16 Fevereiro 2023
"Quem está acompanhando com atenção o debate entre ortodoxos e keynesianos ao redor da taxa básica de juros (Selic) já percebeu que tudo se resume à definição de 'plena ocupação da economia'", escreve Bruno Cava, graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, em artigo publicado por UniNômade, 13-02-2023.
Explico.
Os ortodoxos apontam que a agenda de gastos do atual governo, que expande a tendência já expansionista do governo anterior, é inflacionária. Reduzir a taxa básica de juros para incentivar o investimento e o consumo trariam como contraefeito o aumento de uma inflação que já está acima da meta. Então qualquer crescimento econômico e aumento da renda decorrentes seriam voo de galinha, pois caminharíamos para uma situação argentina ou turca, em que os ganhos serão erodidos pelo aumento descontrolado dos preços.
Por que isto acontece, segundo os ortodoxos?
Porque a economia brasileira estaria próxima da situação de pleno emprego. Hoje, a taxa de desemprego está em queda, próxima de 8%. Ainda que o índice esteja acima do americano (≅4%), chinês (≅5,5%) e da União Europeia (≅6%), o valor está próximo da média histórica brasileira de longo prazo, de modo que um economista como Samuel Pessoa avalie que mais dinheiro significará, simplesmente, maior disputa por bens e serviços, ou seja, os preços aumentam por simples mecanismo de oferta e procura.
E não, a inflação hoje não é dada por um choque de oferta, que já passou junto da fase crítica da pandemia, como se verifica pela inflação dos preços dos serviços. A dinâmica atual de inflação seria dada por um misto de inércia, expectativa e excesso de demanda.
Já os economistas heterodoxos, liderados pelo André Lara Resende, argumentam que não há relação direta entre aumento do gasto público e inflação. Ao contrário, a contração fiscal provoca crise de investimento e consumo, desenergiza o apetite dos investidores, o que culmina numa espiral pessimista e recessiva. Haveria espaço para queda da taxa básica de juros associada à agenda de expansão do gasto.
Dessa maneira à Keynes, a taxa básica de juro vai ficar abaixo da eficiência marginal do dinheiro, ou seja, valeria a pena para quem tiver capital investir em produção, em vez de mantê-lo conservativamente na condição de liquidez (de moeda), levando à célebre eutanásia do rentier.
Mas por que isto acontece, segundo os heterodoxos?
Porque a economia estaria longe da situação de pleno emprego dos fatores. A taxa de desemprego correspondente à condição de plena ocupação seria abaixo de 5%, possivelmente 3%, a qual, até ser atingida, não aceleraria a inflação. Isto se deve ao fato que, depois das reformas trabalhistas de 2017, as médias históricas de longo prazo (≅8%) deixaram de ser uma linha guia para a taxa natural de desemprego do Brasil.
Então, para os keynesianos/heterodoxos, mais dinheiro num cenário de ociosidade dos fatores produtivos terminaria por incentivar o investimento e o consumo, levando a um ciclo virtuoso de geração de renda e emprego. Daí a prescrição da redução da taxa básica de juros, a fim de tornar o dinheiro mais barato, adubando o mercado de crédito.
Além disso, há uma divergência de fundo político. Para os ortodoxos, a volta do PT ao governo sem autocrítica dos anni horribiles Dilma comporta um novo “risco Lula”, agravado com o palavrório das primeiras semanas. Pedem que Lula desça do palanque e comece a preocupar-se com responsabilidade fiscal e a trajetória da dívida pública.
Já os heterodoxos veem o cenário inteiramente ao avesso: Lula restaurou a confiança na moeda, tirou o país da condição de pária internacional e provou que tem condições de governabilidade. O que favorece um clima de otimismo geral e atrai capitais.
Para os primeiros, Lula está desancorando as expectativas duramente construídas, sobretudo, na gestão Temer; enquanto os últimos dizem que a maior âncora fiscal é o próprio Lula, o único capaz de recolocar o crescimento no rumo.
Pois bem. Comentários:
1) Os keynesianos têm razão que a economia brasileira ainda tem muito espaço para fermentação, não estando na condição de plena ocupação dos fatores.
2) Em parte, isto se deveu à maior flexibilidade da regulação do trabalho, graças à figura do intermitente, à possibilidade de terceirização da atividade-meio e o MEI, a ampliação do Simples e o aumento da segurança jurídica nas negociações laborais.
3) A maior flexibilidade reduziu a taxa de desocupação, ao mesmo tempo que propicia maior expansão monetária, a fim de energizar os novos circuitos econômicos.
4) É claro que foram medidas eleitoreiras e hipócritas do governo Bolsonaro, contudo, objetivamente, a expansão massiva dos auxílios irrigaram os mesmos circuitos e redes flexíveis (nos serviços, autônomos, informais, populares etc.) que já não se organizavam por meio de sindicatos.
5) Então temos uma oportunidade criada pelos governos Temer e Bolsonaro (às costas deles), ligada ao reconhecimento da potência produtiva da flexibilidade e autonomia, e a políticas de transferência de renda voltadas aos trabalhadores nessas condições.
6) Os ortodoxos, então, têm razão em acusar risco de repetição acrítica do desastre dos anos Dilma, se o governo perseguir a mesma lógica de concentração do investimento ao redor de eixos como megaprojetos, planos “aceleradores” desde cima, exacerbação de bancos de desenvolvimento e reincentivo ao emprego formal.
7) Os ortodoxos ainda estão corretos em dizer que não é caso de voltar à rigidez da legislação trabalhista. Mas estão errados, quando atribuem ao aumento do salário real a pressão inflacionária, devido à suposta queda da produtividade do trabalho.
8) O que falta é justamente mais aumento do salário real, isto é, consolidação e ampliação dos auxílios na direção de uma Renda Básica da Cidadania (RBC). É reconhecer a potência da flexibilidade e remunerá-la à altura, com um sistema de proteção social de tipo novo (commonfare). De maneira que a tendência estrutural não termine sendo apenas sinônimo de mais precarização e exaustão — o que, em última análise, gera improdutividade.
9) Os desenvolvimentistas só veem dinâmicas de ganhos crescentes na indústria de transformação, à moda fordista. Não enxergam a transformação do capital cognitivo em força produtiva, a partir da flexibilidade e autonomia. Para eles no esquema flexível só haveria trabalho desorganizado, logo, sem força política.
10) Entretanto, em vez de restabelecer a contribuição sindical tradicional, num modelo de sindicalismo que virou corporativo e engessado, de segmentos, se deveria pensar como a Renda Básica da Cidadania, associada a uma política de auto-organização (exemplo de paradigma: Pontos de Cultura), pode ser ela própria uma “contribuição sindical”; mas para um sindicalismo social ou do comum (The Common).
Do que concluo que, para sair do fla-flu repetitivo, o debate entre ortodoxos e keynesianos é reaproveitável em diagonal, sobretudo, para problematizar a noção de “pleno emprego”.
O modo de ativação das potências e ferramentas imanentes ao tecido social brasileiro é o xis da questão — no que devo dizer que me aproximo mais do temperamento dos keynesianos, mas sem o desenvolvimentismo fordista.
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O real entre ortodoxos e neokeynesianos. Artigo de Bruno Cava - Instituto Humanitas Unisinos - IHU