23 Dezembro 2022
“Talvez estejamos testemunhando uma 'grande inversão': aqueles que pensamos que estão nas periferias estão na verdade abraçados no calor do amor e da misericórdia de Deus; e aqueles de nós que habitam o centro de poder e influência na Igreja e na sociedade são os que residem à margem do Reino de Deus. Estar com os pobres e colher a sabedoria das periferias pode dar a nós, teólogos, alguma dose de realismo sobre o que importa, por que fazemos o que fazemos e para quem. Espero que este projeto seja um modelo de como fazer uma consulta na Igreja ouvindo as histórias que definem nossa Igreja hoje, não em salas sinodais entre a hierarquia e as elites da Igreja, mas entre os pequenos, os esquecidos e marginalizados das cidades, das estruturas institucionais da Igreja, que estão para fora dos muros e dos centros de poder”, escreve o padre nigeriano Stan Chu Ilo, doutor em Teologia pela Universidade de Toronto, professor do Center for World Catholicism and Intercultural Theology, da DePaul University, Chicago, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 30-11-2022.
Tenho uma pedra em meu altar particular que me foi dada por Alejandro. Quando seu irmão desapareceu em Ciudad Juárez, no México, há três anos, Alejandro voltou ao local onde se despediram pela última vez enquanto seu irmão embarcava no ônibus para a Cidade do México. Lá, ele tirou algumas pedras daquele terreno que hoje servem como único ponto de ligação entre ele e seu irmão.
“Pegue esta pedra, padre”, disse-me Alejandro, “e guarde-a no seu altar, e não se esqueça do meu irmão, porque a Igreja nunca deve esquecer os que estão perdidos”.
Alejandro foi um dos representantes que se reuniram com o grupo de trabalho norte-americano do projeto “Fazer Teologia desde as Periferias Existenciais”, promovido pela Seção de Migrantes e Refugiados do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral. O projeto foi lançado em resposta ao desejo do Papa Francisco de ouvir católicos raramente ouvidos.
A conexão de Alejandro com a Igreja tem sido confusa. Depois de procurar por seu irmão por três anos, ele foi à paróquia local em busca de orientação espiritual. Quando não conseguiu marcar uma consulta com o pároco, decidiu ir ao confessionário, sabendo que o pároco estaria lá. Quando ele perguntou ao padre: “Por que Deus não está ouvindo minhas orações em minha busca pelo meu único irmão que desapareceu há três anos?”, o padre disparou um julgamento duro, presumindo que seu irmão fosse membro de uma gangue de drogas: “Seu irmão está no inferno”.
Alejandro deixou a Igreja profundamente machucado. Ele nunca mais pisou em uma Igreja desde então.
Ele encontrou, no entanto, uma comunidade eclesial fora das estruturas formais da Igreja institucional no Solidarity for Human Dignity (Centro de Direitos Humanos), em Ciudad Juárez dirigido por alguns católicos e outros grupos cristãos. Aqui, ele encontrou solidariedade com tantas outras famílias que, mantendo a fé e a esperança em Deus, continuam se reunindo todas as semanas para orar e traçar estratégias para encontrar seus familiares desaparecidos. Quando Alejandro soube que havia algumas pessoas enviadas pelo Papa Francisco para conversar com eles neste centro, ele ficou feliz em nos conhecer.
As histórias que ouvimos deste projeto de periferias foram relatos profundamente comoventes das vidas complexas das pessoas comuns e da coragem e resiliência de muitos que são rejeitados e abandonados nas periferias da vida pela sociedade e nossas igrejas – encarcerados, membros da comunidade LGBTQIA+, mulheres, migrantes, toxicodependentes, religiosas católicas, ex-padres e ex-freiras, prostitutas, doentes, refugiados, migrantes e idosos, entre outros.
Nós os encontramos em lugares como Hope Border Institute em El Paso, Cook County Jail e Kolbe House em Chicago, Don Bosco Community Center em Port Chester, Nova York, Homeboy Industries em Los Angeles, All Inclusive Ministries em Toronto e Casa de Misericordia em San Diego. Ao todo, este grupo de 10 teólogos e ministros pastorais visitou mais de 72 locais e grupos focais ao longo desta jornada de um ano.
Agora que os relatórios dos grupos de trabalho do projeto das periferias chegaram de todos os cinco continentes, o Vaticano agora enfrenta um desafio complexo: o que você faz com essas narrativas cruas e dolorosas que mostram dor profunda, fé forte e resiliência de tantos católicos? Como pode esta abordagem da teologia e do acompanhamento pastoral ser institucionalizada em toda a Igreja?
Muitos desses nossos irmãos encontraram uma Igreja e uma comunidade que chamam de católica fora das estruturas pastorais formais de nossas paróquias e dioceses. A covid-19 já havia criado essa sensação de alienação e sofrimento para muitas pessoas, mas foi particularmente dura para os pobres. Este projeto foi originalmente concebido como um compromisso contínuo da Comissão Covid-19 do Vaticano.
Com o tempo, no entanto, tornou-se óbvio que havia uma ferida mais profunda que continua a supurar entre muitos católicos – uma desconexão entre o que a Igreja está ensinando e a experiência e o contexto dos fiéis. Esta situação continua a afetar a fé das pessoas, corroendo a confiança na instituição e afastando muitas pessoas de praticar a sua fé nas paróquias e comunidades. Há muitos católicos que estão desconectados da Igreja porque sentem que a Igreja não se importa com eles nem respeita suas perspectivas, sabedoria, agência espiritual e dons. O clericalismo e o hierarquismo continuam sendo ídolos que minam a missão de Deus para todo o povo de Deus. Outros católicos saem da Igreja porque estão convencidos de que podem viver a sua fé como bons católicos sem se identificarem formalmente com o catolicismo oficial que já não interessa à sua realidade cotidiana.
Essa foi a experiência de Gordon, um católico gay casado e feliz, a quem foi negado o cargo de diretor de uma escola católica de ensino médio porque era casado com outro homem. Gordon se perguntou em nossa conversa: “Por que a Igreja está me objetificando por ser um católico gay?”. Apesar da rejeição que sente da comunidade da Igreja local, Gordon acredita que Deus e a graça estão sendo mediados por ele por meio de seu trabalho como diretor de uma escola charter, onde continua a educar crianças de comunidades pobres.
Gordon não está pedindo um sacramento do matrimônio, mas um rito para homenagear parceiros do mesmo sexo comprometidos em uma união estável. Isso ocorre principalmente porque no que diz respeito ao casamento – o único sacramento em que a igreja testemunha a obra de Deus já presente em mover os corações dos cônjuges para o amor – a luz reveladora do amor experimentada pelos parceiros do mesmo sexo é o que somos chamados a contemplar e afirmar. Essas pessoas experimentam o que o teólogo jesuíta Karl Rahner chama de “fé real” que tem raízes profundas em Deus; eles também têm uma sabedoria, um sensus fidei fidelium, que nasce da experiência de amor e da prática da fé fora da Igreja.
Nessas histórias contrastantes de alegrias e tristezas, esperanças e desesperos, encontramos o que o Papa Francisco chama de “uma cultura de muros” que separa os mais vulneráveis da Igreja e da sociedade. No entanto, também ouvimos histórias comoventes de católicos que estão quebrando os muros e construindo pontes de amizade, onde, como nossos irmãos, encontram alternativas para reconectar sua fé infalível em Deus com sua fé e confiança cada vez mais fracas na Igreja institucional.
No Hope Border Institute, em El Paso, encontramos uma Igreja que é o tipo de “hospital de campanha” de que fala o Papa Francisco para os enfermos. O diretor executivo Dylan Corbett e a equipe do Hope Border Institute trabalham para construir justiça e aprofundar a solidariedade nas fronteiras do México e dos Estados Unidos e ajudar os migrantes a encontrar casas, abrigo temporário e comida, enquanto lutam pelo processo legal.
No Hope Border Institute, Meghan Clark – a coordenadora regional assistente do grupo de trabalho norte-americano – e eu conhecemos uma família haitiana que viajou por 11 países ao longo de 14 meses para chegar aos Estados Unidos. Durante sua jornada, sua filha adolescente conseguiu aprender a falar espanhol e inglês de forma fluente, e se dispôs a ser tradutora da conversa minha com seu pai, que fala creole. Também conhecemos dois voluntários extraordinários cuja abnegação e generosidade eram simplesmente uma nova versão dos Atos dos Apóstolos.
Gloria Cervantes, uma professora que se descreve como “aquela que recebe os estranhos com um sorriso” e que trabalha como voluntária com o marido há mais de cinco anos, inspira-se em João 3, 16, “Pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único”. Enrique Kiki Dias, voluntário há três anos, é um veterano americano que lutou na primeira Guerra do Iraque e teve as duas pernas amputadas e usa cadeira de rodas. Seu trabalho no Hope Border Institute é servir em uma linha de frente diferente: o sistema de imigração falido nos EUA.
Dias é o rosto sorridente e acolhedor na porta de entrada de centenas de migrantes que chegam ao Hope Border Institute. “Tive ambas as pernas amputadas, mas continuo... para garantir que essas famílias e pessoas maravilhosas [imigrantes] mereçam o melhor”, disse ele. “Eu olho para o rosto das pessoas. Eles vêm aqui infelizes; eles saem daqui com sorrisos, esperanças e bênçãos porque encontraram um lar. Não é disso que se trata a Igreja – um lar para o estrangeiro desabrigado?”.
Este projeto nos convidou a ver com um olhar diferente, a nos tornarmos pesquisadores em vez de planejadores, e a estarmos abertos às surpresas do Espírito Santo, mesmo de lugares estranhos e inesperados de dor e angústia. Como a irmã Mary Southard observou em nossa conversa com as religiosas idosas da Congregação das Irmãs de São José (irmãs com mais de 75 anos de idade): “existem tantas áreas de caos e agitação em nosso mundo, mas é uma oportunidade para nós vermos realidade com um olhar diferente”.
“Precisamos ver a dimensão interna da realidade que não vimos em nossas estruturas”, continuou ela. “Então, ‘repensar tudo’ é a mensagem”.
Ver com um olhar diferente moverá a Igreja para finalmente testemunhar como todo o povo de Deus pode fazer a vontade de Deus sem patriarcado, sexismo, racismo, homofobia e masculinidade tóxica.
Ouvir as histórias de Alejandro, Gordon, irmã Mary e nossos muitos irmãos nas periferias existenciais foi transformador para mim, tanto como padre quanto como teólogo, porque me forçou a ver com um olhar diferente. Aprendi mais com esses encontros do que com todos os meus estudos nos seminários e faculdades teológicas. Seguindo a sabedoria do Senhor Jesus e do Papa Francisco, aprendi que o melhor método para acompanhar tantos de nossos irmãos que muitas vezes são esquecidos, julgados, condenados e abandonados é colocar-se no lugar deles com reverência e respeito e escutá-los para escutarmos a voz de Deus.
A sabedoria do teólogo dominicano Yves Congar ajuda a articular um princípio teológico dos impulsos reveladores que podem ser encontrados nas periferias. Congar argumenta que as periferias são locais onde se pode ver algo que está “buscando e lutando por expressão”. Assim, é mais provável que um organismo espiritual como a Igreja cresça e se desenvolva prestando atenção a esses locais e elementos que estão esperando para nascer. Na história da Igreja Católica, segundo Congar, os movimentos religiosos e as comunidades religiosas mais influentes sempre se desenvolveram à margem e não foram “criados pelo poder central. Todas essas iniciativas vêm da periferia”. Nos nossos tempos, os locais mais importantes para a irrupção da esperança e para ver o retrato de uma verdadeira Igreja encontram-se nestes locais que visitamos.
Talvez estejamos testemunhando uma “grande inversão”: aqueles que pensamos que estão nas periferias estão na verdade abraçados no calor do amor e da misericórdia de Deus; e aqueles de nós que habitam o centro de poder e influência na Igreja e na sociedade são os que residem à margem do Reino de Deus.
Estar com os pobres e colher a sabedoria das periferias pode dar a nós, teólogos, alguma dose de realismo sobre o que importa, por que fazemos o que fazemos e para quem. Espero que este projeto seja um modelo de como fazer uma consulta na Igreja ouvindo as histórias que definem nossa Igreja hoje, não em salas sinodais entre a hierarquia e as elites da Igreja, mas entre os pequenos, os esquecidos e marginalizados das cidades, das estruturas institucionais da Igreja, que estão para fora dos muros e dos centros de poder.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Seriam as periferias o centro que define a Igreja hoje? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU