03 Março 2023
No décimo aniversário de seu pontificado, o Papa Francisco respondeu às perguntas do jornalista Emmanuel Van Lierde para o semanário belga Tertio e Dimanche. Depois de comentar a conjuntura na entrevista publicada no dia 28 de fevereiro, Francisco deteve-se aqui no papel da Igreja, no culto e, sobretudo, no serviço ao próximo.
A entrevista é de Emmanuel Van Lierde, publicada por CathoBel, 01-03-2023. A tradução é do Cepat.
A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui.
Com a evolução, nas nossas regiões, de uma Igreja majoritária para uma Igreja de escolha – com um clero em diminuição e menos fiéis –, a liderança da Igreja tende a se concentrar naquilo que considera ser o seu “core business”: a liturgia e o anúncio. Mas, ao agir assim, a dimensão do serviço e das obras de caridade correm o risco de passar para segundo plano. Não é precisamente aí que surgem as oportunidades de tocar o coração dos nossos contemporâneos? A Igreja não deveria mostrar mais o seu rosto social e profético se quiser ser relevante hoje?
Não podemos opor essas missões umas às outras. Elas não são contraditórias. A oração, a adoração e o culto não representam uma retirada para a sacristia. Não é justo. Uma Igreja que não celebra a Eucaristia não é uma Igreja. Mas uma Igreja que se esconde na sacristia também não é uma Igreja. Ficar na sacristia não é um culto adequado. A celebração da Eucaristia tem consequências. Há o partir do pão. Isso implica uma obrigação social, a obrigação de cuidar dos outros. Oração e compromisso, portanto, andam de mãos dadas. A adoração a Deus e o serviço aos nossos irmãos e irmãs andam de mãos dadas, porque em cada irmão e irmã vemos Jesus Cristo.
Mas cuidado: o compromisso social da Igreja é uma reação, uma consequência do culto. Portanto, este compromisso não deve ser confundido com a ação filantrópica que também um incrédulo pode realizar. A ação social da Igreja brota de seu ser porque ela reconhece Jesus nela. Ela é tão forte que é até a medida pela qual, e segundo Jesus, seremos julgados.
Segundo Mateus 25, ouviremos esta medida de nossa caridade no Juízo Final: “Eu estava com fome e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar; eu estava doente, e cuidaram de mim...”. Todas essas são ações sociais, mas não são realizadas por obrigação social ou por dever, mas porque Jesus está presente nelas. No entanto, jamais reconhecerei Jesus ali se não o reconhecer também na adoração e no culto. Os dois andam de mãos dadas. Eles devem estar unidos. Uma Igreja puramente cultual não é uma Igreja, assim como não o é uma Igreja puramente “social” – por assim dizer. Um é consequência do outro, e um leva ao outro. É importante manter esse vínculo e essa interação.
Na Eucaristia há também estímulos para não esquecer o diaconado e a caridade: a coleta pelos pobres, as intercessões, o envio aos confins...
Só posso repetir: o culto e o serviço aos outros andam de mãos dadas. Adoramos somente a Deus, mas ao mesmo tempo servimos ao próximo que é imagem de Deus. Esta ligação sempre existiu, desde o Antigo Testamento. Quando Deus dá suas leis e preceitos aos israelitas, o que ele sempre diz em conclusão? “Cuidem do órfão, da viúva e do estrangeiro, do migrante”. Ele exige uma atenção especial para os necessitados.
O cuidado com os jovens e os idosos está próximo do seu coração, pois são grupos sociais correm o risco de não contar realmente em uma cultura de desperdício. A pandemia do coronavírus também mostrou a fragilidade dos nossos idosos. Como os cristãos podem fazer a sociedade entender que toda vida merece respeito e tem sentido, mesmo que seja uma vida marcada por limitações e a demência?
Coisas muito bonitas acontecem no diálogo entre as diferentes gerações. O profeta Joel escreveu uma frase magnífica sobre este assunto: “Os filhos e filhas de vocês se tornarão profetas; entre vocês, os velhos terão sonhos e os jovens terão visões” (3,1). Então, os jovens e os idosos se encontram. O ancião não deve ser enxotado num armazém ou num museu, mas deve poder continuar a dar à sociedade o que tem de si. Há uma missão para o idoso. Devemos cuidar do ancião como uma joia. Mesmo que já não esteja bem de saúde ou já não esteja plenamente consciente, devemos cuidar dele como uma joia, porque esta pessoa, este homem ou esta mulher, semeou uma nova vida durante a sua existência, deu-nos a vida. Portanto, devemos cuidar dele.
E os jovens não estão ali para mimá-los e nem incomodá-los. Devemos ajudá-los a crescer em sabedoria. O encontro entre jovens e idosos é, portanto, profético. Já experimentei isso tantas vezes com os jovens. Por exemplo, lembro-me de uma atividade em que propúnhamos a jovens tocar violão em uma casa de repouso. “Pfff, pfff, isso vai ser chato” ... “Vamos assim mesmo”. E depois não quiseram mais ir embora, começaram a cantar e começou o diálogo com os idosos.
Esses jovens descobriram algo nos idosos. Os anciãos sabem como falar, sabem onde está o problema. Um deles me contou que passou por um período muito complicado em sua vida e que trilhou caminhos difíceis – incluindo o vício em drogas; muito ruim, muito ruim, muito ruim! A família não percebeu isso. Ele sabia como esconder o problema. Sua avó, porém, percebeu o que estava acontecendo e falou com ele bem baixinho: “Estou te esperando”. “Quando quiser, venha. Eu te apoio, eu te amo”. Sua avó lhe deu alguma esperança de que, quando voltasse, não se sentiria um bandido.
Os avós são a memória que nos transmite o conhecimento. E colocar os jovens em contato com os avós é semear a vida, semear o futuro. Devemos valorizá-los. Eles não são um material descartável, nem os jovens. “Deixem-nos fazer o que quiserem” significa abandoná-los ao seu destino, excluindo-os de nossas vidas por comodidade. Cuidem de ambos, jovens e idosos, e façam com que se encontrem. Este versículo de Joel é muito bonito. Quero mostrar-lhes uma coisa, só um momento… (o papa chamou um auxiliar e lhe pediu para ir procurar uma foto tirada durante a sua visita à Romênia, em 01 de junho de 2019, nota do editor).
Uma anciã com uma criança pequena, que diz: “Este é o meu futuro” (Foto: Vatican Media)
Quando entrei na praça principal de Iaşi (terceira maior cidade da Romênia na região da Moldávia, nota do editor) para um encontro com as famílias e os jovens, ela estava lotada. Vi uma idosa me mostrando uma criança com cerca de dois meses, sorrindo como se dissesse: “Esta é a minha esperança, olha, agora eu posso sonhar”. Isso me tocou. Naquele momento, fiquei tão impressionado que não pude lhe dizer: “Venha comigo, senhora, para mostrá-la a todos”.
Mas, ao final do meu discurso, contei essa história e disse que os avós sonham quando veem os netos progredirem, e os netos ganham coragem quando podem se apoiar nas raízes dos avós. Espontaneamente, eu disse: “Pena que não tiramos uma foto desse momento”.
Mas o fotógrafo me disse que viu meu entusiasmo e que tirou uma foto. Aqui está a foto com a história no verso. Para mim, isso diz muito. Um ancião com uma criança pequena, que diz: “Este é o meu futuro”. E a criança pode dizer: “Esta é a minha força”. Esta foto é um símbolo do vínculo entre avós e netos. É importante que as crianças tenham contato com os avós, muito importante.
Que mensagem o senhor tem para todos os cuidadores que dão o melhor de si em circunstâncias muitas vezes difíceis?
Eles desempenham uma função importante. Eles têm um trabalho muito digno. Também necessário. Se este trabalho for vivido como uma vocação, com ternura, ele é muito digno. É muito triste que alguns lares para idosos adotem uma linha comercial demais, com a consequente perda de ternura. Quando eu era bispo em Buenos Aires, adorava ir celebrar a Eucaristia em casas de repouso. Sempre fiz questão de ter bastante tempo, porque falava com todos e só depois celebrava a missa.
Lembro-me de certa vez – alguns ficarão zangados por eu dizer isso, mas digo mesmo assim – quando chegou a hora da comunhão e alguém me disse: “Se alguém quiser comungar, levante a mão”. E eu deveria passar na frente deles para que os residentes não precisassem sair dos seus lugares. Claro, todos levantaram as mãos. Havia uma senhora a quem dei a comunhão que pegou na minha mão e disse: “Obrigado, padre, obrigado, eu sou judia”. Eu respondi: “Bem, este que eu dei a você também era judeu, não era?” (risos) O idoso busca companheirismo, proximidade e conexão, que transcende a fé religiosa. Aos bispos, eu digo: “Vão para as casas de repouso, visitem os idosos”.
O modelo de mercado neoliberal está atingindo seus limites; a mudança climática e a crise energética mostram isso claramente. No entanto, a transição para uma economia sustentável não é fácil, e as pessoas comuns – especialmente os mais pobres – correm o risco de ser vítimas dela. A pandemia proporcionou uma oportunidade de mudar para um “normal diferente” no mundo pós-Covid, mas as pessoas preferiram voltar ao “antigo normal” o mais rápido possível. Como a “economia de Francisco” (uma iniciativa que o senhor lançou em 2020 para inspirar jovens economistas e líderes empresariais a buscar soluções para os problemas atuais) oferece uma alternativa?
Em primeiro lugar, o Ensino Social da Igreja – do Papa Leão XIII até hoje – pode servir de inspiração. Este ensinamento analisa as questões econômicas a partir do Evangelho. Com o jornalista Austen Ivereigh, escrevi um livro que ofereço a vocês: Vamos sonhar juntos (Intrínseca, 2020). Ousemos sonhar, mesmo com economias que não sejam puramente liberais. Uma economia certamente também pode incorporar diretrizes cristãs.
Certa vez, um grande economista me disse: “Em minhas funções, sempre tentei estabelecer um diálogo entre a economia, o humanismo e a fé. Quando tentei isso com finanças – as finanças, o humanismo e a fé – não funcionou para mim”. É preciso ser prudente com a economia: se ela se concentrar demais apenas nas finanças, em meros números que não têm entidades reais por trás deles, então a economia se pulveriza e pode levar a uma traição séria. Há pessoas extraordinárias que estão repensando a economia, entre elas algumas mulheres. As mulheres são gênios criativos. Eu as menciono neste livro. A economia deve ser uma economia social. Foi João Paulo II quem acrescentou o ‘social’ à ‘economia de mercado’. É preciso ter sempre o social em mente!
Neste momento, a crise econômica certamente é grave, a crise é terrível. A maioria das pessoas no mundo – a maioria – não tem o suficiente para comer, não tem o suficiente para viver. A riqueza está nas mãos de algumas pessoas que dirigem grandes corporações, que às vezes são propensas à exploração.
Na Argentina, tivemos uma grande experiência que veio dos belgas, de Flandres. Eles vieram se instalar na Argentina tendo como referência o Ensino Social da Igreja. Na Flandria – como era chamada a indústria têxtil de sua propriedade (a fábrica funcionou entre as décadas de 1920 e 1990, e estava situada perto da cidade de Luján, nota do editor) –, os próprios trabalhadores tinham participação nos dividendos. Este é um enorme progresso que vocês, belgas, fizeram.
Na Argentina, seria uma boa ideia examinar o que aconteceu lá. Falo das décadas de 1940 e 1950. Portanto, é possível! Jules Steverlinck era o responsável pela Flandria lá, certo? Cerca de 70 quilômetros de Buenos Aires. Tal economia social é, portanto, possível e eu vi um exemplo disso através de vocês, belgas. Sim, a economia deve ser sempre social, a serviço do social.
Junto com três jornalistas holandeses, tomei a iniciativa de escrever uma carta aberta ao senhor por ocasião da canonização, em 15 de maio de 2022, do carmelita holandês Titus Brandsma (1881-1942). Centenas de outros jornalistas assinaram esta carta. Neste documento, pedimos que o senhor declarasse Titus Brandsma, ele próprio muito comprometido com o jornalismo, como o santo padroeiro dos jornalistas. O nosso pedido tem alguma chance de ser atendido?
Sim, concordo plenamente com esta proposta. Existe um outro santo que tem direito a isso, que também morreu em campo de concentração. (O papa refere-se ao padre alemão-polonês Maximiliano Kolbe (1894-1941), que também foi preso por suas atividades de resistência através do jornalismo, nota do editor).
De qualquer forma, entrarei em contato com o Dicastério para as Causas dos Santos para ver o que pode ser feito. De qualquer forma, seria um prazer para mim. E também gostaria de aproveitar esta oportunidade para, através de vocês, agradecer a todos os jornalistas pelo trabalho que vocês fazem. É uma profissão nobre: transmitir a verdade. Mas, ao mesmo tempo, peço que tomem cuidado com os quatro pecados dos jornalistas. Sabe quais são?
Ah, não. O senhor falou sobre eles em nossa entrevista anterior, mas não saberia dizê-los agora.
A desinformação – dizer apenas uma parte e não tudo –, a calúnia, a difamação – que não são a mesma coisa (o papa faz a diferença entre calúnia, quando se conta mentiras sobre alguém, e difamação, quando se debruça sobre coisas negativas unilaterais do passado de alguém, mas onde há um grão de verdade, nota do editor) – e a coprofilia, que é a busca por coisas sujas que causam escândalo e chamam a atenção.
E comparados a esses vícios, quais são as virtudes de um bom jornalista?
As qualidades de um jornalista são ouvir, traduzir e transmitir, porque você sempre tem que traduzir, não é? Mas, em primeiro lugar, ouvir… Há jornalistas que são brilhantes porque dizem claramente: “Eu ouvi, ele disse isso, embora eu pense o contrário”. É uma boa maneira de fazer as coisas, mas não se deve dizer: “Ele disse isso”, mesmo que não seja o que tenha dito. Ouvir, transmitir a mensagem e depois criticar. Os jornalistas fazem um trabalho formidável.
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“Cuidem do órfão, da viúva e do estrangeiro, do migrante”. Entrevista com o Papa Francisco (2a. parte) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU