23 Fevereiro 2023
Houve um número recorde de demissões em 2022. Diante das dificuldades de recrutamento, os aumentos salariais parecem insuficientes para compensar a perda de sentido e as más condições de trabalho dos operários (ouvriers) e funcionários (employés).
A reportagem é de Sophie Chapelle, publicada por Basta!, 16-02-2023. A tradução é do Cepat.
Imagine linhas de produção paradas. Produtos que não são processados, embalados e entregues às lojas. Empresas impossibilitadas de atender seus pedidos por falta de trabalhadores. É o que vive atualmente o setor agroalimentar, que emprega 70.000 pessoas na Bretanha.
“Somos confrontados em todos os níveis, até os quadros (cadres = técnicos, administrativos ou comerciais), com dificuldades de recrutamento, observa Michel Le Bot, secretário-geral da CFDT Agri Agro du Finistère. Isso já acontecia antes da Covid, mas aqui vemos trabalhadores empregados que estão questionando seu futuro, o sentido do seu trabalho, sua utilidade, o rumo que querem dar à sua vida profissional. Alguns mudam de empresa, outros de profissão”.
O setor agroalimentar está longe de ser uma exceção. Cem mil postos de trabalhos estão vagos para cuidadores, 200.000 em serviços pessoais, 25.000 dos quais como auxiliares domésticos. Na hoteleira e no setor de bares e restaurantes, 250.000 postos de trabalho não foram preenchidos em 2022. As dificuldades de recrutamento também atingem níveis sem precedentes na indústria de transformação e na construção civil.
A França está vivendo um fenômeno de “grande demissão” análogo à Grande Renúncia de demissões nos Estados Unidos? Em 2022, quase dois milhões de pessoas pediram demissão, 520.000 delas nos primeiros três meses do ano. 90% dos trabalhadores envolvidos eram contratados pelo regime de contrato por tempo indeterminado.
O recorde anterior datava do primeiro trimestre de 2008, com 510 mil demissões voluntárias. Segundo o Ministério do Trabalho, a situação não seria nova ou inesperada. “O aumento da taxa de demissões parece ser normal, em conexão com a recuperação após a crise da Covid-19”, analisa a Direção de Animação de Pesquisa, Estudos e Estatísticas (Dares), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho.
O problema seria puramente conjuntural, ligado à queda do desemprego. A maioria dos demissionários acharia mais fácil largar o emprego para encontrar outro. Seis meses após a demissão, oito em cada dez teriam encontrado um emprego.
“Há uma negação do problema por parte dos empregadores e da Dares. A mensagem, muito política, é ‘mexa-se, não há nada para ver’”, fustiga o economista Thomas Coutrot, que também trabalhou na Dares [1]. Segundo ele, a situação seria, na verdade, inédita.
“Em 2008, durante o pico anterior de demissões, não existiam rescisões contratuais que, a princípio, pressupõem a concordância do empregado. No início de 2022, são 120 mil por trimestre. Certamente, muitos deles são demissões ocultas. Mas mesmo assumindo que apenas metade das rescisões convencionais é realmente desejada pelos trabalhadores, nunca houve tantas demissões voluntárias na França”, explica o economista.
Em seu livro publicado no outono de 2022, Redonner du sens au travail (Reencontrar um sentido no trabalho), Thomas Coutrot e Coralie Perez mostram que, mesmo antes da crise da saúde, a perda de sentido no trabalho era um dos principais fatores que determinaram as demissões.
“Existe um certo paternalismo de classe que consiste em dizer que as condições de trabalho, através de horários e salários em particular, são mais importantes do que o sentido entre os trabalhadores das categorias populares, observa Thomas Coutrot. Isso é totalmente falso. Eles também sofrem da alienação do trabalho. A questão do sentido no trabalho não é um privilégio dos ricos. O sentido vem, ou não, da forma como o trabalho é organizado”.
De acordo com os dois economistas, há três condições para que uma pessoa encontre sentido em seu trabalho: a utilidade social, que o trabalho atenda a necessidades reais; a coerência ética, ou seja, um trabalho de qualidade que respeite a saúde dos outros e do planeta; e a capacidade de desenvolvimento, aprender coisas novas e desenvolver suas habilidades.
Estas diferentes dimensões deparam-se cada vez mais com uma gestão por números, apoiada em tecnologias digitais que impõem minuciosos procedimentos e um reporting permanente. Esta última tendência contribui para a “bullshitização” do trabalho, no momento em que as novas gerações, cada vez mais qualificadas, aspiram a mais autonomia [2].
Nas profissões de cuidado (care) – onde o trabalho consiste em cuidar dos outros, do seu (re)conforto, da sua saúde – os trabalhadores encontram-se muitas vezes entre duas concepções de qualidade. De um lado, haveria a qualidade “objetiva, instrumental e quantificada da gestão”, observam os autores, do outro, a qualidade “relacional e sensível dos destinatários”. Presos entre essas duas concepções, muitos têm a impressão de “fazer coisas inúteis ou mesmo prejudiciais”.
“Há um sentimento de não reconhecimento do trabalho, um reconhecimento que não está à altura”, observa Michel Le Bot, da CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho). Esse reconhecimento depende, entre outras coisas, da remuneração. No setor agroalimentar, o salário mínimo costuma ser a base.
“É muito baixo, e em boa parte das empresas a remuneração está atrelada ao constrangimento”, acrescenta o dirigente sindical. Quanto mais se trabalha de noite, mais se concorda em trabalhar sete dias por semana, e melhor se é remunerado. “Quando os trabalhadores encontram empresas com remuneração mais alta ou sem os constrangimentos, mudam de empresa”.
“Os trabalhadores não agem nas questões de demissão de acordo com os dados estatísticos, observa Thomas Coutrot. Aumentar os salários para os trabalhadores dos setores hospitalizar, hoteleiro, bares e restaurantes não serviu para nada”. Para frear o êxodo dos seus trabalhadores, os empregadores do setor dos bares e restaurantes e do setor da saúde e social aumentaram de fato as tabelas salariais do ramo de 15% para 20% em março de 2022.
Mesmo assim, os primeiros níveis de remuneração mal estão acima do salário mínimo, o que não é suficiente, por enquanto, para gerar renovada atratividade no setor. Da mesma forma, o aumento de 183 euros líquidos mensais para cuidadores após os acordos do Ségur de la Santé de 2020 não conseguiu conter o êxodo que ameaça colapsar o setor hospitalar público. A mesma questão surge no ambiente do ensino. Enquanto mais de 4.000 postos de trabalho permaneceram vagos em julho de 2022, teremos novamente falta de professores no início do ano letivo de 2023?
Numa pesquisa sobre as condições de trabalho de 2019, sete em cada dez empregadores que afirmaram ter dificuldades de recrutamento culparam a “falta de pessoal qualificado”. Mas esta explicação cômoda é provavelmente parcial: as condições de trabalho também desempenham um papel importante.
“Como o trabalho é executado e de que maneira?, pergunta Michel Le Bot. Hoje, a Bretanha é uma grande região de abate de animais. Muitas ações manuais nesta atividade geram distúrbios musculoesqueléticos”. Uma pesquisa recente do Pôle Emploi sobre as dificuldades de recrutamento confirma que as condições de trabalho desempenham um papel cada vez mais importante nas saídas do emprego.
Os empregadores que, segundo as próprias declarações da pesquisa, propõem as condições de trabalho mais difíceis são também aqueles que têm mais dificuldades na hora de contratar. “Nos setores de hotelaria, bares e restaurantes, por exemplo, a questão das restrições de tempo é cada vez menos tolerada”, observa Thomas Coutrot.
Assim, quando o empregador indica que mais de 10% dos seus trabalhadores estão “expostos a produtos químicos perigosos”, o risco de ter dificuldade em recrutar aumenta em um quarto. Expor os trabalhadores a “trabalhar com pressa” ou arriscar “viver tensões com o público” também desempenham um papel importante na dificuldade de recrutamento. Propor “horários irregulares e imprevisíveis” a pelo menos um em cada dez trabalhadores dobra o risco de ter dificuldade em recrutar, como em serviços de restaurantes, limpeza ou ajuda doméstica.
Um dos constrangimentos mais determinantes é aquele do “trabalho impedido”. “A atividade impedida é quando o trabalhador, ao final do dia, diz para si mesmo: ‘hoje fiz um trabalho que não está feito nem por fazer’, explica Yves Clot, professor de psicologia do trabalho. É esse trabalho que te persegue e te impede de dormir”. Quando pelo menos um décimo dos trabalhadores sofre, segundo o empregador, por “não poder fazer um trabalho de qualidade”, a dificuldade de contratar aumenta em 60%.
Nos últimos anos, a perda de sentido tem alimentado contestações coletivas à organização do trabalho. Em 2020, médicos e chefes de serviços hospitalares renunciaram em massa às suas funções administrativas para denunciar a falta de recursos.
Em 2021, após o suicídio de um dos seus colegas, 3.000 juízes destacaram em um recurso “a significativa discrepância entre a nossa vontade de fazer uma justiça de qualidade e a realidade do nosso cotidiano que faz perder o sentido da nossa profissão e gera grande sofrimento”.
“O reconhecimento também depende da organização do trabalho, confirma Michel Le Bot. Quais são os lugares onde o trabalho se expressa? Como falar sobre o trabalho e sua organização? É transversal a todas as atividades e estes lugares não tão frequentes”.
“A redução do tempo de trabalho dos subordinados é um dos caminhos a explorar”, diz Thomas Coutrot. Trata-se de ter tempo de trabalho remunerado para deliberar sobre o trabalho. Equipes sindicais também estão desenvolvendo reuniões durante o horário de trabalho, ou fora dele, quando não podem fazer de outra forma, para discutir o trabalho.
“Isso produz resultados surpreendentes, observa o economista. Ouvir e fazer com que os trabalhadores falem sobre a organização do trabalho, a forma como não conseguem fazer um trabalho de qualidade, os efeitos na sua saúde... Compartilhar essas questões é uma fonte de criação de vínculo coletivo. Os conflitos interindividuais na forma de assédio, discriminação, mal-entendidos podem ser superados por meio de discussões”.
Os grupos de expressão foram de fato estabelecidos pelas Leis Auroux de 1982. Mas, como observa Thomas Coutrot, “eles diminuíram, porque foram organizados pela administração”. Os gerentes, por sua vez, deveriam renunciar para trazer de volta os trabalhadores e trabalhadoras?
[1] Thomas Coutrot chefiou o departamento “Condições de trabalho e saúde” da Dares de 2003 a 2022.
[2] Essas interrogações sobre o significado do trabalho foram identificadas em 2013 pelo antropólogo David Graeber, que cunhou o conceito “trabalho de merda”.
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França. Más condições de trabalho e perda de sentido: uma onda de demissões se espalha pelo país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU