10 Abril 2023
Quando dizemos que não podemos deixar de nos chamar cristãos, admitimos inconscientemente que o cristianismo tem pouco a ver com a palavra de Cristo e muito a ver com a cultura ocidental.
A reportagem é de Simonetta Sciandivasci, publicada por La Stampa, 06-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Jesus não tinha nenhuma intenção de fundar uma religião: ele pedia uma fé”, diz Umberto Galimberti, filósofo e psicanalista, que acaba de publicar “Le parole di Gesù” [As palavras de Jesus] (Ed. Feltrinelli), escrito em parceria com Ludwig Monti, um livro infantil que narra essa fé por meio das palavras que “o filho de Deus que se fez homem” pediu que fossem escutadas e seguidas, mas que, ao contrário, desapareceram ou se transfiguraram, tornando-se funcionais a uma mensagem prescritiva.
O amor, o corpo, a verdade, o presente: aqui se articula o modo de viver que Cristo veio revelar, mas que nós expulsamos da religião que lhe atribuímos.
Joseph Moingt, teólogo francês, dizia que a excepcionalidade de Jesus não era de ordem religiosa, mas humana: “Somos conduzidos a Deus pelos caminhos de humanidade que Jesus traçou”. Por essas estradas, o catecismo e as missas que nos fazem dizer “não podemos deixar de nos chamar cristãos” levam-nos cada vez mais raramente – empenhadas como estão em nos soldar a uma identidade que, ao longo dos séculos, serviu para justificar e exercer um domínio sobre nós mesmos e os nossos medos – para o outro, para o irracional, para o mistério, para o futuro. Assim, de um fato concreto e humano, o verbo cristão se transformou em uma mística do Ocidente.
Professor, uma premissa inevitável: você continua sendo um grego, como sempre se definiu, ou está se convertendo?
Grego. Nem ateu, nem secular, nem crente. Grego.
Quais as decorrências disso?
Que eu sei que devo morrer e adquiro disso o sentido do limite da minha vida.
Os gregos também acreditavam em um além.
Mas não em uma salvação deslocada para esse além. E nem Jesus, que de fato falava da importância do fazer, porque a salvação está neste mundo: aqui ela pode ser buscada e obtida.
Mas Jesus diz: você será julgado se não vestiu quem estava nu, se não visitou o prisioneiro. Ele diz: você “será”. No futuro.
Certo. Mas são coisas que você faz aqui, agora. Esse deslocamento para o futuro nos ajuda a alimentar a esperança: enquanto a cultura grega é trágica, porque acredita que a morte é a implosão de todo sentido, a cultura judaico-cristã é animada pela fé, crê que, depois da morte, a história humana prossegue.
Em seu livro, você escreve que o otimismo que caracteriza a cultura ocidental vem da ideia de que morrer é uma passagem e não o fim.
A cultura ocidental concebe o tempo assim como ele é descrito pelo cristianismo, segundo o qual o passado é mau, o presente é redenção, o futuro é salvação. O mesmo vale para a ciência: o passado é ignorância, o presente é pesquisa, o futuro é progresso.
Mas...?
Em vez disso, o futuro é apenas o tempo que vem depois do presente, e é por isso que é importante agir agora: não fazer isso significa condenar o amanhã a ser como hoje, ou pior. A esperança, nesse sentido, é uma categoria cristã que nos ilude, corrobora aquela ideia otimista de que hoje é um dia melhor do que ontem.
Você escreve: “A verdade não se contempla: faz-se”.
‘Èmet, em hebraico, significa verdade e é uma palavra que indica ação e não conhecimento. Quando São Paulo diz “nós fazemos pouca verdade”, ele quer dizer que agimos pouco, não que procuramos ou sabemos pouco.
Mas fazer o quê?
Amar. Quando Simão, o fariseu, convida Jesus para almoçar porque quer entender se ele é realmente um profeta e o vê interagindo com Madalena, que lava seus pés e unge seus cabelos, ele diz: não pode ser um messias, anda com as prostitutas. Jesus responde-lhe: quando vim à sua casa, você não ungiu a minha cabeça com óleo, mas ela sim, e por isso seus muitos pecados lhe são perdoados, porque ela muito amou. Essa é a operação de Jesus, o seu fazer: o amor.
Que não pode prescindir do corpo.
E como poderia fazer isso, se o cristianismo se fundamenta na encarnação? Deus se faz homem e, portanto, assume um corpo. Com a comunhão, comemos o corpo e o sangue de Cristo, não a alma, que não pertence nem à cultura cristã nem à judaica: é uma invenção de Platão. Se os cristãos prestassem apenas um pouco de atenção quando rezar, saberiam que o Credo diz precisamente isto: a ressurreição dos corpos, não da alma. As Igrejas demonstram isso: estão cheias de imagens de corpos.
Quem é o próximo que Jesus nos diz para amar?
