05 Fevereiro 2021
"Manter a 'âncora fiscal' salvará o país, braveteiam tecnocratas do Banco Central. Por trás do economês, o real significado: teto de gastos e mais contrarreformas. Com esta bússola ultraliberal, o naufrágio brasileiro torna-se iminente…", escreve Leda Paulani, professora titular sênior na FEA/USP, em artigo publicado por Outras Palavras, 03-02-2021.
Há alguns meses, coloquei no Twitter que nós, os economistas não ortodoxos, deveríamos levantar a hashtag #stopfakenewseconomics. Aquilo que se conhece e vende como ciência econômica está coalhado de “verdades”, reproduzidas e repetidas ad nauseam pela mídia corporativa, sem haver o mínimo espaço para contestação. O terrorismo econômico, que há muito nos flagela, se alimenta de tais “verdades”. A mais nova estrela do espetáculo é uma tal de “âncora fiscal”.
“Se o governo abandonar a âncora fiscal, o Banco Central vai ter que agir”, disse o atual presidente da autoridade monetária brasileira, Roberto Campos Neto, em meados de dezembro último[1]; “o teto de gastos é a principal âncora fiscal do país”, afirmara, uma semana antes, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, para sugerir que seria preciso reforçá-la, aprovando as reformas[2]; no dia anterior, um prócer do mercado financeiro mostrara-se preocupado com a “perda de credibilidade” de nossa âncora fiscal[3]. Mas o que isso significa, afinal?
O termo “âncora” é amiúde encontrado nos textos econômicos. Normalmente ele aparece nas discussões que envolvem economias com inflação elevada, necessitadas de um processo de estabilização monetária. A metáfora faz sentido se pensarmos o espaço da expressão do valor dos infinitos bens e serviços transacionados no cotidiano dos mercados como um grande transatlântico, carregado de formas-preço, todas interligadas entre si (os chamados preços relativos). Se o navio enlouquece e resolve singrar aleatoriamente por aí, então é preciso colocar-lhe uma âncora. Com um dos preços se mantendo fixo à força, os demais preços ficam também constrangidos, ou seja, o dito cujo não vai sair navegando sem controle.
Mas quais seriam os preços candidatos a fazer tal papel? Será que o preço da banana serve? Hummm… parece que não, no mínimo porque nem todos gostam de banana e tanto faz se o preço dela sobe ou desce; ademais, banana não é insumo de grande utilização na produção de outros bens, e, assim, se seu preço sobe muito, por qualquer razão, seu impacto sobre os demais preços é bastante reduzido.
A impressão intuitiva de que o preço da fruta tão brasileira não parece se adequar à referida tarefa se estende aos preços dos demais bens e serviços. Aqueles que podem desempenhar adequadamente tal função são especiais: o preço da divisa (a taxa de câmbio) e o preço do próprio dinheiro (a taxa de juros). No primeiro caso, falamos de âncora cambial; no segundo, de âncora monetária.
Quando o Plano Real teve início efetivo, ou seja, quando a nova moeda começou a existir em 1.º de julho de 1994, a taxa de câmbio funcionou como âncora (apesar do não reconhecimento disso por parte do governo). Pensado para nascer como paritário à nova moeda, ou seja, US$ 1,00 = R$ 1,00, o preço da divisa, no entanto, começou sua nova jornada a R$ 0,87. Na euforia da estabilização trazida pelo artifício da Unidade Real de Valor (URV), que funcionara de 1.º de março a 30 de junho daquele ano e conseguira debelar a chamada inflação inercial, o governo soltou o valor do câmbio para ver no que dava e acertou na aposta: a nova moeda nascia “mais forte” que o dólar americano.
A partir daí, a taxa de câmbio foi fixada, deixando-se uma pequena margem para flutuação acima e abaixo desse valor, as chamadas “bandas”. Ora, era evidente a grande probabilidade então existente de a taxa de câmbio se tornar rapidamente supervalorizada (ou apreciada, como se diz no jargão do mercado), porque, mesmo na nova moeda, existia uma inflação que não seria acompanhada pelo preço da divisa.
Todavia, em se tratando de nova moeda, numa etapa inicial de um plano econômico que parecia estar conseguindo estabilizar monetariamente uma economia vinda de década e meia de elevada inflação, julgou-se este um preço razoável a pagar, já que o desequilíbrio nas contas externas que poderia surgir daí seria compensado pelas elevadíssimas taxas reais de juros pagas pelo país. Além do mais, uma divisa desvalorizada (ou seja, um preço baixo, em reais, para cada unidade de dólar), mesmo artificial, tinha impactos positivos sobre o nível geral de preços, garantindo a continuidade do sucesso do Plano Real (expediente esse, não sem razão, chamado por alguns de “populismo cambial”).
Já ao final de 1994, a quebra do México, considerado então pelo FMI o “melhor aluno da classe” por fazer direitinho a “lição de casa” — de adequar o país às prescrições neoliberais — gerou aqui o “efeito Tequila” e uma grande especulação em torno da viabilidade de se continuar a manter fixo o câmbio. Três anos mais tarde, ao final de 1997, a crise asiática obrigou o governo a mais do que dobrar as taxas de juros (que foram de 20 a 45% anuais em menos de um mês) para enfrentar a especulação contra nossa moeda.
O golpe definitivo nessa estratégia veio em 1998, com o advento da crise russa. Mesmo usando novamente o remédio da elevação dos juros (que dobra de valor em uma semana, em setembro desse ano), o país perde mais de US$ 40 bilhões, tornando insustentável a situação externa. Em janeiro de 1999, passada a eleição que deu um novo mandato a FHC, o real é fortemente desvalorizado e o câmbio fixo deixa de existir.
Considerando que, na vigência do câmbio flutuante, o preço da divisa não pode mais ser utilizado como âncora, pois não é determinado pelo Estado, mas pelo mercado, um outro tipo de âncora torna-se necessário. Em junho do mesmo ano de 1999, o Brasil passa a adotar o sistema de metas de inflação e junto com ele também o famoso tripé macroeconômico, que tem no câmbio flutuante e nos resultados primários positivos para as contas públicas seus dois outros elementos. Indiscriminadamente prescrito pelo receituário neoliberal para qualquer país (menos para os EUA, que não precisam se preocupar nem com o desequilíbrio de suas contas externas, nem com o desequilíbrio das contas do Estado americano), o referido tripé conta com uma âncora monetária.
A partir do regime de metas, que vigora até hoje no Brasil, a política monetária, principalmente a fixação da taxa de juros, é conduzida com o objetivo declarado de se obter uma taxa de inflação a priori determinada. Assim, para efeitos de preservação da estabilidade monetária, o principal preço da economia, ou sua âncora, deixa de ser o preço da divisa (a taxa de câmbio) e passa a ser o preço da moeda doméstica (a taxa de juros).
Relembrei tais fatos de nossa história econômica recente para ilustrar com um caso concreto o que está por trás da ideia de âncora. Em poucas palavras, uma âncora só pode ser constituída por um preço. Isso posto, qual seria o sentido de uma âncora fiscal? E considerando que ainda vigora em nossa economia uma âncora monetária, qual o significado de tal “âncora”? De qual preço ela é afinal constituída?
A resposta é que tal preço não existe, ou seja, o termo não faz o menor sentido. “Âncora fiscal” é só o outro nome que se passou a dar, capciosamente, ao famigerado e criminoso teto de gastos, aprovado no governo do golpista Michel Temer como parte do projeto de destruição neoliberal de nosso Estado. Veja-se quão artimanhosa, por neutra e “técnica”, fica a ideia da necessidade do teto quando se começa a chamá-lo de “âncora”. O conto (do vigário) que passa a prevalecer é que tudo na economia, não só o comportamento dos preços, depende da manutenção de tal expediente. Trata-se de uma sorte sutil de terrorismo econômico: não é preciso mais ameaçar explicitamente; o termo já carrega em si o inelutável naufrágio a quem desobedecer a bússola.
Em suma, não existe âncora fiscal. Trata-se de mais uma fake news ideológica a fazer parte do terraplanismo que domina o discurso econômico há muito tempo e que é no Brasil particularmente pernicioso. Como se sabe, o auxílio emergencial foi fundamental em 2020 para mitigar as consequências da pandemia sobre as camadas mais pobres da população. Ainda assim superamos os 200 mil mortos, graças ao negacionismo do presidente e à necropolítica que comanda.
A “âncora fiscal” (leia-se: teto de gastos), sua preservação a qualquer custo, vai somar muitos milhares de mortos a cifra já tão assustadora. O desespero empurrará a população para a rua, com o consequente relaxamento das normas sanitárias em meio à segunda onda e a variantes muito mais transmissíveis do coronavírus, isto sem falar no previsível aumento da violência, pois a miséria material, como se sabe, é a antessala da miséria moral. Colapso social e colapso no sistema de saúde desenharão um 2021 ainda mais infernal do que o ano que passou. Quem continuar a falar em âncora fiscal (entenda-se: teto de gastos) e a defendê-la será tão responsável pelas dezenas (centenas?) de milhares de mortes adicionais quanto o genocida governo de Bolsonaro.
[1] Disponível aqui.
[2] Matéria do caderno de economia do jornal O Globo, p. 17.
[3] Disponível aqui.
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O perverso terraplanismo econômico. Artigo de Leda Paulani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU