11 Abril 2023
Páscoa de ressurreição e Páscoa de dor. “Nasci em 1942. A Europa estava manchada de sangue. Hitler e Stalin se comportavam como dois imperadores. Hoje a guerra voltou. Mesmo que o front seja longe de nós, lá, na Ucrânia. Por 70 anos, a Europa manteve longe de si a morte e a destruição. Não é mais assim. Na época uma mortalha cobria tudo. A atmosfera era de terror. Em Brianza, a minha família havia se mudado de Merate para Santa Maria Hoè, um pequeno vilarejo nas colinas”.
“Minha mãe Marcella era uma professora primária que sempre tinha um livro nas mãos. Meu pai Paolo nunca havia tirado a carteirinha do Partido Nacional Fascista e, por isso, nunca tinha um emprego fixo. Eu tinha dois anos. Eu tenho apenas uma lembrança clara daquela época: uma noite de janela na casa dos meus avós maternos observo a planície e vejo o vermelho das chamas subir ao céu de Milão que está pegando fogo”.
Na Via della Conciliazione, em Roma, Gianfranco Ravasi caminha a passos rápidos no trecho que separa os escritórios do Cortile dei Gentili, instituição que fundou em 2011 para intensificar a diálogo entre crentes e não crentes, e Santa Marta, onde estamos indo almoçar.
A entrevista com Gianfranco Ravasi é editada por Paolo Bricco, publicada por Il Sole 24 Ore, 09-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gianfranco Ravasi (Foto: Università di Pavia | Wikimedia Commons)
A cultura e a força, a profundidade e o estilo do cardeal geralmente permeiam assuntos espirituais e culturais, num bloco inteiriço de narração e interpretação. Mas ele tem um controle milimétrico da palavra, a capacidade natural de enchê-la de energia e o talento para construir narrativas de sua própria vida e da vida dos outros.
“Nunca pensei que pudesse ser um escritor. Eu sou conquistado pelo que não tenho: a genialidade. Costumo usar citações. Não apenas bíblicas. Mas também literárias, históricas, filosóficas. E, nisso, sou auxiliado pela minha memória. A análise crítica de texto é meu primeiro amor. A minha dimensão é a de apresentar perguntas. E de construção de respostas abertas. Eu gosto muito da poesia "Sob uma estrela pequenina" de Wislawa Szymborska: ‘Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas’. Nunca acreditei em poder construir a minha própria arquitetura”.
Ravasi é parado a cada 30 metros. A primeira vez por dois garotos da diocese de Milão. Uma segunda por um religioso alemão que acabava de chegar a Roma para uma função cultural. Uma terceira vez por um bispo que lhe quer presentear com o seu último livro, na natural proximidade que se estabelece entre quem escreve (o último livro de Ravasi é Tre. Divina aritmetica, uma diversão sobre o número três que acaba de ser publicado pela il Mulino).
Uma quarta vez ele é parado por alguém que quer convidá-lo para uma conferência: “Nunca experimentei tédio e isolamento. Mas, infelizmente, não consigo ter solidão. Para mim, o período que passo no verão em Bellagio, no Lago Como, é muito importante, com os picos das Grigne em frente à casa de minhas irmãs Maria Teresa e Annamaria. Acabo por sentir-se assaltado pela realidade. Todos os dias recebo em média três convites: da conferência na paróquia à participação numa procissão, ao congresso internacional de especialistas. Tem dia que recebi oito. Nem sempre é fácil. Às vezes fico sem fôlego”.
Entramos na residência de Santa Marta. Esperamos que o refeitório abra a uma hora. Três freiras de Spello, a vila medieval da Úmbria, reconhecem Ravasi. O Papa Francisco sai do elevador, muito sorridente. Bergoglio, que seria hospitalizado poucos dias depois para depois se recuperar rapidamente, se aproxima, cumprimenta Ravasi e as freiras que o esperavam. Nós nos afastamos discretamente e entramos no refeitório de Santa Marta. A sala é bem ampla e bem iluminada. As mesas são marcadas. Há um farto buffet de saladas e de pratos frios onde podemos nos servir sozinhos. Sentamo-nos.
Ravasi conta: “Durante o conclave, em uma pausa ele e eu começamos a conversar. Estávamos tão absortos em nossa discussão que não percebemos que tínhamos que participar da próxima votação. Vieram nos procurar. Não nos encontravam. Tínhamos que voltar. Nós éramos os únicos que faltavam. E, naquele momento, Bergoglio foi eleito. Ainda sorrimos quando lembramos esse episódio".
Chegam os garçons do Santa Marta. “Este é um refeitório – explica Ravasi – onde todos os dias há apenas o menu definido. Servem o que foi preparado na cozinha”. Em cima da mesa tem uma garrafa de Vernaccia di San Gimignano. Como antepasto, trazem um prato de salmão, muito bom. Ravasi teve uma vida marcada pela linearidade: primeiro estudante (“ginásio e liceu clássico no seminário de Venegono Inferiore, solitário como uma abadia, perdido entre os bosques, como era a intenção do cardeal Schuster”), depois professor, então prefeito da Galeria-Biblioteca Ambrosiana, finalmente presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, das Pontifícias Comissões para os Bens Culturais da Igreja e de Arqueologia Sacra desde 2007 com o Papa Bento XVI e com Papa Francisco, até o término natural do mandato, em 2022.
Como primeiro prato é servido uma massa com verduras, muito delicada. “Essa linearidade – nota Ravasi – contribuiu para a serenidade subjacente em minha vida. Nunca fiz psicanálise ou psicoterapia. Eu sempre encontrei recursos na fé, cultura e nos relacionamentos. Naturalmente, passei por muitos momentos de crise. Como dizia o cardeal Carlo Maria Martini: ‘Muitas vezes atravessamos a fronteira e nos encontramos sob um céu desprovido de divindade’. A cultura ocidental tende a demonstrar. A cultura bíblica tende a mostrar. E, ao mostrar, são inerentes a epifania, a mutação, a dor e a crise”.
O segundo prato é vitela com legumes. “Para mim, atividade cultural, tanto especializada como informativa, representa um pedaço da minha identidade espiritual e da minha missão pastoral. Uma parte não separada, mas integrada à minha vida de padre. Enquanto estudava em Roma na Gregoriana e no Pontifício Instituto Bíblico era forte o espírito de reapropriação por parte dos fiéis dos textos sagrados, incutido nas paróquias, nas associações e nas comunidades pelo Conselho Vaticano II, que havia se realizado entre 1962 e 1965. Eu era tímido. Então eu comecei a circular para explicar. Muitos pediam para entender e conhecer. Roma era uma cidade difícil, como Pasolini. Na Tor Pignattara, as estradas não eram asfaltadas. Um idoso doente me esperava em uma casa modesta. Com muita dignidade colocava uma bandeja sobre a mesa, enfeitava-a com uma toalhinha de renda e oferecia-me um café. Quando, em junho de 1969, voltei a Milão, fui cumprimentá-lo. Ele me disse: ‘Você não sabe a tristeza de não ter mais ninguém por quem esperar’”.
O problema da solidão - não buscada como espaço de "dieta da alma", mas forçada e cheia de fantasmas – é uma condição dos seres humanos comum a toda a humanidade: “Nabokov tem razão, quando escreve que ‘a solidão é o playground de Satanás’. Tive sorte porque com minha atividade cultural conheci pessoas com quem desenvolvi relações de conhecimento e em alguns casos de amizade. Penso em Noam Chomsky, que conheci por uma discussão sobre a sintaxe de cérebro, e a Abraham Yehoshua, que encontrei em um diálogo sobre Jó, a dor e o rosto de Deus”.
“E, entre as amizades femininas que sempre apreciei tanto, Lalla Romano, a grande proustiana escritora hoje esquecida, e Alda Merini, que depois de passar horas e horas ao telefone comigo um dia me convidou para sua casa, no Navigli, cobrindo a desordem com flores e me recebendo ao piano, com dois de seus amigos, um no violino e outro que cantava. Da mesma forma, foi muito útil para mim voltar ao longo do tempo, todos os fins de semana, à paróquia de Osnago, em Brianza, para rezar a missa e atender a confissão dos fiéis. Com as pessoas mais idosas ainda falo o dialeto lombardo, que aprendi quando era pequeno com meus pais e meus avós na versão da região de Lecco e que depois aperfeiçoei estudando as poesias milanesas de Carlo Porta”.
Enquanto isso, uma torta de sorvete de creme, baunilha e lascas de chocolate é servida à mesa aqui em Santa Marta. O trabalho cultural e espiritual de Ravasi opera em uma dimensão contínua, metatemporal e de identificação com o presente. A historicização dos autores, o diálogo intertextual dos textos teorizado por T.S. Eliot, o problema do cânone ocidental proposto por Harold Bloom, o sopro e a vacilação da fé na cotidianidade, a dimensão aguda e concreta da dor individual e coletiva são elementos que compõem um quadro de extrema complexidade que, por sua vez, se relaciona com as últimas tendências contemporaneidade.
“Na minha opinião, a pergunta de Agostinho continua válida: tu quis es? Quem é você? Hoje, porém, com a teoria do gênero, o eu pensa que pode se autopropor. O diálogo numa realidade fluida, viscosa e conflituosa é cada vez mais difícil. Eu vejo isso com o Cortile dei Gentili. O multiculturalismo não funcionou. O politeísmo dos valores levou ao sincretismo ou ao fundamentalismo. Eu acredito no interculturalismo. Não pode haver sempre o duelo. O duelo é algo diferente do dueto, que é preferível do ponto de vista cultural, espiritual e humano”, diz Ravasi.
E, ao nos despedirmos na soleira de Santa Marta, a citação à interculturalidade e o chamado ao dueto me lembram um aforismo de sua amiga Alda Merini, desesperada, terna e sempre em busca – como todos os seres humanos – de amor, plenitude e ressurreição: “Abraçamo-nos para nos sentirmos inteiros”.
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Diálogo, raízes, interculturalidade e a busca da solidão, dieta saudável da alma. Entrevista com Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU