“Nestes momentos é no Chile onde podem ser discutidos os mais altos níveis de assuntos ambientais ao mesmo tempo que os econômicos, repensar o marco de direitos e ao mesmo tempo promover alternativas ao desenvolvimento. São discussões que não são próprias de um simpósio acadêmico, nem de uma oficina de reflexão, mas que vem empurradas e demandadas por amplos setores cidadãos. Alcançaram o mais alto nível possível, o poder constituinte, e o que elaborem demarcarão todos os debates, todas as normas, toda a política chilena por anos. Não existe um espaço desse tipo nem com essas implicâncias em nenhum outro país da região. É por isso que a novidade mais destacada do ano, e se isso foi possível no Chile, também se pode conseguir em outros países”, escreve Eduardo Gudynas, uruguaio, analista do Centro Latino-Americano de Ecologia Social - CLAES, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 29-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ao se encerrar o ano de 2021, qualquer balanço da situação ambiental na América Latina facilmente terminaria alertando sobre a degradação ambiental que persiste, que ocasiona múltiplos impactos sociais, e que as medidas governamentais seguem sem reversão. Porém, é possível seguir um recorrido inverso para focarmos no mais promissor, inovador e vigoroso do ano. Em vez de compartilhar um balanço que enumere os lugares mais contaminados ou a promessa de alguma nova área de proteção ambiental, podemos nos focar em novidades que ocorrem na origem das próprias políticas ambientais.
Então, a inovação mais importante e esperançadora de 2021 está no Chile, em sua Convenção Constituinte. Especificamente na comissão que abordará a temática ambiental, porém que é mais que isso, já que também lhe compete promover os direitos da Natureza, e se não bastasse, tudo está acoplado aos modelos econômicos.
De fato, na Convenção Constituinte instalou-se a comissão de Meio Ambiente, Direitos da Natureza, Bens Naturais Comuns e Modelo Econômico. É uma denominação larga, porém que deve ser analisada porque encerra mensagens e lições. Estamos ante uma clássica comissão em temas ambientais, uma questão que não pode faltar em nenhuma constituição. Porém, em seguida se somam as novidades. Agrega-se um mandato especifico para abordar os direitos da natureza, e isso coloca o país na vanguarda dessa temática. Esses direitos, a nível constitucional, apenas foram reconhecidos no Equador com sua constituição de 2008.
Acrescenta-se a questão dos “bens naturais comuns”, o que exigirá definir o que implica a noção de “bem” e a atribuição de “natural”. Com isso, a comissão se compromete a abordar questões essenciais, como noções de propriedade e a definição de bem comum. Todos esses debates devem ser acompanhados de uma discussão sobre modelos econômicos. A novidade chocante está justamente nesse conjunto.
É que o visual tradicional coloca esses assuntos em caixas separadas. Por exemplo, no eleitorado equatoriano, as questões ambientais e econômicas estavam em diferentes comissões. Mas é precisamente essa separação temática que explica por que as abordagens econômicas convencionais foram ecologicamente cegas por anos, levando a estilos de desenvolvimento que precedem e poluem o meio ambiente.
Essa característica híbrida naquele comitê da Convenção chilena, que é desconfortável para muitos, é uma experiência única no gênero. Permite discutir os assuntos de uma perspectiva diferente, ao mais alto nível e sem que haja nada semelhante em outros países.
Além disso, o Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES) analisa as principais tendências da ecologia política no continente, e após essa avaliação concluiu que ela não existia em todo o ano de 2021, nem mesmo no “longo ano” da pandemia 2020-21, um espaço para pensar as relações entre meio ambiente e desenvolvimento em todas essas dimensões em nenhum outro país da América Latina e, pelo que se sabe, não em outro continente. Isso explica porque o evento ambiental de maior destaque do ano está acontecendo no Chile.
Às vezes, parece que essa relevância não é percebida de forma adequada no resto da América Latina e em nível global. Pode até ser o risco de que essas potencialidades ainda não sejam adequadamente ponderadas em muitos movimentos de cidadãos. A ênfase está no próximo governo e em como ele vai negociar com a ala direita no parlamento, ou eles assumem que essa Convenção é apenas um legado do estallido cidadão de 2019.
Mas isso é precisamente o que a Convenção não pode ser. Não pode ser uma mera válvula de escape para reduzir a raiva dos cidadãos, mas é um espaço para pensar sobre outros futuros. Qualquer futuro torna-se inviável se não houver reconciliação com a Natureza ou se o pensamento econômico não compreender que existem limites ecológicos.
Isso reforça a enorme importância e as opções oferecidas por se poder construir um mandato constitucional que reconheça os direitos da Natureza e que suas formulações se estendam à dimensão econômica. Essa é mais uma justificativa para a qual é descrito como o evento ambiental mais positivo do ano.
Nem deve a instalação desta comissão ser tratada como uma concessão a uma excentricidade de alguns. São mais de 30 convencionalistas que participam do conglomerado dos chamados “ecoconstituintes”; a maior bancada da Convenção. Entre eles também há muitos que vêm de esferas políticas fora dos partidos e em grande medida são independentes dessas estruturas, o que deve ser saudado porque, em geral, os partidos políticos sucumbem ao desenvolvimentismo clássico.
Seus temas, que poderiam ser descritos como repensar mandatos constitucionais sobre o desenvolvimento a partir de um marco ecológico, despertam múltiplas resistências de setores conservadores, seja nos negócios, na política ou na academia. Já existem rejeições de ideias como as dos direitos da Natureza e questões sobre as implicações que isso pode ter sobre os direitos de propriedade ou extrativismo. As reações em alguns casos já são virulentas, o que mostra o quanto está em jogo.
Na avaliação dos fatos relação ao meio ambiente e ao desenvolvimento em 2021, um caminho clássico poderia ter sido seguido, apontando os principais problemas ambientais da América Latina. Nessa lista você encontrará, mais uma vez, o desmatamento tropical que avança, por exemplo no Brasil e na Colômbia, ou a sucessão de incêndios que afetam a Amazônia e os ecossistemas subtropicais. Também pode incluir a pressão para explorar hidrocarbonetos e minerais em áreas protegidas e territórios indígenas na Bolívia e no Equador, repetindo o que fizeram anos atrás. Da mesma forma, pode-se enumerar os conflitos ambientais que eclodem com a imposição do extrativismo, como ocorre na Argentina ou no Chile. Sejam esses ou outros exemplos, nenhuma dessas situações não é nova, e esse tipo de falha tem se repetido nos últimos anos.
O que é novo e diferente está agora no Chile porque não se limita a esses problemas específicos, mas aborda as raízes políticas de todos eles. Se pode mudar o rumo daquele país, mas também pode se tornar um exemplo para todos os seus vizinhos.
Deve-se admitir que tudo o que acaba de ser descrito deve ser qualificado com precaução. Não se pode predizer o resultado desse processo constitucional, se cristalizará nos direitos da Natureza ou se naufragará repetindo formulações convencionais. Inclusive se conseguirá o melhor de todos os textos constitucionais, tampouco há garantias de que um próximo governo não as golpeie até leva-las à inaplicabilidade, como em boa medida ocorreu no Equador.
Porém, o que não pode se negar é que o processo de reflexão e discussão está em curso, e nisso reside essa novidade maiúscula. Neste momento é no Chile onde podem ser discutidos os mais altos níveis de assuntos ambientais ao mesmo tempo que os econômicos, repensar o marco de direitos e ao mesmo tempo promover alternativas ao desenvolvimento. São discussões que não são próprias de um simpósio acadêmico, nem de uma oficina de reflexão, mas que vem empurradas e demandadas por amplos setores cidadãos. Alcançaram o mais alto nível possível, o poder constituinte, e o que elaborem demarcarão todos os debates, todas as normas, toda a política chilena por anos. Não existe um espaço desse tipo nem com essas implicâncias em nenhum outro país da região. É por isso que a novidade mais destacada do ano, e se isso foi possível no Chile, também se pode conseguir em outros países.