06 Abril 2023
Vandana Shiva (Dehradun, Índia, 1952) participou da conferência "Crise climática, ecofeminismo e bem-estar animal" no Encontro Internacional Feminista organizado pelo Ministério da Igualdade, e que aconteceu em Madri entre os dias 24 e 26 de fevereiro. Nesta entrevista, realizada durante o evento, ela chama a atenção para uma coisa: é a única mesa prevista neste encontro para falar sobre ecologia e feminismo, embora sejam mais de cem conferencistas.
A entrevista é de Patricia Reguero Ríos, publicada por El Salto, 04-04-2023. A tradução é do Cepat.
Física, filósofa e escritora, criou em 1982 a Fundação de Pesquisa para Ciência, Tecnologia e Ecologia para proteger a biodiversidade e, especificamente, as sementes, diante das práticas expansivas e privatizantes da Monsanto – corporação que impõe suas sementes geneticamente modificadas. A revista Time a definiu como uma “heroína ambiental” e é autora de vários livros de referência sobre ecofeminismo, dentre os quais Who Really Feeds the World?: The Failures of Agribusiness and the Promise of Agroecology (Quem realmente alimenta o mundo? Os fracassos do agronegócio e a promessa da agroecologia). A calorosa salva de palmas que recebeu no auditório lotado é uma pequena demonstração de sua influência.
Na conferência você levantou grandes desafios e, ao mesmo tempo, falou de coisas muito pequenas, como os micróbios. Como os micróbios podem nos ajudar a parar de destruir o planeta?
Existe uma cosmovisão mecanicista que acompanha a teoria dos germes de que todo micróbio é uma coisa perigosa que vai nos atacar. Mesmo durante a pandemia da Covid, muitos cientistas falaram sobre como tivemos que acabar com os vírus. Mas somos 90% vírus, somos micróbios ambulantes e biomas ambulantes.
Como os micróbios podem nos ajudar? Em primeiro lugar, eles podem nos tornar mais humildes, ajudando-nos a recordar que são os seres mais antigos deste planeta, mais antigos que as plantas. Em segundo lugar, podem nos ajudar regenerando a ideia de ciclos. Porque o que o colonialismo fez com o extrativismo, com o industrialismo, foi acelerar a ideia de que as matérias-primas são extraídas da terra. A visão de mundo mecanicista criou uma linearidade e um reducionismo do pensamento. Mesmo agora, muitos dos movimentos estão errados, porque de alguma forma pensam que é possível separar as plantas dos animais e os micróbios das plantas... E ninguém defende os micróbios...
Bem, você...
As pessoas não percebem que a vida é um ciclo! Quando nossa vida acabar, seremos alimento para os micróbios. Com os micróbios podemos aprender a ser humildes, a abandonar a arrogância antropocêntrica e perceber que a pequenez é, na verdade, uma fonte de poder.
Outras pequenas coisas que são muito importantes em sua carreira são as sementes. Você confia nas lições que as sementes podem nos dar?
Confio nas sementes depois de passar quase quatro décadas com elas. Eu não sabia nada de sementes quando comecei, tive que aprender tudo. Comecei porque a indústria que nos trouxe os produtos químicos, os pesticidas, em uma reunião realizada em 1987, disse muito claramente que a principal razão pela qual temos de fazer engenharia genética é para obter patentes de sementes. E a principal razão pela qual precisávamos de um tratado internacional era impedir que os agricultores guardassem sementes para que, assim, todas as sementes permanecessem sendo um monopólio.
Eles expuseram isso e eu disse que a ideia de que todas as sementes pertencessem a eles é obra do imperialismo. Imagine o que acontecerá com os agricultores se eles tiverem que comprar sementes todos os anos: eles ficarão mais endividados. Posso até imaginar que eles cometeriam suicídio e, de fato, é uma das razões dos suicídios de agricultores na Índia: 400.000 agricultores cometeram suicídio e o principal motivo é a dívida por produtos químicos e sementes. 85% dos suicídios ocorreram na zona algodoeira e 95% do algodão é controlado pela Monsanto e por uma empresa algodoeira.
Então, o que as sementes podem nos ensinar? As sementes podem nos ensinar a renovação, a regeneração. Todo mundo fala sobre regeneração, mas se você quer aprender a regeneração, aprenda com a semente. Se você pegar uma pequena semente, terá uma nova geração. Mas não lhe dá apenas outra semente: dá-lhe cem, mil, 100.000 sementes. Portanto, as sementes podem nos ensinar como superar a falsa construção patriarcal da escassez e nos ensinar a abundância. E a terceira coisa que as sementes nos ensinam é que uma semente se torna uma planta, mas a próxima geração de sementes é produzida por polinizadores: o crescimento das plantas é uma combinação do trabalho dos organismos do solo e do sol. Assim, as sementes também podem nos ensinar a cooperar.
Lamento levá-la para outros cenários, como a guerra na Ucrânia. Esta guerra mostrou aos europeus os limites dos nossos recursos. Aprendemos que os recursos não estão disponíveis o tempo todo. Você acha que essa é a lição que o Norte Global precisa aprender?
Penso duas coisas sobre a guerra na Ucrânia e é que, na realidade, trata-se de uma crise da democracia. E a crise começou em 2014, quando o governo eleito foi derrubado por interferência dos Estados Unidos. Isso também já levou à guerra em grandes partes da Ucrânia, nas partes orientais. Há uma guerra acontecendo onde as pessoas estão morrendo todos os dias.
Outra coisa que já estava clara, mesmo antes de a Rússia invadir a Ucrânia há um ano, é o fato de que eles já estavam se apropriando dos seus recursos. Metade das terras agrícolas da Ucrânia foi tomada por empresas apoiadas pelos Estados Unidos. A Ucrânia foi o primeiro dos países do Leste Europeu a ser pressionado a mudar suas políticas agrícolas.
Penso que, em primeiro lugar, a Europa precisa entender sua relação com o resto do mundo. E, em segundo lugar, há os limites de recursos, que na Europa sempre são superados recorrendo a outros países. A colonização é uma colonização europeia, primeiro da Espanha e depois da Inglaterra, que na verdade ocorreu para a obtenção de recursos. Eles se apoderaram de todas as nossas terras, se apoderaram de todas as nossas florestas. E houve uma ocupação contínua das sementes, da biodiversidade, da água.
Essa colonização tem a ver com a guerra na Ucrânia no sentido de que existe uma economia global baseada na especulação, no crescimento ilimitado e na financeirização. E, se os preços do petróleo subiram, não é por causa da guerra na Ucrânia, mas porque as companhias petrolíferas estão extraindo mais lucro dos povos. Se os preços dos fertilizantes subiram, é pelo mesmo motivo. E o mesmo vale para os alimentos. A guerra é muito culpada por coisas que têm a ver com a economia global.
Muitas mulheres valorizaram nestes dias de encontro as políticas públicas feministas que estão sendo implementadas em seus respectivos países. Vimos figuras muito proeminentes da Argentina ou, claro, da Espanha falarem sobre como estão implementando essas políticas públicas feministas. Você pensa que essas políticas são políticas ecofeministas?
As políticas que foram discutidas na conferência foram principalmente políticas sobre o trabalho das mulheres. As mulheres trabalham e cuidam, e são políticas importantes porque o capitalismo sempre se baseou na extração do trabalho gratuito das mulheres, que é o que sustenta todo o edifício. Atualmente, a economia globalizada extrai cada vez mais dos trabalhadores, claro, mas sobretudo das mulheres.
Quando fiz estudos sobre o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional e nos organizamos em todo o Sul quando impuseram os programas de ajuste estrutural, as mulheres tiveram que trabalhar para conseguir empregos no marco do ajuste estrutural apenas para manter as suas famílias de pé. Em uma boa economia, um trabalho é suficiente. Mas quando tudo desmorona e os agricultores não recebem o suficiente, é preciso ter cada vez mais trabalho.
Portanto, diante da ganância globalizada e da falta de responsabilidade por parte das empresas, o resultado é uma carga cada vez maior sobre as mulheres. A incorporação desse tema às políticas públicas começa a produzir resultados. Transfere a carga das mulheres para o sistema público.
Falou-se muito nestes dias sobre a institucionalização do feminismo. O que acontece quando o feminismo entra na instituição? Esse feminismo se dá bem com os feminismos da base?
Pelo que observo das pessoas que hoje estão nas instituições na Espanha, são pessoas que antes faziam parte do movimento. São ativistas que hoje ocupam cargos ministeriais. O poder vem dos movimentos e no dia em que as instituições esquecerem que a sociedade vem primeiro e que as instituições são secundárias, nesse dia as instituições se converterão em sistemas opressores e não libertadores.
Suas companheiras conferencistas explicaram como a exploração da terra está relacionada à violência contra as mulheres. O ecofeminismo é uma proposta para acabar com a violência contra as mulheres?
A violência contra as mulheres se deve ao fato de alguns patriarcas quererem ser donos da terra e quererem apropriar-se das terras e dos territórios. Muitas oradoras disseram: o que está em jogo é a nossa terra e a nossa vida. O fato de que as mulheres defendem a terra e a vida fica evidente se olharmos para a literatura sobre os feminicídios. Diante do fato de que está ocorrendo um ecocídio, as mulheres se levantam. A violência contra as mulheres e a violência contra a terra estão interligadas e a paz com a terra e a paz e a sociedade estão interligadas.
Você explicou que existem vários truques fundacionais do patriarcado. Um deles é que as mulheres são o “segundo sexo”.
Sim. E a outra parte do truque é afirmar que a natureza é matéria inerte. Aqui estão as plantas, as árvores que crescem na floresta, as borboletas, as abelhas... e dizer que é inerte! Durante cem anos fomos governados por uma ilusão.
Acredita que esses truques agora estão expostos?
Comecei a ver isso nas décadas de 1970 e 1980, quando escrevi meu livro Staying alive: Women, ecology and development (Ficar vivo. Mulheres, ecologia e desenvolvimento). Procurei entender porque destruímos a floresta quando as mulheres veem que ela está viva. O que encontro agora são, claro, as ecofeministas que têm dito isso nos últimos 30 ou 40 anos, mas os cientistas só agora estão se referindo a isso.
Não apenas viva, mas, como você diz, criativa...
A palavra “natureza” é composta de vários termos que significam “força criativa primordial”. Nossa criatividade depende da criatividade da terra.
Você participou do movimento Chipko na década de 1970 e é ecofeminista há várias décadas. Que novos desafios o ecofeminismo enfrenta hoje?
Eu me envolvi com o movimento Chipko porque cresci nas florestas e vi florestas sendo destruídas. Encontrei o Chipko e fui voluntária enquanto fazia meu doutorado em Teoria Quântica. Durante esse tempo, havia apenas um lobby e nós os derrotamos: acabamos com o corte comercial nas altas montanhas. Hoje os desafios têm várias vertentes – isso não existia há quarenta anos. Trata-se de megaprojetos da chamada infraestrutura. Eu chamo isso de infraestrutura da ganância e da velocidade.
Quanto mais a infraestrutura da ganância cresce, mais se destrói a infraestrutura da vida. A segunda coisa que não existia naquela época é a globalização. Naquela época, sabíamos exatamente quem era o empreiteiro do lobby florestal e podíamos responsabilizá-lo; hoje, os interesses econômicos são invisíveis, não estão na sua frente, não são do seu país, mas estão no comando de tudo na economia.
O terceiro desafio que não existia naquela época, nem na década de 1980, é o domínio do sistema financeiro e a financeirização do mundo. Como oculta os interesses que controlam as pessoas, escrevi um livro chamado Oneness vs. the 1%: Shattering illusions, seeding freedom (Unidade contra o 1%: quebrando ilusões, semeando a liberdade), porque descobri que a maioria das empresas agora é propriedade de fundos de gestão de ativos, 70%: Coca-Cola, Monsanto, Apple, Microsoft, todas elas proprietárias, e BlackRock, Vanguard e State Street.
Agora, essas são entidades invisíveis na vida das pessoas e são anônimas e não são governadas por ninguém. Não são governadas por bancos de reserva ou governos, elas se autogovernam. Então elas também mudaram a economia, porque pegaram o valor real de uma floresta e o transformaram em um ativo financeiro. Pegaram o valor real da água e a transformaram em um objeto de negócio. Estes são os três desafios muito diferentes e que nos indicam que agora precisamos tanto da ação local, que é necessária, quanto da solidariedade global, e da solidariedade internacional, porque as forças agora são globais.
Na exposição, você não fez alusão ao atual contexto de surgimento de ideias totalitárias por meio de partidos de extrema direita, como fizeram as outras conferencistas. Você acha que a extrema direita é um problema para o ecofeminismo?