Não é a pessoa que está à minha frente, mas eu mesmo que me faço próxima de um outro, de quem está em dificuldade, que cruza o meu caminho e eu carrego sobre os ombros, como faz o bom samaritano. A condição essencial para que isso ocorra é a descentralização do próprio eu.
A empatia é uma qualidade cristã?
Não existem qualidades cristãs. Jesus transmitiu um modo de estar no mundo.
É como se você estivesse dizendo que Cristo e cristianismo não se misturam e que devemos separá-los um do outro.
Não. Minha tese é mais simples: digo que a mensagem de Cristo foi completamente mal-entendida e, antes ainda, não ouvida. Ele pedia fé em sua palavra, e nós o colocamos à frente de uma religião que nos serviu para sacralizar nossa cultura. Assim, com o Édito de Constantino, ela se tornou a religião do Império Romano. Com Carlos Magno, tornou-se a religião do Sacro Império Romano. Com a descoberta do novo mundo, onde em seu nome procedeu-se o extermínio dos indígenas, tornou-se a sacralização do imperialismo europeu. E, por fim, com o Concílio Vaticano II, tornou-se a sacralização da laicidade. Em tudo isso, a palavra de Jesus desapareceu.
A perda do sagrado de que tanto se fala com insistência, nesse sentido, ajudaria?
Outros mal-entendidos. Sagrado significa separado. O sagrado é o lugar da máxima violência, da sexualidade selvagem. Sagrada é a guerra, é Deus que pede a Abraão que mate seu filho, transgredindo sua própria lei, e faz isso porque habita o sagrado. Na igreja, nunca são lidas as duas últimas colunas do livro de Jó, nas quais se encontra a invectiva com que Deus responde a Jó, quando este, depois de ter suportado as penas do inferno, pergunta-lhe por que, embora fosse justo, lhe foram reservadas apenas desgraças. Deus responde: você acha que, por ter sido bom, eu deveria lhe recompensar? Onde você estava quando eu enchia o céu de estrelas e o mar de peixes? Aí está Deus: além do bem e do mal. Assim era também para os gregos. Deus é o cenário do qual a humanidade emergiu: o sagrado, justamente.
Como ocorreu essa emergência?
Primeiro, por meio dos ritos e depois por meio da religião. Religião significa relegar [relegare]: delimitar a área do sagrado, que é perigoso, mas nos habita. É por isso que as religiões desempenharam uma função de terapia universal.
É também por isso que preferimos entender a verdade como um ponto fixo e certo a se chegar?
A verdade firme é a invenção mais poderosa da metafísica do Ocidente inaugurada por Platão e reiterada depois pela teologia cristã com São Tomás, até chegar, depois, a Descartes, que estabeleceu que a razão é o lugar da verdade. O resultado final é o grande sonho da modernidade: a verdade é racionalidade. A partir dessa ideia surgiu outra, ainda mais ilusória: quem pensa bem faz o bem. O nazismo é o exemplo flagrante de como essa lógica está errada, porque o nazismo pensou muito bem como fazer o mal. As descobertas científicas da contemporaneidade demonstraram ainda que não há uma verdade absoluta e, assim, inauguraram um tempo novo: a pós-modernidade, que eu chamo de hipermodernidade, porque a racionalidade entendida como a era moderna a entendia foi destruída (de Einstein em diante), e se chegou a pensar em poder construir uma com a inteligência artificial.
E que tipo de racionalidade é essa?
Uma racionalidade dos comportamentos, que nos torna mais utilizáveis e que não é mais controlada pelo ser humano. O algoritmo faz um perfil nosso, que não responde a quem somos, mas a que servimos, eliminando a nossa dimensão irracional – a dor, o amor, a ideação, a imaginação, o sonho – porque perturba a racionalidade técnica.
Crer na ressurreição é irracional?
Do ponto de vista da religião, que – insisto – é a sacralização da cultura, o fato de que o filho de Deus morre é um escândalo. Enquanto, do ponto de vista da fé, nós não somos redimidos pela ressurreição de Cristo, mas sim pelo seu grito na hora nona, quando ele perde a confiança em Deus e grita: “Pai, por que me abandonaste?”. É no grito do Gólgota que Cristo participa da dor humana e nos ama. A ressurreição tornou-se importante apenas porque é funcional à ideia otimista do futuro.
Por que você escreveu um livro infantil sobre Jesus?
Porque as crianças não sabem nada sobre ele. O que me interessa é que, quando um menino entre em uma igreja, entenda o que vê.
O amor particular que Jesus tinha pelas crianças tem a ver com isso?
Não. Quando ele fala de crianças, ele se refere aos apóstolos. Para recuperar as palavras de Jesus, não são necessários os sermões, mas o estupor.
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A humanidade de Jesus frente ao sagrado, ao cristianismo, ao Ocidente. Entrevista com Umberto Galimberti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU