22 Novembro 2022
Para Eugen Drewermann (1), teólogo e psicoterapeuta alemão, o sistema eclesial e o discurso da Igreja sobre a sexualidade são os responsáveis pela crise dos abusos sexuais. Muito empenhado na reflexão sobre a guerra, acredita que o conflito na Ucrânia não se resolverá com as armas.
A entrevista é de Elodie Maurot, publicada por La Croix, 21-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde os anos 1980, você tem criticado fortemente a influência do clericalismo na Igreja Católica. Qual é a sua visão sobre a atual crise da Igreja?
Esse problema existe há séculos. Remonta a 1215, quando o Papa Inocêncio III convocou uma cruzada contra os cátaros. Pela primeira vez, a Igreja Católica define um crime de pensamento. Ele concebe seu papel como o de identificar e intimidar os criminosos de pensamento. Ele o faz primeiramente em nível do dogma, depois no âmbito dos pensamentos e das pulsões... No XVI século, Lutero abriu conventos e permitiu que os pastores se casassem, mas até hoje a Igreja Católica não quer ouvir falar disso. Sobre o assunto, dá provas de uma hipocrisia indescritível em relação à sexualidade humana.
Então, o problema lhe parece profundo?
Não se trata apenas do fato que a Igreja encobriu casos de abuso. Trata-se da estrutura de um sistema que leva pessoas que no fundo são de boa vontade a seduzir e abusar de crianças, porque são mal aconselhadas, mal acompanhadas. Nunca conheci um padre que se tenha ordenado para poder seduzir crianças. Alguns se refugiaram nos seminários porque tinham medo de sua homossexualidade e depois as coisas ficaram piores do que daquilo que haviam fugido... No jargão psicanalítico fala-se do "retorno do reprimido". Tudo isso, a Igreja nunca entendeu.
Publicamente nos contentamos em dizer que os culpados são hipócritas, torturadores de crianças, bastardos que devem ser punidos. O que equivale a não entender nada, a não tentar entender.
Recentemente, escrevi um artigo na Alemanha para pedir uma proteção a esses padres que erraram, para protegê-los da caça às bruxas que está acontecendo nos jornais.
Parece-lhe que o caminho sinodal alemão seja apto a dar uma resposta?
O caminho sinodal sofre de uma certa miopia. Claro, é importante que os leigos participem das decisões. A Igreja agora representa a última monarquia autocrática (na Europa, ndr). O papel das mulheres também deve mudar. Mas o risco é tentar realizar essas transformações sem mudar o modo de pensar espiritual desta instituição. Então, é como se a Igreja fosse um grupo político, com reivindicações que degeneram em disputas de poder. Na Alemanha somos campeões nisso! Aqueles que gritam mais alto são bem-sucedidos. Um exemplo: hoje a Igreja alemã está discutindo se a escrita inclusiva deve ser usada em textos e se, nas cartas de Paulo, o termo "irmãos" deve ser substituído por "irmãos e irmãs" - o que importa se o texto grego diz "irmãos”...
Parte-se de boas intenções, mas não é uma filologia que poderá se sustentar. Os problemas que apontamos não são realmente repensados a fundo. Estamos hipnotizados pelos sintomas.
O que você acha da maneira como o Papa Francisco lidera a Igreja?
Eu aprecio o Papa Francisco. Ele tenta muitas coisas e também enfrenta riscos. A verdade do cristianismo não está na organização, mas como organização, o catolicismo reúne 1,3 bilhão de homens e mulheres. Se seguissem os apelos do Papa: compromisso com os países do hemisfério sul, ajuda aos refugiados, abolição das armas nucleares, abolição do capitalismo que é uma forma de economia de morte...o cristianismo teria finalmente um significado.
Você nasceu durante a Segunda Guerra Mundial e o tema da paz – do qual fala em seu último livro publicado na França (2) – foi crucial em sua teologia. O que pode oferecer sobre o conflito na Ucrânia?
A minha resposta é muito simples: “Não matar”. É a resposta da Bíblia. Não se pode continuar pisoteando montanhas de corpos e depois agradecer a Deus pela vitória. As atrocidades da guerra não podem ser ignoradas. Jesus simplesmente diz: "Não resistam ao mal!". Porque se o fizerem, terão que ser mais maus do que os maus, e terão que matar de modo ainda mais terrível do que os assassinos...
Na sua opinião, os ucranianos não deveriam resistir com as armas à ocupação de seu país?
Jesus defendeu a não-violência enquanto vivia em um país ocupado (desde 67 a.C., a Palestina era ocupada por tropas romanas, ndr.). Para os judeus, os romanos profanavam o solo da Terra Santa e é por isso que certos judeus lutavam contra a presença dos romanos, fazendo uma guerrilha das montanhas da Galileia. Em vez disso, Jesus entrou em Jerusalém como o Messias montado em um jumento e não em um corcel branco. Ele se identificou com a profecia do Livro de Zacarias (Zacarias 9, 9-10), onde quem vem a este mundo em nome de Deus é reconhecido pelo fato de quebrar os arcos e fazer desaparecer os carros de guerra. É um desarmamento unilateral. No Evangelho segundo João (João 14), o evangelista fala dessa paz como uma paz que o mundo não pode realizar, mas que Jesus pode dar...
Este discurso de não-violência pode ser proposto, sem dar lugar à suspeita de que se queira favorecer o regime de Vladimir Putin?
Nos jornais, hoje na Alemanha, lemos que "o tempo dos anjos da paz já passou". A mensagem de paz de Jesus é politicamente incorreta. A explicação não é nova: não se pode fazer política com o Sermão da Montanha. Achamos mesmo que a Ucrânia precisa de mais lança-mísseis, obuses, tanques, drones, o que for preciso para assassinar seres humanos? Tornamo-nos livres quando formos eficientes o suficiente para matar um grande número de homens, mulheres e crianças? Não estamos falando de russos ou ucranianos, estamos falando de seres humanos.
(1) Sancionado pelo Bispo de Paderborn em 1994, deixou o estado clerical.
(2) Le secret de Jésus expliqué aux jeunes, Karthala. (Das Geheimnis des Jesus von Nazareth, traduzido do alemão por Jean-Louis Schegel).
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“A Igreja dá prova de hipocrisia em relação à sexualidade. Mas o caminho sinodal da Igreja alemã sofre de miopia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU