06 Janeiro 2023
Os relatos da infância de Jesus são um midrash, relatos teológicos que profetizam a vida e o destino do Messias, escritos à luz da fé pascal. Como escreve o exegeta Raymond Brown, “o Cristo adulto está retroprojetado no Natal”.
A opinião é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado em La Stampa, 29-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“É mais fácil tornar a divindade criança do que a humanidade adulta...” Assim se concluía o artigo de Michela Murgia publicado neste jornal na vigília de Natal, induzindo o leitor a repensar a celebração do nascimento de Jesus e a se interrogar sobre as imagens de Deus que cada cristão guarda em seu coração.
Certamente, Murgia pretende contestar uma certa idealização da infância que recebeu muito espaço na tradição católica e, portanto, devolver ao Natal toda a força que o evento recordado contém, sem por isso superestimá-lo.
Vito Mancuso reagiu a algumas afirmações certamente um pouco precipitadas, fazendo uma releitura dos textos natalícios e da tradição cristã que ainda hoje vive o Natal como uma grande festa, muito festejada popularmente e pertencente à tradição do Ocidente.
Não quero, absolutamente, causar polêmica, mas, como católico e assíduo frequentador das Escrituras, pretendo simplesmente participar desse debate tentando entender.
Acima de tudo, é bom lembrar que os eventos relativos ao nascimento de Jesus não estão presentes em todos os Evangelhos, mas apenas nos de Mateus e Lucas, e que são relatos redigidos mais tarde e, portanto, não essenciais para a plenitude da fé cristã em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado!
Até mesmo Paulo, o Apóstolo, ignora totalmente esses relatos, nunca presentes em sua pregação. Foi a comunidade cristã que apenas posteriormente sentiu a necessidade de voltar também ao nascimento e à infância de Jesus, acolhendo tradições recolhidas nos Evangelhos da infância que antecedem o tempo dos anos obscuros de Jesus, dos 12 aos cerca de 30 anos, quando iniciaria sua missão pública como discípulo de João Batista, tendo reunido à sua volta um grupo de alguns homens e algumas mulheres da Galileia.
O relato lucano centra a pré-história do Messias na mãe de Jesus, Maria, da qual destaca sua virgindade, uma linguagem apocalíptica para nos dizer que somente Deus podia nos dar um homem como Jesus, por meio do poder de seu Espírito Santo. Enquanto Mateus quer sobretudo testemunhar a pertença de Jesus à descendência messiânica de Davi, como rei dos judeus que, recém-nascido, desperta a hostilidade dos poderes deste mundo que o perseguem e querem eliminá-lo. Para Mateus, Jesus resume em si a história do povo de Israel que entrou e saiu do Egito, salvo antes de ser salvador.
Os relatos da infância de Jesus, portanto, são um midrash, relatos teológicos que profetizam a vida e o destino do Messias, escritos à luz da fé pascal. Como escreve o exegeta Raymond Brown, “o Cristo adulto está retroprojetado no Natal”.
E se a Igreja viveu celebrando a Páscoa e o domingo como dia do Senhor durante três séculos, mais tarde, somente no século IV, começou a fazer memória do nascimento de Jesus em Belém, como testemunham os Evangelhos da infância. Por isso, um cristão maduro e alimentado pelo Evangelho certamente celebra o Natal, mas como memória de um evento já ocorrido historicamente, ocorrido no tempo de Herodes, rei da Judeia, e de Augusto, imperador de Roma.
Jesus não nasce agora, mas nasceu; não se espera e não se invoca o nascimento de Jesus – seria uma regressão psíquica e espiritual, ainda que infelizmente ela assim se expresse –, mas se espera e se invoca a vinda de Jesus Senhor em sua glória.
É verdadeiramente triste quando se ouve que, no Natal, Jesus está prestes a nascer, impedindo e negando todo horizonte escatológico: o cristão, como sempre afirmaram os Padres, é “aquele que espera a vinda do Senhor na glória”. Esse evento está diante de nós, enquanto o nascimento em Belém está atrás, no nosso passado.
Portanto, no Natal, na memória de Jesus que nasce de uma mulher, Maria, que é posto em uma manjedoura, contemplamos a humildade, a fragilidade, a pequenez de um Deus que se fez humanidade, corpo mortal e frágil como cada um de nós.
Em Belém, já se delineia o escândalo da cruz, do abaixamento, do esvaziamento, da kénosis de Deus: agora, não se pode mais pensar em Deus sem pensar no ser humano, e não se pode pensar na humanidade sem pensar em Deus. Esse esvaziamento, essa pobreza, essa fraqueza será uma epifania radical na cruz: Jesus nu, amaldiçoado por Deus e pelos homens, rejeitado e condenado é o autêntico e definitivo relato (exeghésato, cf. Jo 1,18) de Deus, a quem ninguém jamais viu e ninguém pode ver, exceto além da morte.
Em todo o caso, Michela Murgia tem razão quando denuncia como apenas católico um culto da infância de quem depois cresceu e se tornou uma pessoa: nem os ortodoxos nem os reformados seriam capazes de uma veneração de “Maria menina” ou de “Jesus menino”. Uma coisa é fazer memória, outra é venerar! E o presépio é uma memória, belíssima memória da vinda ao mundo do nosso Deus em um recém-nascido de mulher, alguém em tudo igual a nós, humanos.
Certamente, os Padres da Igreja nos diriam hoje: “Não ponham no presépio em sua casa as estatuetas daqueles que são pobres e que vocês deixam lá fora e sem casa; não alinhem diante do presépio as estatuetas daqueles que vieram de outras terras e de outras culturas que vocês não acolhem por serem estrangeiros; não escutem músicas angelicais para não ouvirem o grito de quem sofre...”.
Talvez muitos se lamentem, mas o Evangelho deve ser levado a sério e não permite hipocrisias, porque ama a Deus quem ama o outro, adora a Deus quem cuida do outro, louva a Deus quem abençoa o outro.
A humanização de Deus que festejamos no Natal, nós a vemos verdadeiramente levada a cumprimento no Gólgota, na cruz. Significa também que nos tornaremos, por graça, não hoje, mas no Reino, o Filho de Deus, como escreve Irineu de Lyon: “Nós nos tornaremos Deus, porque Deus será tudo em todos”. Mas ousamos apenas esperar isso, e nós, cristãos do Ocidente, custamos até a dizer isso, apesar de conhecermos essa afirmação luminosa dos Padres orientais.
A fé cristã nos quer adultos, cristãos maduros, segundo a Carta aos Hebreus, mas é verdade que é mais fácil permanecermos imaturos, porque temos medo de nos apresentar diante de Deus na nossa humanidade, como filhos e filhas livres e não como escravos esmagados pelos nossos medos.
Jesus nasceu como viveu, veio ao mundo como esteve no mundo. Mas, olhando bem, Jesus nasceu melhor do que como morreu: no nascimento, ele está envolto em faixas, em sua paixão ele é despojado de suas vestes; na manjedoura, ele é posto com cuidado, na cruz ele é pregado; nasce em um berço, morre em um patíbulo. Em seu nascimento, tem mãe e pai a seu lado, na cruz é abandonado até por Deus.
O Pe. Primo Mazzolari captou muito bem esse contraste: “Um menino é um mistério suportável; o crucificado não. Um berço, até em uma manjedoura, é poesia; uma cruz plantada em um monte é um patíbulo”, e denunciava a tentação dos fiéis de sempre, a de contemplar o Senhor onde nos sentimos bem: em Belém, em Nazaré, no monte da Transfiguração, e não no Gólgota.
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O Deus Menino, nossa memória. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU