04 Novembro 2022
“Não há como escapar da crise ecológica e não há opções que nos permitam evitar desastres planetários. A eles se somam os nossos próprios problemas continentais e, finalmente, os nacionais. Estamos lidando com uma crise entrelaçada, que ocorre em escala planetária, continental e local. Ao mesmo tempo, estão em curso processos interligados, em que um desastre ecológico tem sérias repercussões e implicações em outras dimensões, sendo as mais imediatas a econômica e a política”. A reflexão é de Eduardo Gudynas, uruguaio, analista do Centro Latino-Americano de Ecologia Social – CLAES, em artigo publicado por Rebelión, 02-11-2022. A tradução é do Cepat.
É a ameaça mais importante que a humanidade enfrenta, e ninguém escapa dela, embora muitos não entendam isso. Avança pouco a pouco e, por isso, passa despercebida pela maioria das pessoas ao estarem envolvidas na solução de dificuldades urgentes, como o salário ou a segurança. Mas a cada ano a situação piora, pois as medidas tomadas até agora foram incapazes de deter a deterioração. Ela atinge a todos, em todos os cantos do planeta, sem que ninguém esteja seguro. É a crise ecológica.
Sua gravidade é tão grande que muitos especialistas defendem que a continuidade da humanidade como a conhecemos está em risco. A degradação ambiental tem repercussões imediatas na produção e nas cadeias de produção e comercialização de alimentos, no acesso e fornecimento de água potável, na extração e uso de hidrocarbonetos e assim sucessivamente em muitos outros setores. O outro lado dessa dimensão ecológica é sempre econômico e, portanto, contém todos os tipos de interesses e jogos de poder.
Todos os países latino-americanos estão presos nessa situação, sejam eles gigantes como México ou Brasil, ou pequenos países da América Central ou do Caribe. Cada um tem responsabilidades em contribuir para essa deterioração, seja por alguns gases de efeito estufa ou grandes áreas desmatadas. Ao mesmo tempo, todos sofrerão as consequências, porque um colapso ecológico os atingirá com força.
A política do dia a dia, os estilos de gestão do Estado e boa parte das discussões sobre o progresso do país têm enormes problemas para lidar com essa situação. A maioria dos atores políticos não assume que os problemas ambientais determinarão as opções econômicas no futuro imediato. Muitas vezes, acredita-se que o próprio país é diferente, e que dramas como as mudanças climáticas são assunto exclusivo de europeus ou norte-americanos, ou que a perda de biodiversidade só ocorre nas florestas amazônicas. Há um sentimento, uma ilusão tola, de uma excepcionalidade latino-americana que lhe permitiria evitar mudanças ecológicas planetárias. É por todas essas razões que se pratica uma política típica do século passado.
A realidade, no entanto, é bem diferente. Não há como escapar da crise ecológica e não há opções que nos permitam evitar desastres planetários. A eles se somam os nossos próprios problemas continentais e, finalmente, os nacionais. Estamos lidando com uma crise entrelaçada, que ocorre em escala planetária, continental e local. Ao mesmo tempo, estão em curso processos interligados, em que um desastre ecológico tem sérias repercussões e implicações em outras dimensões, sendo as mais imediatas a econômica e a política.
Para esclarecer a situação que estamos enfrentando, é útil recorrer à imagem dos limiares planetários, abaixo dos quais nossa vida é possível. Se esses limites forem ultrapassados, começam as repercussões negativas: alguns deles podem ser amortecidos, mas se você continuar avançando, essas opções também serão perdidas.
Nos últimos anos, trabalhou-se em nove dimensões vitais para o funcionamento ecológico do planeta: a mudança climática, a deterioração da camada de ozônio, a emissão de aerossóis nos nossos céus, a perda de espécies da fauna e da flora, a alteração dos ciclos biogeoquímicos, as mudanças no uso da terra, a disponibilidade da água doce, a acidificação dos oceanos e a poluição por produtos químicos, plásticos ou muitas outras novas substâncias produzidas pela humanidade. (1)
A mais conhecida é, provavelmente, a mudança climática, que se deve às emissões dos chamados gases de efeito estufa, como os gases causados pela queima de petróleo ou carvão em motores. Sua consequência é o aumento, pouco a pouco, da temperatura média do planeta, e quando se ultrapassa o limiar, desencadeiam-se todos os tipos de descontroles, como o excesso de chuvas em um lugar ou secas em outros, ondas de calor extremo ou geadas intensas. Não é possível indicar se um evento específico se deve realmente às mudanças climáticas e não a outras circunstâncias. Mas é possível defender o argumento de que sob a mudança climática a probabilidade desses distúrbios aumenta e eles se tornam mais frequentes, o que é justamente o que está acontecendo tanto em nosso país quanto nas nações vizinhas. As consequências são imediatas e impactam, por exemplo, na atividade agrícola, com a diminuição da produtividade e a necessidade de assistência financeira, ou nas cidades, quando o acesso à água potável fica comprometido. Tudo isso, por sua vez, tem repercussões econômicas e políticas. (2)
A comunidade científica tem alertado repetidas vezes que a temperatura média do planeta não deve aumentar mais de 1,5 grau para nos manter dentro do contexto climático que conhecemos. Também não foi possível garantir a meta de zerar as emissões líquidas até 2050. É aí que se encontra o limite nessa dimensão e, para evitar ultrapassá-lo, os países devem reduzir drasticamente suas emissões de gases de efeito estufa, incluindo, entre outras medidas, moratórias sobre novas explorações de carvão ou petróleo, ou interromper o desmatamento. Quase todos os governos assumiram vários compromissos nesse sentido, incluindo o Acordo de Paris, e todos estão se preparando para participar da cúpula sobre as mudanças climáticas no Egito (COP-27), para repetir suas promessas.
Mas, como acaba de anunciar o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, tanto essas promessas como o que cada país realmente reduz são insuficientes. Tudo indica que até 2030, em vez de reduzir os gases liberados pelas chaminés e escapamentos de veículos, eles aumentarão, em comparação com os volumes pré-pandemia em 2019 (ano em que foram superados com folga os 55 bilhões de toneladas de carbono). (3)
Pelo contrário, chegaremos a um aumento de temperatura de 2,8 graus, o que significa o derretimento de enormes massas polares, o aumento de mais de 10 centímetros no nível dos oceanos, cerca de 1,7 bilhão de pessoas sofrendo ondas de calor extremo, 61 milhões sofrendo secas e uma cascata na perda da biodiversidade. Muitas regiões ficarão desertas e as áreas agrícolas e o suprimento global de alimentos serão severamente modificados.
Estima-se que seis dos nove limites planetários já tenham sido violados. Somam-se à mudança climática a perda da diversidade de espécies vivas, as rupturas nos ciclos biogeoquímicos (com foco no que acontece com o fósforo e o nitrogênio), a alteração da água doce (que precipita e umedece os solos e depois evapora novamente), as mudanças no uso da terra (devido à artificialização do solo) e uma avalanche de substâncias sintetizadas que não existiam na natureza. (4) A única história de sucesso, até agora, foi evitar a destruição da camada de ozônio.
A perda da biodiversidade é alarmante. Aproximadamente 77% da área terrestre e 87% dos oceanos foram modificados pelos humanos, o que provocou a perda de 83% da biomassa dos mamíferos e metade da vegetação original. O efeito sobre a fauna e a flora foi brutal; um milhão de espécies estão em risco de extinção: um quarto das espécies de mamíferos, 13% e 41% dos anfíbios. As áreas selvagens foram desmatadas, convertidas em pecuária ou agricultura, ou substituídas por cidades. 75% da água doce é agora usada para a agricultura e outros fins humanos. (5)
Ao mesmo tempo, acumulam-se novos produtos, como produtos químicos e plásticos, sintetizados pelo homem e que não existiam na natureza. São produzidos 400 milhões de toneladas de plásticos por ano, 300 a 400 milhões de toneladas de metais pesados, solventes e outros derivados industriais são lançados nas águas, e os derivados dos fertilizantes poluem rios, lagoas e costas. Os derivados do plástico, convertidos em minúsculas partículas, invadem o ar, o solo e a água. Acredita-se que cada pessoa ingere indiretamente mais de 100 mil delas por dia e já foram encontradas em nosso sangue. O mesmo acontece com outras substâncias, como o conhecido agroquímico glifosato, seja este ou seus derivados, que foram encontradas em alimentos, fórmulas lácteas, cervejas ou absorventes femininos. (6)
Estima-se que todos os demais limiares sejam ultrapassados em 2030. Tudo indica que é iminente que a barreira da acidez nas águas oceânicas seja ultrapassada, o que precipitará um cataclismo na vida marinha, com o desaparecimento da maioria dos recifes de coral.
Deve ficar bem entendido que este desastre ambiental não implica um colapso de um dia para o outro, mas que nossos filhos e netos terão que enfrentar um novo mundo, sob outras condições ambientais que, para a maior parte da humanidade, acarretarão riscos e restrições em questões básicas, como o acesso a alimentos e água.
As fronteiras entre os países desaparecem, e o que acontece em alguma região remota do globo acaba nos afetando. Isso é evidente na mudança climática, já que os gases emitidos pela China ou pelos Estados Unidos, os dois maiores responsáveis pelo efeito estufa, produzem mudanças que atingem outros países, desde as recentes enchentes devastadoras no Paquistão até a seca no Brasil.
A velocidade com que se destrói a natureza para extrair recursos naturais também é global. A China é hoje o maior importador de recursos naturais não só do Uruguai, mas de toda a América Latina. A demanda global e a intermediação chinesa multiplicaram a taxa de extração de recursos minerais, petrolíferos e agropecuários latino-americanos para exportação para esse país e outras nações asiáticas. Na década de 1960, aproximadamente 156 milhões de toneladas de recursos naturais eram exportados para a Europa Ocidental e a América do Norte; em 2016, a China e seus vizinhos compraram 527 milhões de toneladas e venderam 157 milhões de toneladas para o Norte industrializado. A extração de recursos não apenas se multiplicou, mas a China responde por mais de três vezes as exportações para a Europa Ocidental e a América do Norte. (7)
Estamos em um mundo muito diferente daquele visualizado pela velha política, que criticava os Estados Unidos ou as potências europeias. O que é decidido em Bruxelas ou em Washington ainda é importante, mas ainda mais importantes são as resoluções do recente congresso do Partido Comunista Chinês. Estamos enfrentando relações desiguais, tanto econômica como ecologicamente. Exportamos recursos naturais, que em alguns países são minerais e em outros agroalimentos, comparativamente baratos, porque arcamos com os custos econômicos, sociais e ambientais da deterioração que produzem no país. As insistências dos governos com acordos de livre comércio, especialmente com a China e outras nações asiáticas, não implicam interromper essa relação econômica e ecológica assimétrica, mas fortalecê-la ainda mais.
Em escala continental, o desempenho de cada governo impacta diretamente nos seus vizinhos. O desmatamento da floresta amazônica, incentivada pelo Jair Bolsonaro, não apenas destrói uma das mais ricas reservas de biodiversidade do planeta, como também altera os ciclos hidrológicos e a dinâmica do clima sul-americano. Algo similar ocorre com a incapacidade do governo da Bolívia para evitar incêndios ou a derrubada de suas florestas, o que acaba tendo consequências em toda a bacia do Rio da Prata, como no regime de chuvas, e esses efeitos se estendem ainda mais para o sul. Da mesma forma, todos os países dessa imensa bacia, a segunda da América Latina, despejam vários poluentes em seus rios, desde agroquímicos, passando por resíduos de mineração até efluentes de esgoto das grandes cidades, colocando em risco as águas do estuário do Rio da Prata.
Não se pode escapar da geografia, e a política dominante ainda não entende isso. Estamos diante de uma crise em que não existem fronteiras políticas, e continuando a ignorar essa particularidade, tudo o que faz é esconder a apatia em resolvê-la.
A crise ecológica nos levará a um colapso civilizacional, segundo as Nações Unidas. (8) Não há alarmismo exagerado, pois esse alerta é repetido por outras áreas e perspectivas. Distúrbios em processos essenciais, como o fornecimento de alimentos ou água potável, poderão desencadear protestos sociais, ondas migratórias e, eventualmente, confrontos entre países.
Isso explica uma dura batalha que está acontecendo dentro das elites empresariais e políticas. Enfrentam-se aqueles que querem manter as estratégias capitalistas convencionais e aqueles que buscam reformá-las para evitar, justamente, esse colapso.
Um exemplo são os apelos ao "reinício" ou ao "reset" do capitalismo lançado pelo Fórum Econômico de Davos, que defendem um Estado que intervenha nos mercados, a luta séria contra as alterações climáticas, o cancelamento dos subsídios aos hidrocarbonetos ou a imposição de mais impostos aos mais ricos. Não o fazem por solidariedade: entendem que, seguindo com as práticas convencionais, haverá rupturas sociais que impossibilitarão não apenas seus negócios, mas também sua própria sobrevivência. A esquerda, por outro lado, ainda não consegue organizar alternativas substantivas, razão pela qual fica presa aos debates entre diferentes versões do capitalismo. (9)
Por outro lado, é sobretudo da América do Sul que se postulam e testam opções de mudança, enquadradas no termo Bem Viver, que buscam reconectar-se com a natureza e garantir a qualidade de vida das pessoas. Não há nada semelhante a essas posturas no Norte Global. O desafio da nossa política crioula é alimentar-se dessas discussões, olhando mais para o nosso continente e para a nossa pátria.
A esta visão juntam-se muitas outras alternativas, algumas locais e limitadas, que nos permitem proteger o nosso patrimônio ecológico e, ao mesmo tempo, garantir a qualidade de vida. Algumas já duram muito tempo, são vigorosas e têm muito potencial. É o caso da agricultura e da pecuária orgânica, pois não dependem de agroquímicos, controlam biologicamente pragas, regeneram solos, requerem mais mão de obra e fornecem alimentos mais saudáveis. São opções que, por sua vez, são economicamente viáveis e que, em certos casos, sustentam fluxos expressivos de exportação. Esses e outros exemplos indicam que não é que não existam alternativas viáveis, senão que estamos cercados por elas. Mas em quase todos os casos são negadas ou combatidas pelo desenvolvimentismo convencional.
Ao mesmo tempo, fica claro que as mudanças necessárias para curar o planeta não passam apenas por novas tecnologias ou gestão diferenciada do desenvolvimento, mas também pela recuperação de outras sensibilidades e responsabilidades. Nesse esforço, a América Latina também ofereceu inovações como o reconhecimento dos direitos da natureza, aceitos de diferentes maneiras no Equador e na Colômbia, que respondem a mudanças na ética e na afetividade: entender que o meio ambiente e a vida não podem ser mercantilizados, e que a justiça é tanto entre os humanos quanto com a natureza.
1. Ver, por exemplo, Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet, W. Steffen e colab., Science 347: 736; 2015.
2. Ver, por exemplo, State of the climate in Latin America and the Caribbean 2002, World Meteorological Organization, Genebra, 2021.
3. The closing window. Climate crisis calls for rapid transformation of societies. UNEP, Nairobi, 2022.
4. O último limiar planetário ultrapassado foi aquele que se refere à chamada “água verde”: A planetary boundary forgreen water, L. Wang-Erlandsoon y colab., Nature Reviews 3: 380-392, 2022.
5. Ver, por exemplo, Biodiversity and climate change, Workshop Report, IPBES – IPCCC, Bonn, 2021.
6. Ver, por exemplo, Outside the safe operating space of the planetary boundary for novel entities, L. Persson y colab., Environmental Science & Technology 56: 1510-1521, 2022.
7. Las venas abiertas de América Latina en la era del antropoceno: un estudio biofísico del comercio exterior (1900-2016), J. Infante-Amate, A. Urrego Mesa e E. Tello Aragay, Diálogos. Revista Electrónica de Historia 21 (2): 177-214, 2020.
8. Global assessment report on disaster risk reduction (GAR 2022), UN Office Disaster Risk Reduction, Genebra, 2022.
9. Las distintas alternativas y reacciones se analizan en Tan cerca y tan lejos de las alternativas al desarrollo. Planes, programas y pactos en tiempos de pandemia, E. Gudynas. RedGE, Lima, 2020.
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Interconectados, entrelaçados, ameaçados. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU