22 Março 2023
"Incriminando Putin, enquanto a guerra está em curso, estão sendo cortadas pontes no que diz respeito à possibilidade de uma negociação e se impede à Rússia de retornar sobre os seus passos. Não há quem não veja como o mandado de prisão expedido contra Putin seja um formidável trunfo nas mãos da Santa Aliança ocidental para deslegitimar o adversário e reforçar a versão do conflito como uma espécie de guerra santa contra o mal, conforme as opiniões de Zelensky", escreve Domenico Gallo, juiz italiano e conselheiro da Suprema Corte de Cassação da Itália, em artigo publicado em il Fatto Quotidiano, 22-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Fiat Justitia et pereat mundus (“Faça-se justiça, mesmo que pereça o mundo”) ou Fiat Justitia ne pereat mundus (“Faça-se justiça para que o mundo não pereça”): esse é o dilema diante da notícia de que o Tribunal Penal Internacional, a pedido do procurador Karim Khan, expediu um mandado de prisão contra o presidente russo, Vladimir Putin, pelo suposto crime de deportação de numerosas crianças dos territórios ocupados da Ucrânia.
Não há dúvida de que a feroz guerra em curso fará com que o Tribunal Penal Internacional trabalhe durante anos para tomar conhecimento da avalanche de ultrajes à humanidade cometidos pelos beligerantes. Não esqueçamos que “a guerra é um assassinato em massa”, como Hans Kelsen a definiu cruamente no prefácio de seu livro
Peace Through Law (1944). A guerra é a mãe de todos os crimes, cria o ambiente humano no qual se podem desenvolver as piores perversões geradas pelo medo, ódio e "desumanização" do inimigo.
É verdade que os atos mais atrozes são proibidos pelo direito bélico, que os rotula como "crimes de guerra" e "crimes contra a humanidade", mas a barreira do direito é muito frágil. Fomos ensinados que se o direito internacional é o ponto de evanescência do direito público, o direito bélico é o ponto de evanescência do direito internacional (Antonio Cassese). A instituição do Tribunal Penal internacional em 1998 visava fortalecer o frágil direito humanitário, assegurando a garantia de uma jurisdição universal para sua tutela. Justamente por isso, recusaram a jurisdição da Corte aqueles Estados que estão mais acostumados a cometer crimes internacionais e/ou não aceitam limitações à sua soberania (EUA, Israel, Irã, Turquia, Rússia e China).
Há poucos dias foi divulgado o relatório de uma Comissão internacional independente sobre a Ucrânia, elaborado por um grupo de especialistas nomeados pela ONU, que traz à tona uma série impressionante de crimes de guerra: homicídios dolosos, ataques a civis, reclusão ilegal, torturas, estupros, transferências forçadas e deportação de crianças. Trata-se de fatos atrozes, não diferentes (excluindo a deportação de crianças) daqueles realizados pelas forças armadas dos EUA durante a segunda Guerra do Golfo, conforme documentados, pelo menos em parte, por Julian Assange, que por esse "crime de verdade" corre o risco de ser enterrado vivo em uma prisão estadunidense.
Porém, na época, ninguém pensou em incriminar George Bush, responsável político por aquela tragédia, ou enviar armas ao país agredido para permitir que se defendesse do agressor. A experiência da guerra na Iugoslávia nos fez tocar de perto como a justiça internacional possa ser instrumentalizada para os fins da guerra, para deslegitimar e enfraquecer o adversário. O mesmo vale para a OTAN que, após ter impedido ao Tribunal Penal Internacional de investigar sobre os crimes cometidos por suas forças militares durante a campanha de bombardeio contra a Iugoslávia em 1999, arrogou para si a função de polícia judiciária do Tribunal, exigindo a entrega de Milosevic. Definitivamente, graças também à atitude pró-atlântica de sua procuradora (a suíça Carla del Ponte) o Tribunal para a ex-Iugoslávia acabou se tornando uma entidade ligada à OTAN.
Pois bem, a acusação de Putin é um passo em falso dado pelo procurador do TPI porque coloca a legítima exigência de repressão contra os crimes de guerra em contradição com a exigência de pôr um fim à guerra (e, portanto, aos crimes que são um subproduto da guerra). Qualquer que sejam as responsabilidades de Putin, isso não justifica a emissão de um mandado de prisão contra um chefe de Estado em exercício. Ao exercer seu poder discricionário, o procurador do TPI deve ser coerente com os propósitos das Nações Unidas, que consistem essencialmente na manutenção e no restabelecimento da paz. Não se pode pretender fazer justiça à custa da paz.
Incriminando Putin, enquanto a guerra está em curso, estão sendo cortadas pontes no que diz respeito à possibilidade de uma negociação e se impede à Rússia de retornar sobre os seus passos. Não há quem não veja como o mandado de prisão expedido contra Putin seja um formidável trunfo nas mãos da Santa Aliança ocidental para deslegitimar o adversário e reforçar a versão do conflito como uma espécie de guerra santa contra o mal, conforme as opiniões de Zelensky. Uma guerra que terá de continuar até à "vitória", ou seja, até à derrota da Federação Russa e da prisão de seus líderes.
Desta forma mais um passo foi dado no círculo infernal da guerra e os ponteiros do relógio atômico moveram-se ainda mais perto da meia-noite. Continuamos a pensar que a justiça não deve aproximar o fim do mundo; pelo contrário, a justiça deve ser feita para evitar que o mundo pereça.
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Aquele mandado de prisão para Putin está trancando a paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU