquisa explora informações ecológicas provenientes dos padrões de biodiversidade para conectar a história natural e a macroecologia.
As borboletas são um dos grupos animais mais estudados e, dado seu apelo estético, são também excelente ferramenta para educação ambiental. O Laboratório de Ecologia de Insetos vem realizando um amplo de levantamento da biodiversidade de borboletas do sul da Mata Atlântica e do Pampa com metodologia estandardizada desde 1993. O objetivo central de nosso trabalho é conhecer nossas espécies e entender o que determina que as espécies vivam onde vivem da forma como vivem, para que possamos garantir a sua (e a nossa) persistência. Divulgar este conhecimento e estimular a visão crítica e científica.
Entre os principais resultados obtidos posso citar o seguinte:
Ao longo de mais de trinta anos estudando a diversidade das borboletas em diversos tipos de ambientes no RS, o Laboratório de Ecologia de Insetos abriga uma coleção testemunho da biodiversidade gaúcha. Os resultados gerados pelas pesquisas desenvolvidas podem apontar locais prioritários para esforços de preservação, como a criação de novas Unidades de Conservação e maior proteção para as unidades já estabelecidas. Essa informação é preciosa e seguramente será útil para o monitoramento de insetos; lamentavelmente, são também testemunhos das extinções de insetos que estão crescentemente ocorrendo em escala global.
Um dos principais resultados dos nossos trabalhos é o conhecimento de quais são as espécies de borboletas que ocorrem no sul do Brasil. A fauna do hemisfério Sul do planeta é muito pouco conhecida e principalmente a das partes de clima não tropical e de regiões, digamos sim, menos “exóticas” (quero dizer, aquelas áreas que não são florestas tropicais ou remetem à ideia de áreas “selvagens”). O hemisfério norte e os países de tradição anglo-saxônica, em especial, já vêm sendo estudados há séculos e contam com uma tradição científica bem estabelecida. Assim, até muito recentemente a maior parte das teorias e conhecimento biológico que dispúnhamos derivava de estudos feitos em áreas temperadas da Europa e América do Norte.
Resulta que não apenas as espécies de regiões tropicais e do hemisfério sul não eram conhecidas, como também se imaginava que as teorias gerais que se aplicavam para as espécies do Norte poderiam ser diretamente aplicadas para os ecossistemas de outras partes do mundo. Quanto mais se estuda, mais temos visto que não só as espécies são diferentes, mas também os padrões e processos que ocorrem com populações e comunidades dos trópicos e do sul, muitas vezes também diferem daquilo que se conhece para a Europa e América do Norte. E só entendendo estes padrões podemos elaborar estratégias efetivas de conservação.
Em 1993, quando iniciamos nosso programa de estudos da fauna de borboletas do sul da Mata Atlântica e do Pampa, o conhecimento disponível sobre as espécies era escasso, fragmentário e sobretudo de difícil acesso. Menos de 400 espécies de borboletas estavam registradas para o Rio Grande do Sul e o “senso comum” (baseado no conhecimento existente para o hemisfério norte) indicava que a fauna de borboletas das regiões meridionais, mais frias, da América do Sul não deveria ser muito mais rica do que isto. Ao longo de nossos anos de estudos, o número de espécies listadas aumentou em mais de 100%: hoje, para o RS apenas, já registramos de mais de 800 espécies de borboletas e estimamos que devam ocorrer pelo menos mais 200, sendo que deste total cerca de 500 podem ocorrer na Região Metropolitana de Porto Alegre (para se ter um termo de comparação, TODA América do Norte tem menos de 800 espécies, a Europa ao redor de 500 e a Austrália, 400; nestes continentes, como mencionei, a fauna é muito bem estudada e, muito provavelmente, todas espécies já estão listadas).
Registrar toda esta riqueza já é um resultado importantíssimo. Evidencia, além do mais, conforme suspeitávamos, que a riqueza do sul da América do Sul é maior do que – comparativamente – o conhecimento acumulado para o hemisfério norte levaria a crer e que os padrões de diversidade estão sendo determinados por muitos outros fatores além da temperatura e latitude.
Infelizmente, registramos também situações muito sérias de degradação ambiental e, ao longo do período relativamente curto (em termos ecológicos) abrangido pelo nosso programa de pesquisa, esta deterioração vem acelerando alarmantemente: inúmeros locais que visitávamos há 20 anos atrás, hoje já não contam mais com ambientes saudáveis, capazes de suportar a fauna nativa, seja devido à urbanização, ao desmatamento, ao avanço sem limites de monoculturas, seja devido ao uso intensivo e indiscriminado de agrotóxicos. E este quadro se repete no Pampa, no planalto das araucárias, na serra do sudeste, na planície costeira, em áreas de mata atlântica.
Com base em nossos estudos, participamos da elaboração da do Plano Nacional de Conservação de Lepidoptera e Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas do Brasil (ICMBio, 2010) e do RS (FZB-RS, 2014), as quais constam, respectivamente, com 53 e 19 (das espécies da lista do RS, nenhuma está incluída na lista brasileira, pois, à época, os dados para o RS ainda não estavam disponíveis); infelizmente, sem dúvida, se dispuséssemos do conhecimento desejável, muito mais espécies estariam nestas listas.
Borboletas estão morrendo antes que possamos conhecê-las!
Eurema albula | Foto: Carolina Casas
Vale acrescentar ainda a importância das coleções biológicas como testemunho histórico da biodiversidade e “biblioteca” de informações para estudos futuros (veja imagens abaixo)
Coleção de borboletas
Coleção de borboletas
Coleção de borboletas
Iserhard et al., 2006. Occurrence of Lepidopterism caused by the moth Hylesia nigricans (Berg) (Lepidoptera: Saturniidae) in Rio Grande do Sul State, Brazil. Neotropical Entomology 36(4):612-615 (2007).
Paniz-Mondolfi et al.. 2011. Cutaneous lepidopterism: dermatitis from contact withmoths of Hylesia metabus (Cramer 1775) (Lepidoptera: Saturniidae), the causative agent of caripito itch. Intern. J. Dermat.
PMPA. 2023. Vigilância orienta sobre mariposas do gênero Hylesia -21/03/2023.
Specht et al., 2006. Biologia de Hylesia nigricans (Berg) (Lepidoptera, Saturniidae, Hemileucinae). Rev. Bras. Zool. 23 (1).
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Hallmann et al., 2017. More than 75 percent decline over 27 years intotal flying insect biomass in protected areas. PloSOne.
Janicki et al., 2022. The collapse of Insects.
Kover, Paula. 2017. Insect ‘Armageddon’: five crucial questions answered.
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Estudos citados pela autora disponíveis aqui.
Atencio, G.W.G.; Deprá, M.; Romanoswki, H.P. 2019. Euryades corethrus: a grassland butterfly threatened by habitat loss and climate change. (submetido)
Andrade, B.0.; Dröse,W A.; A ires, C. A. et al., 2023. 12,500+ and counting: biodiversity of the Brazilian Pampa. Frontiers of Biogeography, v. 15.
Bellaver, J. M., Lima-Ribeiro, M. D. S., Hoffmann, D., & Romanowski, H. P. (2022). Rare and common species are doomed by climate change? A case study with neotropical butterflies and their host plants. Journal of Insect Conservation, 1-11.
Benyamini D., Mega N.O., Romanowski H.P., Moser A., Vila R. & Bálint Z. 2019. Distribution, life history and conservation assessment of the critically endangered butterfly Pseudolucia parana (Lepidoptera: Lycaenidae). Folia Entomologica Hugarica Rovartani Közlemények 80: 303-325.
Mega, N.O., Guimarães, M., Costa, M.C., Caporale, A., Paesi, R.A., Fucilini, L.L. & Romanowski H.P. 2020. Population biology and natural history of the grassland butterfly Euryades corethrus (Papilionidae: Troidini), an endangered species from South American Campos. Journal of Insect Conservation 24: 853-865.
Pedrotti, V.S.; Mega, N. O.; Romanowski, H P. Population Structure and natural history of the south ameriacan fruit-feeding butterflyTaygetis ypthima (Lepidoptera; Nymphalidae). Austral Entomology , v. 58, p. 1-12, 2019
Brandon T. Barton, Mariah E. Hodge, Cori J. Speights, Anna M. Autrey, Marcus A. Lashley, Vincent P. Klink. 2018. Testing the AC/DC hypothesis: Rock and roll is noise pollution and weakens a trophic cascade.
Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). 2017. Importância dos polinizadores na produção de alimentos e na segurança alimentar global, DF.
Direto ao Ponto. 2020. Entenda o fenômeno da nuvem de gafanhotos que assola o Norte da Argentina. Disponível aqui.
Toledo, Karina. 2017. Serviços de polinização representam 10% do valor da produção agrícola mundial.
Wilson, E. 2017. Biodiversity research requires more boots on the ground. Nature.