Desvincular o salário-mínimo da inflação é fazer outra contrarreforma da Previdência num típico liberalismo desalmado. Entrevista especial com José Luís Fevereiro

Segundo o economista, a medida anunciada por Paulo Guedes para um eventual segundo mandato de Jair Bolsonaro tem impacto brutal na vida das pessoas e revela que o neoliberalismo ainda resiste, buscando velhas armas do passado para essa luta

Foto: Previednciaristas

Por: João Vitor Santos | 25 Outubro 2022

Quando o ministro da Fazenda Paulo Guedes reconheceu que a desindexação do reajuste do salário-mínimo da inflação está nos planos de um eventual segundo mandato de Jair Bolsonaro, a reação foi tão negativa que até mesmo o próprio Bolsonaro tentou desconversar. Tanto ele quanto Guedes disseram que tal medida não significa um reajuste abaixo da inflação, podendo ser até acima.

O argumento soa como piada de mau gosto, com toques de crueldade, revelando uma visão tacanha do liberalismo que pensa nas cifras e não na vida das pessoas. “É óbvio que a desvinculação é para reduzir o valor real, porque não existe nenhum impedimento de se dar aumentos reais ao salário-mínimo. O que a Constituição veda é a sua redução em termos reais. Portanto, desvincular significa acabar com a garantia legal de preservação do valor real”, dispara o economista José Luís Fevereiro.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Fevereiro acrescenta que tal medida teria um impacto brutal, pois “o salário-mínimo serve de base para a Previdência e, de alguma forma, regula a remuneração até do trabalho informal. São dezenas de milhões de brasileiros que têm a renda regulada pelo salário-mínimo”. No fim, segue o economista, essa seria a realização de um sonho sonhado pelos extremistas neoliberalistas, que vivem a típica economia desalmada, desde a Constituição de 1988. Para Fevereiro, eles estariam “baseados num postulado de Milton Friedman, segundo o qual o salário-mínimo seria um fator limitante ao pleno emprego”. Nessa lógica, “podemos dizer também que a libertação dos escravizados acabou com o pleno emprego”, dispara.

Fevereiro aponta ainda que a “desindexação do salário-mínimo visa, entre outras coisas, fazer uma nova contrarreforma da Previdência”. Ou seja, ela resolve o tal déficit previdenciário tal como “foram resolvidos” os problemas com a Reforma Trabalhista. Assim, aponta como urgente extirpar tais lógicas da política econômica nacional, como o teto de gastos.

“O país é ingovernável com esse teto. Até boa parte dos economistas liberais concorda com isso”, avalia. Por essa razão, mesmo com uma vitória de Lula, Fevereiro põe esta pauta como uma luta que não pode ser abandonada, por mais que membros dessa frente ampla falem em outros mecanismos de substituição do teto. “A batalha, em caso de vitória de Lula, será tirar o teto sem colocar nenhuma outra amarra artificial da mesma natureza”, sugere.

José Luís Fevereiro (Foto: Arquivo pessoal)

José Luís Fevereiro é economista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Membro da direção nacional do PSOL desde 2007, foi secretário-geral do PT na cidade do Rio de Janeiro (1987-1988), onde presidiu o partido de 1988 a 1989. Foi secretário-geral do PT estadual de 1989 a 1993, membro da direção nacional de 1990 a 1995 e da sua executiva nacional de 1993 a 1995.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – No final da semana passada, causou grande repercussão a afirmação do ministro da Economia Paulo Guedes de que, num eventual segundo governo de Jair Bolsonaro, levaria a cabo um “novo marco fiscal”, baseado no tripé câmbio flutuante, metas de inflação e metas fiscais. Qual sua análise sobre essa proposta?

José Luís Fevereiro – Na verdade não se trata de um novo marco fiscal, mas da radicalização do atual. Metas fiscais, para um país que tem moeda própria e reservas internacionais substanciais, não fazem muito sentido. As metas devem ser de utilização da capacidade ociosa e de emprego.

IHU – Entre as medidas defendidas por Paulo Guedes, está a suspensão da correção do valor do salário-mínimo e da aposentadoria pela inflação. O que isso significa e quais seriam os impactos?

José Luís Fevereiro – O impacto é brutal. O salário-mínimo serve de base para a Previdência e, de alguma forma, regula a remuneração até do trabalho informal. São dezenas de milhões de brasileiros que têm a renda regulada pelo salário-mínimo. A desindexação serviria para reduzir em termos reais o salário-mínimo.

Essa medida é sonhada desde a Constituição de 1988 pelos extremistas neoliberais, baseados num postulado de Milton Friedman, segundo o qual o salário-mínimo seria um fator limitante ao pleno emprego. Nessa lógica, podemos dizer também que a libertação dos escravizados acabou com o pleno emprego.

IHU – Essa medida está em desacordo com o que foi garantido na Constituição Federal. Sendo assim, tal política não poderia ser barrada por caracterizar uma medida inconstitucional?

José Luís Fevereiro – Se Bolsonaro vencer, isso poderia ser aprovado como emenda à Constituição. Importa lembrar que Bolsonaro teria mais facilidade em formar maioria no parlamento e maior penetração no Judiciário, em função de mais quatro anos de nomeações.

IHU – Em uma das entrevistas concedidas semana passada, ao comentar o tema, Jair Bolsonaro, assim como Paulo Guedes, disse que essa desvinculação do salário-mínimo com a inflação não significa que o salário será menor que a inflação, podendo até ser maior. Com base na atual conjuntura, tanto política como econômica, podemos supor que isso será possível em 2023?

José Luís Fevereiro – É óbvio que a desvinculação é para reduzir o valor real, porque não existe nenhum impedimento de se dar aumentos reais ao salário-mínimo. O que a Constituição veda é a sua redução em termos reais. Portanto, desvincular significa acabar com a garantia legal de preservação do valor real.

IHU – Que relação podemos estabelecer entre esse tipo de política econômica com o que foi realizado na ditadura? Como podemos melhor compreender as políticas adotadas no contexto da repressão e por que essas lógicas vieram à tona agora?

José Luís Fevereiro – A ditadura reduziu o valor real dos salários como forma de aumentar a margem de lucro do capital e estimular o investimento. Fez isso de várias formas, entre elas subestimar a inflação nas regras de reajuste e intervindo nos sindicatos de forma a paralisar as mobilizações dos trabalhadores.

De certo modo, a reforma trabalhista operou na mesma lógica de quebrar os sindicatos e reduzir seu poder de pressão. A desindexação do salário-mínimo visa, entre outras coisas, fazer uma nova contrarreforma da Previdência.

IHU – Paulo Guedes entrou no governo como homem forte de Jair Bolsonaro, capaz de levar a cabo um plano liberal que não se confirmou e que chegou a ameaçar a sua permanência na pasta da Economia. Que plano era esse e por que não foi adiante? Em que medida esse plano pode ser executado em eventual reeleição e quais suas consequências?

José Luís Fevereiro – O plano liberal foi, sim, executado. Avançaram na lógica privatista, privatizaram o refino do petróleo, congelaram salários da função pública, só não fizeram mais por imperativos eleitorais neste último ano.

IHU – Se, de um lado, vemos o governo Bolsonaro fazendo “vistas grossas” ao teto de gastos e ensaiando novas medidas para um arrocho fiscal a um eventual segundo governo, de outro vemos a pressão sobre a campanha de Lula para que não se descarte o teto de gastos e até pense alternativas para controle fiscal. O que esse debate revela?

José Luís Fevereiro – O teto de gastos é uma aberração que precisa ser descartada. O país é ingovernável com esse teto. Até boa parte dos economistas liberais concorda com isso. A batalha, em caso de vitória de Lula, será tirar o teto sem colocar nenhuma outra amarra artificial da mesma natureza.

IHU – O liberalismo econômico, aquele que conhecemos via Escola de Chicago, chegou a seu esgotamento?

José Luís Fevereiro – Não gosto de afirmações na linha de que tal ou qual coisa chegou ao seu esgotamento. É a luta política que determinará se tal projeto se esgotou no Brasil ou não. E essa luta política está longe de acabar, independentemente de quem vencer.

Claro que a vitória de Lula nos coloca em melhores condições de enterrar o neoliberalismo, mas essa luta prosseguirá, até pela composição da frente que apoia Lula.

IHU – Considerando a conjuntura nacional e internacional, que linha econômica pode ser concebida no Brasil em resposta ao atual liberalismo econômico e seus controles de gastos públicos?

José Luís Fevereiro – O Brasil deve se livrar das amarras artificiais dos gastos públicos e mirar nas restrições reais. Pleno emprego e plena utilização da capacidade produtiva são limitações reais. Desequilíbrios nas contas externas também são restrições reais. Gargalos produtivos também o são. Orçamentos deficitários não são.

Para isso, é necessário retomar o planejamento econômico, prever e contornar gargalos produtivos, lançar uma nova política industrial focada em novas áreas do conhecimento, utilizando as vantagens comparativas do Brasil. Também é necessário desenvolver uma base industrial exportadora, reduzindo a dependência das exportações de produtos primários. Eu defendo um foco na indústria de fármacos, utilizando a biodiversidade brasileira, a capacidade de pesquisa das nossas universidades e o SUS como demandante. Outra área é a geração de energia limpa, com foco nas energias solar, eólica e de marés, com pesquisa e desenvolvimento de tecnologia própria.

IHU – Nos governos petistas, além da questão do gasto público, houve críticas a uma política econômica que se baseava na inclusão pelo consumo. O que estava em jogo no debate da época e como avalia aquela política adotada?

José Luís Fevereiro – Ela foi insuficiente, mas necessária. Uma base interna de consumo ampliada ajuda a manter indústrias. Numa democracia, não é possível sustentar nenhum processo de desenvolvimento que não esteja alicerçado na expansão do consumo. Mas o período dos governos petistas não conseguiu – ou não viu a importância – de sustentar uma taxa de câmbio que não fosse danosa à nossa produção industrial. Aumentamos a dependência do setor primário nas exportações e esse setor, por definição, é mais vulnerável a flutuações da economia mundial.

IHU – Questionado em entrevistas, Lula tem dito que um novo governo petista terá uma política econômica mais parecida com a que implementou quando estava no governo, distanciando-se das políticas adotadas nos governos de Dilma Rousseff. O que Lula quer dizer com isso? Hoje, no atual cenário, é viável reeditar os governos Lula?

José Luís Fevereiro – Lula diz isso para reativar a memória dos melhores tempos dos 13 anos de governos do PT. Eu espero, porém, que o novo governo Lula não repita as taxas de juros vigentes à época, espero que tenha uma nova política industrial. Enfim, espero que seja um governo que faça também um balanço crítico do período de Lula, em particular na questão cambial, de juros e de política industrial.

IHU – O que a reeleição de Bolsonaro significaria para o país do ponto de vista econômico e social?

José Luís Fevereiro – Um desastre. Significaria mais do mesmo, com Bolsonaro com mais força institucional. Mais devastação ambiental, sucateamento das universidades, ausência de planejamento econômico, redução da massa de salários e mais políticas sociais compensatórias pelo seu efeito político-eleitoral. Também uma crise ampliada com o Auxílio Brasil turbinado, porque Bolsonaro aprendeu e gostou pelas piores razões.

IHU – O que uma nova eleição de Lula significaria para o país do ponto de vista econômico e social?

José Luís Fevereiro – Retomada de crescimento sustentado do emprego, políticas sociais com foco, retomada de investimentos em infraestrutura e uma nova política industrial capaz de reduzir nossa dependência de exportações de produtos primários.

 

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