Claro que é. Em meu livro Earth Democracy (Democracia na Terra), explico que se as corporações globais assumirem o controle das economias e a globalização destruir as democracias nacionais, então um problema será a concentração de poder. Foi assim que surgiram os bilionários. Assim surgiu a Monsanto. Foi assim que cresceram todos os monopólios na globalização. Mas outra coisa ficou muito clara: quando o dinheiro toma conta da democracia representativa, basicamente rouba os instrumentos de tomada de decisão. E também destrói as economias locais e os meios de subsistência.
Criou-se uma política de identidade baseada na negatividade. É preciso encontrar inimigos, e a ascensão da direita busca inimigos e destrói as liberdades coletivas indivisíveis – Vandana Shiva
Portanto, uma reação natural é organizar um protesto, como aconteceu em Seattle. Mas depois disso começou a militarização e em Genebra mataram um jovem a tiros. Por outro lado, criaram guerras culturais. E como escreveu Samuel Huntington naquela época, no choque de civilizações você só pode saber quem você é se souber quem você odeia. Portanto, criou-se uma política de identidade baseada na negatividade. É preciso encontrar inimigos, e a ascensão da direita busca inimigos e destrói as liberdades coletivas indivisíveis.
O ecofeminismo tem muito a dizer, tanto sobre como recuperar a democracia econômica, que tem suas raízes na democracia ecológica, quanto sobre como recuperar nossa paz na sociedade, convivendo com nossas diversidades.
O ecofeminismo é necessariamente antifascista?
Tem que ser. Quando o racismo foi construído? Com o colonialismo. Quando os escravos se tornaram propriedade de alguém, a raça foi definida como discriminação. Antes disso, tínhamos a diversidade racial do mundo. Toda vez que houve uma concentração do poder econômico, tivemos o crescimento do fascismo. Mussolini disse muito claramente: o fascismo é a convergência do poder econômico e político. É por isso que, cada vez que destruímos os sistemas públicos e permitimos que o lucro privado cresça sem limites, o fascismo ergue sua cabeça.
Portanto, o feminismo igualitário é contra tratar a terra como um objeto inerte, como terra nullius. É contra tratar a diversidade cultural e racial em termos de superioridade e inferioridade, quando tudo o que existe é diversidade, e, portanto, tem que ser contra o racismo. E como a concentração do poder econômico e político com base na superioridade cultural é fascismo, tem que ser contra o fascismo.
Finalmente, voltemos às pequenas coisas. Você pode me dar um exemplo de algo pequeno, de uma comunidade local, de comunidades indígenas, que seja um exemplo de ecofeminismo?
Deixe-me voltar à minha própria inspiração nesta área. Quando as monsantos do mundo quiseram controlar a semente, eu estava voltando para casa e me perguntei: como se enfrenta isso? Voltei a pensar no colonialismo britânico e em como Gandhi fez duas coisas. A primeira foi dizer: não vamos usar roupas britânicas, vamos boicotá-las. E a segunda coisa foi: vamos fazer nossas roupas.
Ele pôs a roca para funcionar, coisa que não sabia fazer. A fiação indiana havia sido destruída pelos britânicos. Ele encontrou uma senhora de 80 anos e aprendeu a tecer e ensinou toda a nação a tecer. E quando as pessoas riam e diziam: como alguns pedaços de madeira podem lhe dar liberdade?, ele dizia: “Isso é tudo que me importa. Qualquer mulher na menor cabana pode fazer sua própria roca e fiar seu próprio tecido. No dia em que milhões de mulheres fizerem isso, seremos livres”.
Eu me inspirei nisso e pensei que a semente é realmente uma roca. Quando você tem sua semente, você pode cultivar sua colheita. Você não se endivida, não precisa comprar transgênicos. Durante a Covid, grandes cadeias de suprimentos entraram em colapso e os cultivos comerciais entraram em colapso.
As mulheres guardam as sementes e cultivam o que chamamos de jardins da esperança. Sempre digo que por menor que seja, pode ser na sua varanda, dá um pouco de alimento. Então, tenho encorajado as mulheres a terem pequenos jardins da esperança. E algumas delas permitiram que superassem o bloqueio imposto pela Covid. Uma coisa tão pequena retrata o fracasso das cadeias de suprimentos.
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“O ecofeminismo tem que ser antifascista”. Entrevista com Vandana Shiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU