“A urgência é fazer o país voltar a crescer, é enfrentar a nossa vergonhosa desigualdade social agravada substancialmente nos últimos oito anos”, adverte o economista
Na última quinta-feira, 20-10-2022, o ministro da Economia Paulo Guedes voltou a propor a desindexação do salário-mínimo da inflação como uma alternativa para “resolver a questão do teto do gasto” nos próximos anos, com a finalidade de garantir o pagamento do Auxílio Brasil.
A proposta, segundo o economista Eduardo Fagnani, significará não só um arrocho salarial para quem recebe até um salário-mínimo, mas uma “nova reforma da Previdência”, com implicações para aposentados e pensionistas. “Se o governo desvincular a Previdência do salário-mínimo, em dez anos será possível reduzir o poder de compra da aposentadoria em termos reais, em 30, 40, 50%. Portanto, essa proposta é uma nova reforma previdenciária. É uma reforma da Previdência que tiraria as tensões sobre o teto de gastos. Com essa medida, em dez anos o governo pode reduzir as despesas previdenciárias pela metade. Mas como o governo propõe que seja feito? Diminuindo o poder de compra dos trabalhadores e corroendo o valor real das aposentadorias”, explica.
A medida, caso seja levada adiante, terá impacto direto na vida de mais de 72 milhões de brasileiros. “Estou falando de mais ou menos 16,6 milhões de INSS urbanos, 9,1 milhões do INSS rurais, que correspondem a 25,7 milhões de pessoas. Mais 4,8 milhões de benefícios de prestação continuada, mais 5,4 milhões sobre o seguro-desemprego, totalizando mais de 40 milhões de pessoas que vão ter o poder dos seus benefícios corroídos ao longo do tempo. Isso diz respeito somente aos que recebem benefícios. Mas tem ainda mais de 36,1 milhões de trabalhadores ativos que recebem um salário-mínimo. Para mim, isso significa uma nova reforma da Previdência, a mais eficaz de todas no sentido de que vai reduzir e corroer radicalmente o valor dos benefícios”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele diz que a proposta do ministro “é um dos golpes finais que falta dar no contrato social da Constituição”. Se o presidente for reeleito, afirma, “vamos enterrar de vez o contrato social da democratização”. A eleição de Lula, de outro lado, “seria uma possibilidade de tentar reconstruir e, ao menos, dar um basta nesse processo de destruição das instituições e dos mecanismos de proteção social que fazem com que a desigualdade brasileira seja um pouco menos vergonhosa”, menciona.
Eduardo Fagnani
Foto: Agência Senado
Eduardo Fagnani é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Ciência Política e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Leciona no Instituto de Economia da Unicamp, coordena a rede Plataforma Política Social e é pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho – Cesit. É um dos autores de A reforma tributária necessária: diagnóstico e premissas.
IHU – O ministro da economia, Paulo Guedes, disse, em 20-10-2022, que o governo estuda desindexar o reajuste do salário-mínimo e de aposentadoria do índice de inflação do ano anterior. Como o senhor avalia a retomada desse tipo de proposta, que já havia sido cogitada em outros momentos, à luz do segundo turno das eleições presidenciais? O que ela significa, especialmente para aqueles que recebem um salário-mínimo, aposentadorias e o Benefício de Prestação Continuada – BPC?
Eduardo Fagnani – Vejo essa proposta com muita preocupação porque este governo, se eleito, certamente destruirá a democracia. O governo Bolsonaro sempre flertou com a ditadura. O que estamos vendo com a proposta de ampliar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal – STF é uma repetição do Ato Institucional número 2 da ditadura militar. As propostas sobre a mudança no STF e a desindexação do salário-mínimo são reedições de medidas da ditadura. Portanto, a perspectiva desse governo, caso seja reeleito, é um retorno à ditadura.
Quando se diz que o salário vai ser reajustado não pela inflação, mas pela meta de inflação, significa que o governo tem uma meta de inflação e o salário será reajustado segundo essa meta. Só que se a inflação for maior que a meta, haverá uma perda salarial. Em que isso se diferencia da política de arrocho salarial implementada no Brasil a partir de 1964? A política do arrocho salarial era exatamente isto: o governo estimava uma inflação para o ano seguinte e ajustava o salário de acordo com a meta de inflação estimada.
O que acontecia recorrentemente? A inflação era muito maior do que a meta. Qual era a consequência? Que tinha um processo contínuo de perda do valor real do salário-mínimo. É só ver o que foi a política salarial do regime militar. E é isso que explica, em grande medida, o fato de que o Brasil cresceu a taxas elevadas na década de 1960, mas a concentração de renda foi brutal. O arrocho salarial na ditadura foi um dos principais fatores que levou o país a ter uma concentração de renda brutal. É isso que está sendo reeditado. Não tem nenhuma novidade nessa proposta. Ela é uma cópia do arrocho social da ditadura.
A consequência disso é que, quando se desvincula a Previdência do salário-mínimo, se destrói a principal conquista de 1988. Quais foram as duas principais conquistas de 1988 na área previdenciária? Primeiro, a inclusão dos trabalhadores rurais na Previdência. Pela primeira vez, a partir da Constituição de 1988, eles passaram a ter os mesmos direitos previdenciários que os trabalhadores urbanos. A segunda conquista foi atrelar o salário-mínimo ao piso da Previdência. Isso foi feito porque recorrentemente, em particular nos períodos em que a inflação se elevava – sobretudo a partir de 1979, 1980, 1981, quando a inflação foi dobrando 100%, 200%, 400% –, o reajuste da Previdência era dado sempre abaixo da inflação, o que fazia com que os aposentados tivessem uma corrosão do seu poder de compra. Então, os constituintes vincularam o salário-mínimo e demais benefícios à inflação.
O que Guedes está propondo? Acabar com uma das principais mudanças positivas que ocorreu na reforma da previdência na Constituição de 1988. A única novidade da política social do Guedes é que ela revisita as políticas adotadas pela ditadura militar nas décadas de 60 e 70. Aliás, o modelo de proteção social que ele quer para o Brasil é o modelo chileno, que ele ajudou a construir: um modelo excludente, privatizado, que serviu de parâmetro para o Banco Mundial nas décadas de 70 e 80.
IHU – Diante da repercussão negativa da proposta, o ministro declarou: “É claro que vai ter o aumento do salário-mínimo e aposentadorias pelo menos igual à inflação, mas pode ser até que seja mais. Quando se fala em desindexar, as pessoas geralmente pensam que vai ser menos que a inflação, mas pode ser o contrário”. Qual sua objeção a essa declaração?
Eduardo Fagnani – Da mesma forma que o vice-presidente da República voltou atrás na declaração sobre a possibilidade de ampliar o número de membros do STF para dar maioria a Bolsonaro, diante da reação das pessoas Guedes também o fez. A proposta dele, a uma semana das eleições, pegou mal na base bolsonarista. Agora, em uma eventual reeleição, que espero que não aconteça, o governo implantará essa medida a toque de caixa, da forma mais cruel. Não tenho a menor dúvida.
A declaração dele pegou mal e por isso ele teve que recuar, mas esse é o pensamento que ele defende há muito tempo. Com essa proposta, o governo pretende encontrar uma forma de resolver a questão do teto do gasto.
IHU – Nesse sentido, a justificativa do ministro é que a proposta, que pode ser transformada em uma Proposta de Emenda Constitucional – PEC, é cogitada para garantir o pagamento do Auxílio Brasil. Que problemas vê nesse arranjo em particular, que propõe reajustes de um lado, para garantir recursos de outro?
Eduardo Fagnani – Se Bolsonaro for reeleito, nem sabemos se será possível implementar o Auxílio Brasil no próximo ano, nem se ele chegará ao valor de 400 reais. Esse é um programa eleitoreiro que vai contra a legislação eleitoral. O governo atropelou a legislação eleitoral. Mas o fato é que se o governo transformar essa proposta em PEC, isso significará uma nova reforma previdenciária porque a Previdência é um dos principais gastos do país, que tem uma tendência de crescer por causa da questão populacional, e isso vai afetar o teto do gasto.
Se o governo desvincular a Previdência do salário-mínimo, em dez anos será possível reduzir o poder de compra da aposentadoria em termos reais, em 30, 40, 50%. Portanto, essa proposta é uma nova reforma da Previdência. É uma reforma que tiraria as tensões sobre o teto de gastos. Com essa medida, em dez anos, o governo pode reduzir as despesas previdenciárias pela metade. Mas como o governo propõe que seja feito? Diminuindo o poder de compra dos trabalhadores e corroendo o valor real das aposentadorias.
O que é importante ficar claro é que isso não acontecerá somente em relação à aposentadoria, não é só sobre o INSS urbano, o INSS rural, mas sobre o BPC e sobre o seguro-desemprego, que são vinculados ao salário-mínimo.
Estou falando de mais ou menos 16,6 milhões de INSS urbanos, 9,1 milhões do INSS rurais, que correspondem a 25,7 milhões de pessoas. Mais 4,8 milhões de benefícios de prestação continuada, mais 5,4 milhões sobre o seguro-desemprego, totalizando mais de 40 milhões de pessoas que vão ter o poder dos seus benefícios corroídos ao longo do tempo. Isso diz respeito somente aos que recebem benefícios. Mas tem ainda mais de 36,1 milhões de trabalhadores ativos que recebem um salário-mínimo. Para mim, isso significa uma nova reforma da Previdência, a mais eficaz de todas no sentido de que vai reduzir e corroer radicalmente o valor dos benefícios
Essa medida é um dos golpes finais que falta dar no contrato social da Constituição, que vem sendo atacado de forma mais grave desde o golpe parlamentar de 2016. Os economistas que escreveram o plano “Ponte para o Futuro” propõem acabar com o pacto social de 1988 para fazer o ajuste fiscal. É por isso que eles disseram que “as demandas sociais da democracia não cabem mais no orçamento”. Isso começou com o governo Temer e avançou de forma acelerada no governo Bolsonaro.
Se Bolsonaro for reeleito, vamos enterrar de vez o contrato social da democratização. É isso que está em jogo.
IHU – O que uma nova eleição do ex-presidente Lula significaria para o país do ponto de vista econômico e social e do contrato social estabelecido na Constituição de 1988?
Eduardo Fagnani – A eleição de Lula é a única alternativa. A eleição deste ano não tem a ver com teto de gasto ou regras fiscais; tem a ver com civilização ou barbárie. É sobre democracia ou ditadura. Está claro que, se o governo mexer no STF, será aberta a ponte para implementar a ditadura no Brasil, de uma forma híbrida, porque acabará com a Constituição. Foi assim que foi feito na Hungria, na Venezuela. O pessoal dizia que a política do PT levaria a um quadro parecido com o da Venezuela, mas é isso que Bolsonaro vai fazer se ele ganhar.
A eleição de Lula representa uma possibilidade de frear esse projeto que está nos levando para a barbárie. Seria uma possibilidade de tentar reconstruir e, ao menos, dar um basta nesse processo de destruição das instituições e dos mecanismos de proteção social que fazem com que a desigualdade brasileira seja um pouco menos vergonhosa. A eleição do Lula visa estancar esse processo. Se ele conseguir estancar esse processo, para mim, já está bom demais. Depois, é preciso tentar reconstruir, refundar tudo que foi destruído ao longo dos últimos oito anos.
IHU – Quais são as urgências econômicas e sociais do país para o próximo período, tendo em vista o aumento da pobreza e da fome nos últimos anos?
Eduardo Fagnani – A urgência é fazer o país voltar a crescer, é enfrentar a nossa vergonhosa desigualdade social agravada substancialmente nos últimos oito anos.
Posso falar do mercado de trabalho, da piora dos índices de saúde, de vários indicadores, mas talvez o que mais sintetize a situação atual é a fome. O número de pessoas que estão desalentadas, subutilizadas, em trabalhos precários, corresponde a mais de 60% dos trabalhadores brasileiros. Sem falar na corrosão do poder de compra dos salários.
Como enfrentamos isso? Tem que gerar emprego. Neste primeiro momento, a melhor política social é emprego e renda. Se gerar emprego, melhora o mercado de trabalho e as pessoas vão ter renda, vão demandar serviços e isso gera o crescimento econômico. Mas não dá para fazer isso com as regras fiscais vigentes. Elas impedem que a política fiscal cumpra o seu papel em momentos de crise. É este caminho que está colocado nas diretrizes do governo Lula-Alckmin. As pessoas dizem que o governo não tem programa, mas não leram o programa. As diretrizes estão lá. É evidente que não se fez um levantamento técnico porque não cabe fazer isso em uma campanha eleitoral, mas o programa de diretrizes caminha nesse sentido.