11 Abril 2023
"Se, na longa temporada do cristianismo europeu e colonial, a Igreja ditava, como mestra da vida, as normas da moral, que coincidiam com as leis dos Estados, já há algum tempo perdeu definitivamente esse poder. A estratégia anticolonial brasileira, temperada pela cordialidade, corporeidade e pelos jeitos, pode ser uma proposta válida para o futuro? Eu realmente não sei. No entanto, vejo que essa antropologia sempre lidou com a dimensão privada da existência, a ponto de reduzir toda a realidade pública às exigências da família. De fato, o patrimonialismo domina as relações políticas brasileiras e continua sendo um elemento das instituições que, em teoria, deveriam ser republicanas", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 10-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas, conclui, "nem sempre, porém, cordialidade e jeito são trunfos no jogo da vida".
Parece que sempre existiu e ainda existe um controle dos membros leigos e clericais da Igreja Católica que pode ser descrito com o paradigma da vida dupla.
Existiria uma vida submersa, que presumivelmente seria sempre caracterizada pela incontrolável imprevisibilidade dos desejos e das práticas eróticas – e é uma vida que deve ser negada, governada e reprimida, para se adequar a modelos de personalidade e comportamentos padronizados totalmente identificados com a instituição.
Em suma, nessa dicotomia do ser humano, haveria uma parte moral e outra imoral, uma lícita e outra ilegal, uma manifesta e outra secreta e, por vezes, inconfessável. O preço a pagar é muitas vezes a remoção, sempre malsucedida, da corporeidade e dos traços característicos do temperamento e do caráter.
Acrescente-se o risco, não tão remoto, de castração de qualquer possibilidade de autoconhecimento e de qualquer atitude autocrítica. A dimensão submersa da personalidade católica inclui, além das emoções, dos sentimentos e dos desejos, todas as características do temperamento e do caráter da pessoa.
E o que sustenta sua irredutível liberdade, sua solidão nunca colonizada, subversiva e perigosa. E sua infância com seus sonhos e brincadeiras. E todo o potencial anárquico que todo ser humano carrega consigo.
No entanto, é preciso lembrar que essa antropologia não funciona no Brasil. A colonização católica desses aspectos não racionais, e às vezes irracionais, do sujeito não funcionou e continua a não funcionar no Brasil indígena e negro. Funciona com os descendentes da mais recente colonização europeia, alemã, italiana e polonesa, mas não se aplica a brasileiros-raiz.
É a cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) que, com suas luzes e sombras, define os brasileiros como seres humanos que agem com o coração, de forma emocional, sempre priorizando as relações de familiaridade e intimidade, para se defender dos rigores da racionalidade e da lei. Um mundo emocional que sabe ser acolhedor e carinhoso, mas que também tem a possibilidade de se expressar com ódio e violência sem precedentes.
Para cada situação complicada é preciso encontrar – como se diz no Brasil – um jeito, e somente com o jeitinho se afirma a prioridade do indivíduo em relação às convenções sociais e à opressão do Estado. Porque quando não se consegue encontrar um jeito, a complicação costuma ser resolvida com o assassinato do adversário. Com jeito, até mesmo as regras e os mandamentos da Igreja são contornados.
A própria espiritualidade brasileira é caracterizada pela exuberância festiva, não pelo estilo silencioso e meditativo tipicamente europeu. Os ritos encontram transcendência nas conversas barulhentas durante as celebrações e nos cantos e danças que fortalecem os laços familiares.
Neste mundo a dimensão submersa é a racionalidade.
Na contabilidade de ganhos e perdas, os europeus, por um lado, controlam, escondem, mascaram, negam as emoções, pelo outro, os brasileiros, ao contrário, salvam a corporeidade contra a concepção indo-europeia e grega que assume a superioridade hierárquica do logos – da mente, do espírito e do ser masculino – sobre a natureza, o corpo e sobre a mulher.
Talvez essa característica cultural seja a maior resistência ao processo de colonização europeia. E por ser existencial e não teórica, esta talvez seja o antídoto mais eficaz contra Parmênides e a metafísica. Além disso, a corporeidade com seus jeitos - inclusive antropofágicos - poderia inspirar as lutas e insurreições de povos que carregam em seus corpos as cicatrizes da conquista colonial.
Duvido que personalidades positivas possam surgir em um processo de repressão que marca a identidade católica europeia. O resultado da negação é muitas vezes uma adaptação conformista, ou hipócrita e temerosa às prescrições e convenções religiosas e sociais, muitas vezes abrindo espaço para atitudes autoritárias e de julgamento.
É evidente que é possível escapar do controle social e vivenciar esses aspectos secretos de nossas vidas, que as instituições totais, inquisitoriais e ditatoriais não podem aceitar. Se, no estado totalitário, é a polícia, os informantes e a magistratura que reprimem os transgressores, na Igreja Católica o controle e a repressão da sexualidade são reforçados pelo uso do sacramento da reconciliação, no qual se reconhece a fragilidade humana e se reforça a relação com Deus que é Amor e Perdão.
Mas, na confissão, praticamente os únicos pecados que todos acabam confessando são as transgressões ao sexto mandamento, a ponta emergente do iceberg da corporeidade. Isso constituía e ainda hoje constitui o poder clerical, que se exerce na absolvição do penitente.
Nas confissões dos católicos brasileiros das comunidades tradicionais, ao contrário, quase nenhum pecado ligado à sexualidade aparece. Encontramos, em vez disso, a confissão de uma culpa, da qual se sente remorso mesmo em idade avançada: a desobediência aos pais, ou seja, a crença de que, ao longo da vida, muitas vezes se esqueceram da preciosa herança dos antepassados.
Outro pecado geralmente confessado é a existência de intrigas e intrigados, inimizades e inimigos não perdoados, sofrimento que revela a incapacidade de resolver os conflitos familiares e comunitários. E depois a impaciência e, por fim, o sofrimento com a ingratidão dos maridos e dos filhos.
E as outras transgressões? Os outros mandamentos? E as bem-aventuranças de Jesus de Nazaré? E a indiscutível corporeidade do Filho do Homem, nosso Deus? E Mateus 25?
Vale a pena notar que, a partir dos anos 1960, quando a modernidade ocidental aparentemente libertou a sexualidade da repressão, o poder clerical, que em parte se baseava nela, perdeu prestígio e autoridade.
Mas a liberação sexual também revelou, de forma nova e convincente, seus limites e a necessidade de um discernimento ético. Em suma, a afirmação "faça amor, não faça guerra" não se sustenta sem uma reflexão ética. Além disso, novas perspectivas éticas parecem urgentes se levarmos em consideração os feminismos, a crítica ao machismo e ao patriarcado e os movimentos ligados às comunidades LGBTQIA+.
Sem esquecer as conjunturas especificamente eclesiais, que mostram crises profundas e constitutivas decorrentes do celibato clerical, com a evidência de problemas hetero e homoafetivos e o escândalo, de proporções estatísticas assombrosas, da pedofilia. Além disso, assistimos à fragilidade da família tradicional, à crise da indissolubilidade do matrimónio católico, à multiplicação das uniões conjugais de fato, que a Igreja continua a definir como adúlteras.
Parece evidente que hoje não podemos mais salvar as aparências castas e virtuosas da nossa Igreja e que, ao contrário, emergem suas próprias dificuldades humanas em lidar com sexualidade, afetividade e gênero.
Se, na longa temporada do cristianismo europeu e colonial, a Igreja ditava, como mestra da vida, as normas da moral, que coincidiam com as leis dos Estados, já há algum tempo perdeu definitivamente esse poder.
A estratégia anticolonial brasileira, temperada pela cordialidade, corporeidade e pelos jeitos, pode ser uma proposta válida para o futuro?
Eu realmente não sei. No entanto, vejo que essa antropologia sempre lidou com a dimensão privada da existência, a ponto de reduzir toda a realidade pública às exigências da família. De fato, o patrimonialismo domina as relações políticas brasileiras e continua sendo um elemento das instituições que, em teoria, deveriam ser republicanas.
A lei continua a ser utilizada pelas elites oligárquicas e rentistas como arma para combater inimigos e adversários, enquanto familiares e amigos ficam exonerados da obediência à lei e protegidos e acobertados, mesmo no caso dos crimes mais hediondos. E, uma realidade que deveria ser estudada, nas comunidades católicas do interior e das periferias urbanas, não seria justamente a aliança entre famílias que sustenta esse pacto comunitário? Uma ou duas famílias e não um conjunto de indivíduos escolhendo o caminho comunitário! E na escola pública, os professores, até hoje, são tios e tias, assimilados à hegemonia familiar.
Atualmente parece que só existem dois caminhos para os católicos.
Os tradicionalistas apostam na restauração do passado, em um retorno radical ao Silabo de São Pio IX e na cruzada contra o modernismo de São Pio X. Essa posição coloca seus partidários em estreita ligação política com os movimentos e partidos de direita e de extrema-direita que, nos últimos anos, voltaram a ganhar espaço e influência.
Os católicos do Concílio Vaticano II, ao contrário, concordam em abordar dialogicamente as mudanças que a modernidade trouxe na história e enfrentam o desafio de uma renovada escuta dos sinais dos tempos e de novos discernimentos espirituais e éticos. Politicamente muitas vezes se identificam com o que resta do legado da esquerda, incapaz de lidar com os efeitos trágicos do sistema capitalista e obrigada hoje a defender o status quo ameaçados pela direita antissistêmica.
A direita se recusa a colocar o tema da justiça social e ambiental na sua agenda programática, mas insiste na restauração dos antigos valores da autoridade religiosa, da pátria e da identidade nacional e racial, da heterossexualidade, da família.
Resumindo, mais uma vez a sexualidade se encontra no primeiro plano, e a direita se opõe à degeneração e degradação do Ocidente e ao colapso espiritual da modernidade.
Essa ideologia antiocidental já foi monopólio do fundamentalismo islâmico, mas hoje está plenamente presente no fundamentalismo pan-russo de Putin e da Ortodoxia do Patriarcado de Moscou. Prática e discurso que, com diferentes doses, encontramos no renascimento da direita em todo o mundo: Trump e Tea-Party nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil, Le Pen na França, Meloni na Itália, Geert Wilders na Holanda, AfD na Alemanha, Orban na Hungria, Mateusz Morawiecki na Polônia, Norbert Hofer na Áustria, UDC, Partido Popular Dinamarquês, Democratas Suecos, Aurora Dourada na Grécia, Partido Popular Nossa Eslováquia, Nigel Farage, com o Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP) na Inglaterra e Irlanda do Norte.
Parece que os brasileiros de cordialidade e de jeito estão completamente excluídos dessa briga de brancos, uma expressão brasileira intraduzível para sublinhar uma querela elitista entre privilegiados, que não apresenta nenhum interesse ou vantagem para o povo comum. Resta ver se e como eles possam reproduzir as suas estratégias de sobrevivência em situações cada vez mais adversas, continuando a sua cordial oposição à suposta racionalidade que promove a guerra, a fome e a destruição da vida.
Pensando na forma popular de enfrentar os conflitos, lembro-me de Alonso Silvestre Gomes, líder camponês, mártir da terra (+19 de novembro de 1990), assassinado durante um conflito pelas terras em São Mateus do Maranhão. Alonso vinha sendo ameaçado de morte há tempo e sabia quem eram aqueles que depois o viriam a matar.
Qual foi o plano que escolheu para se defender? Ele não poderia fugir, porque a reconstrução da vida familiar em outro lugar era impensável para ele. Reagir às ameaças armadas dos latifundiários não era viável, porque ele e seus irmãos não tinham força suficiente naquela luta.
Assim, poucos dias antes de o assassino contratado pelos latifundiários matá-lo, ele optou por visitar um dos autores das ameaças para pedir-lhe um empréstimo. Alonso não precisava daquele dinheiro, mas era urgente para ele construir ou fortalecer laços de dependência e familiaridade com o inimigo e assim resolver o conflito. Nem sempre, porém, cordialidade e jeito são trunfos no jogo da vida.
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Brasil: a Igreja, as normas, o Estado. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU