Vijay Prashad aponta os limites aos projetos de esquerda na América Latina na atualidade

Vijay Prashad analisa o cenário político da América Latina (Foto: William Campos | Brasil de Fato)

14 Setembro 2022

 

Intelectual indiano fala sobre os horizontes de uma agenda progressista e consequências da guerra na Ucrânia.

 

A entrevista é de Arturo Hartmann, publicada por Brasil de Fato, 13-09-2022.

 

A eleição no Brasil, que terá seu 1º turno em 2 de outubro, se encaixa em um contexto efervescente na América Latina, que estaria vivendo uma 4ª onda de movimentos de esquerda. De qualquer forma, as vitórias de Gabriel Boric, no Chile, e de Gustavo Petro, na Colômbia, expõem possibilidades e limites aos movimentos de esquerda no continente. Algo que afetaria até mesmo um possível governo de Lula, em 2023. Essa é a análise do cientista político e pesquisador indiano, Vijay Prashad.

 

 

Na sua análise, o atual cenário político não seria “um momento propício para as pautas da esquerda.” Desse modo, é uma consequência lógica que governos de centro-esquerda tenham ganhado espaço. “O governo de Gabriel Boric não é um ponto fora da curva. Ele define as possibilidades na América do Sul. Veja o que acontece hoje na Argentina, a campanha contra Cristina Kirchner sugere que você não pode ir demais para a esquerda ou será puxado de volta. Acho que um governo Lula também enfrentará isso.”

 

Isso porque a conjuntura para a elaboração de projetos políticos a partir de revoltas populares não é das mais favoráveis. Ainda que Prashad enxergue a Colômbia como exceção. “Chegamos a um ponto, desde a Primavera Árabe de 2011, quando tivemos enormes protestos, em que as pessoas protestam, mas esses protestos não necessariamente levam a mudanças políticas. O único país que mostrou ciclos de protestos levando a mudanças foi a Colômbia, onde um grande ciclo, que começou em 2016, quando o Acordo de Paz foi assinado, e depois 2019, 2020 e 2021, que uniu os movimentos sociais e a esquerda para guiar uma campanha eleitoral que elegeu Gustavo Petro e Francia Márquez.”

 

O desafio para o Brasil, por exemplo, estaria em saber enfrentar esse novo modo de ação da extrema direita, mesmo em uma eventual derrota de Bolsonaro. “O primeiro (fator) é que eles sabem manipular as comunicações e a mídia. O segundo é que encontraram uma forma de reunir esse eleitorado insatisfeito, pessoas que podem ser pobres, mas estão insatisfeitas com o processo de transformação social. E usaram esse descontentamento para construir um grande eleitorado de 30 ou 35%. É um belo eleitorado! Um eleitorado permanente. Trump continua tendo 30% das pessoas dos EUA ao lado dele. É tudo que você precisa! É muito, porque a esquerda tem 5, 6 ou 8%. Então não podemos dizer que 30% não é nada.”

 

Também abordamos com o cientista político as consequências da Guerra da Ucrânia depois de seis meses, a política interna da Índia e a investigação que ele realizou no Chile, com foco no lítio e no “nacionalismo dos recursos”.

 

Eis a entrevista.

 

Vijay, completamos seis meses de guerra na Ucrânia no fim de agosto. Podemos dizer agora que o que está sendo consolidado é uma divisão em dois blocos, um liderado pelos EUA e alguns países europeus, outro por China e Rússia?

 

Para mim, são três blocos. O terceiro bloco não quer ser liderado por ninguém e, na verdade, gostaria que o conflito acabasse amanhã. Afinal, o que esse conflito gerou à maior parte do mundo? Aumento no preço dos alimentos e dos combustíveis. Então muitos países dizem: "Este conflito não é nosso e queremos que acabe". Existe realmente uma divisão, mas ela não está restrita à guerra na Ucrânia. Já existia antes. Aliás, essa divisão provocou a guerra. Os EUA andavam muito preocupados por ver a integração entre Europa e Ásia. Ver a energia russa entrando no Leste Europeu e depois na Alemanha e no resto da Europa. Ver o investimento chinês em tecnologia chegando à Europa.

 

A Europa se encontrava em uma posição curiosa. Racionalmente, ela deveria se integrar à Ásia. Mas, politicamente, ela está ligada à OTAN, a seus membros, aos EUA, um vínculo que atravessava o Atlântico. A Europa está no meio do fogo-cruzado e já faz um bom tempo. Para mim, foram os EUA que provocaram um conflito pedindo à Europa para escolher, em certo sentido, entre os EUA e a Rússia e a China. Repare que a Rússia e a China não exigiram nenhuma escolha da Europa. A Rússia só queria vender energia aos europeus. Os chineses só queriam investir e oferecer tecnologia à Europa. Eles não provocaram a divisão. Foram os EUA. Então, sim, existe uma divisão, mas não uma em que ambos os lados se deram as costas. Na verdade, os EUA estão impondo um conflito e é isso que estamos vendo não só na Ucrânia como também em Taiwan.

 

Em relação a esse terceiro bloco de países ou, digamos, esse bloco fragmentado, como outros países grandes, como a Índia, encaixam-se nesse contexto?

 

A Índia está em uma posição interessante. Isso porque o governo de extrema direita da Índia tem laços estreitos com os EUA, em termos políticos e afetivos. Mas a Índia tem duas questões com o conflito na Ucrânia. A primeira é que o país tem uma ligação próxima e longa com a Rússia. Não só porque, por exemplo, a Rússia lhe provê armas, mas também porque existiu um laço histórico entre a União Soviética e a Índia, que remonta à década de 1950. É difícil quebrar esse laço. A segunda questão é que a Índia é um país de 1,4 bilhão de pessoas, sendo que 700 milhões delas estão sofrendo com a inflação e outras coisas. E os russos disseram que estão dispostos a vender a eles petróleo, gás natural, o que quiserem, com desconto. Então os indianos disseram: "É claro que vamos comprar o seu petróleo com desconto".

 

Governo indiano se divide entre conexões históricas e econômicas com a Rússia e uma tendência atual de se aproximar dos EUA (Foto: William Campos | Brasil de Fato)

 

Mas não devemos interpretar mal os fatos. Não significa que a Índia rompeu com os EUA. É que, do ponto de vista pragmático, a Índia precisa comprar petróleo russo e tem relações antigas com a Rússia. É também o caso de muitos países do continente africano. Eles não podem romper com a Rússia porque estão integrados de uma forma ou de outra com a economia russa. Nos anos 1990, os EUA conduziram uma política de globalização. Isso fez os países se integrarem, mas agora os EUA estão dizendo que querem dividir o mundo em dois em uma esfera de influência estadunidense e, outra, de influência chinesa. Não vai acontecer. Isso vale até para o Brasil. Bolsonaro é uma figura pró-EUA, mas nem mesmo ele pode romper com a China. Ele tem que continuar vendendo bens primários e outros produtos à China. Então essa tentativa de quebrar laços com a Rússia ou a China é complicada. Eu queria que as pessoas não superestimassem as mudanças que estão ocorrendo no mundo hoje. Mas, por outro lado, precisamos entender que o projeto de imposição dos EUA não é um projeto viável para muitos países.

 

Entre as consequências que você mencionou desse panorama de acontecimentos, estão as sanções, que geraram necessidades urgentes. Uma delas é o combustível, energia, cujos preços dispararam. A outra são os alimentos. A questão da fome. Que desafios isso traz ao campo popular?

 

Em primeiro lugar, dificulta o cotidiano das pessoas. Quanto mais difícil é o dia a dia, mais desmoralizadas as pessoas ficam. Elas não têm tempo para protestar, não têm dinheiro para entrar nos ônibus e ir ao protesto. É preciso entender a situação desse ponto de vista. Alimentos e combustíveis caros desmoralizam a sociedade. De fato, não necessariamente geram protestos. Mas em alguns lugares estamos vendo grandes manifestações. No Sri Lanka, houve um enorme levante popular que destituiu o primeiro-ministro, mas não mudou o equilíbrio de forças no país porque o (governo interino) "cuidador" que substituiu o presidente e primeiro-ministro está basicamente seguindo a mesma política do governo anterior. Ainda assim, houve um enorme levante.

 

Mas chegamos a um ponto, desde a Primavera Árabe de 2011, quando tivemos enormes protestos até aqui, em que as pessoas protestam, mas esses protestos não necessariamente levam a mudanças políticas. O único país que mostrou ciclos de protestos levando a mudanças foi a Colômbia, onde um grande ciclo, que começou em 2016, quando o Acordo de Paz foi assinado, e depois 2019, 2020 e 2021, uniu os movimentos sociais e a esquerda para guiar uma campanha eleitoral que elegeu Gustavo Petro e Francia Márquez. A Colômbia é uma exceção em relação à maioria dos países agora, que estão vivendo grandes manifestações seguidas de frustração política.

 

Como você vê ascensões como a de Gustavo Petro e também Gabriel Boric, no Chile. Qual mensagem, que tipo de movimento ou tendência eles estão apontando?

 

A política é um negócio interessante. Não dá para fazer coisas se o equilíbrio de forças do seu país não é suficientemente favorável a certas pautas. Se o movimento sindical ou o movimento campesino estiver fraco, se os trabalhadores precários estiverem desorganizados e fragmentados, não dá para empurrar pautas totalmente populares. Temos que encarar alguns fatos. Atualmente, na maioria dos países, os movimentos populares estão enfraquecidos. Não puderam consolidar sua potência. Não temos a capacidade de levar adiante uma agenda completa.

 

Na minha opinião, na América Latina houve quatro ondas desde a Revolução Cubana. Os movimentos revolucionários imediatos pós-1959 foram destruídos pelas ditaduras militares. Foi o caso do Brasil em 1964. A segunda foi a onda da Nicarágua, em Granada, em 1979. Foi novamente uma onda de forças nacionais de libertação que tomaram o poder e foram derrubadas por intervenções militares diretas dos EUA. Não usaram um (Augusto) Pinochet, nem generais como no Brasil, intervieram diretamente. A terceira onda foi a de (Hugo) Chávez em 1998 ou 1999. Como os EUA estavam distraídos pelo Iraque e as commodities estavam caras, essa onda conseguiu fazer muita coisa: integração regional, projetos populares, etc. A era Chávez abriu novas portas em diversos lugares da América do Sul, principalmente.

 

Agora, o preço das commodities despencou, movimentos populares foram fragmentados devido à longa crise econômica, mas também devido à pandemia. Estamos em uma posição em que os EUA estão contestando a China na América Latina. Não é um momento propício para as pautas da esquerda. Por isso acho lógico que governos de centro-esquerda tenham aparecido. O governo de Gabriel Boric não é um ponto fora da curva. Ele define as possibilidades na América do Sul. Veja o que acontece hoje na Argentina, a campanha contra Cristina Kirchner sugere que você não pode ir demais para a esquerda ou será puxado de volta. Acho que um governo Lula também enfrentará isso.

 

O que os movimentos populares precisam reconhecer, de certo modo, é que eles precisam se fortalecer e mudar as condições na sociedade, criando a estrada por onde os políticos poderão passar. Os políticos não podem criar essa estrada. São os movimentos que devem criar novas possibilidades. Neste momento, na América Latina, essas alternativas não estão tão visíveis.

 

Recentemente você esteve no Chile para investigar a questão do lítio. O que esse recurso pode nos mostra sobre os desafios políticos do campo popular?

 

Naturalmente, existe uma preocupação geral sobre a dependência de combustíveis à base de carbono. Muitos dos combustíveis neutros em carbono, como a energia solar ou hidrelétrica, exigem formas de armazenar energia. Principalmente a solar. Energia solar precisa de baterias. Ora, a tecnologia atual para baterias exige coisas como o lítio. O lítio é um componente essencial do mundo da nova "energia verde". Estão todos animados com a transição verde, mas eu estou interessado no que é preciso para produzir tecnologia verde. Uma peça-chave é o lítio. Então vamos lá ver onde o lítio é produzido. Boa parte do lítio mundial, não todo ele, um pouco está na Austrália, um pouco em Cornwall, no Reino Unido, mas boa parte do lítio que se conhece está nos chamados países "ABC": Argentina, Bolívia e Chile.

 

Prashad afirma que para entender os dilemas da energia verde é necessário olhar para a cadeia industrial do lítio (Foto: William Campos | Brasil de Fato)

 

O deserto do Atacama, no Chile, tem um imenso depósito de lítio. O problema, que já é conhecido, é o uso excessivo de águas subterrâneas do deserto. Água subterrânea preciosa. O Chile tem uma grande questão com as fontes hídricas. O uso excessivo dessa água como solução salina é para extrair o lítio como minério pouco processado e depois exportá-lo. Estávamos interessados em ver isso. A população está perdendo as águas subterrâneas, tem toxinas na atmosfera, os flamingos estão sendo extintos.

 

É muito difícil chegar realmente até as minas porque uma das principais empresas privadas de mineração é do genro do Augusto Pinochet. Até hoje! Pinochet morreu e acabou, a ditadura também, mas o genro dele ainda é o dono de uma das maiores companhias de mineração de lítio do Chile. Estávamos interessados em explorar isso.

 

Agora, isso nos leva a outra pergunta: O que está acontecendo para lá da fronteira, na Bolívia? Desde que Evo Morales tomou o poder pela primeira vez, foi colocado sobre a mesa o conceito de "nacionalismo de recursos". A verdadeira pergunta é: depois de extrair o minério, o que fazer com ele? Países como o Chile vendem tudo para as multinacionais, a baixos royalties. O projeto boliviano é diferente. "Podemos extrair o lítio, processá-lo na Bolívia, fazer baterias na Bolívia e depois fazer carros elétricos?" E, de fato, conseguiram. Mas até eles estão enfrentando um problema. Eles não têm capital suficiente para continuar atualizando a cadeia boliviana que vai da mina ao carro elétrico. Então também estão recorrendo às multinacionais para pedir ajuda. Então queríamos explorar os problemas dessa situação. Das duas "transições verdes", mas também do nacionalismo de recursos.

 

Falando de Brasil, com uma possível vitória de Lula, como isso influenciaria, primeiro, a América Latina, mas também, num cenário mais amplo, os BRICS e esses eixos que estávamos discutindo?

 

Lula foi um dos primeiros presidentes brasileiros a estar no centro de eventos mundiais. Para ser sincero, eu conheço o (Fernando Henrique) Cardoso de nome, mas porque ele era um economista. Conhecia o trabalho técnico dele antes de se tornar presidente. Quando Cardoso era presidente, ele não estava para todo lado fazendo um monte de coisas. O Bolsonaro é conhecido pela atitude de palhaço dele pelo mundo, não por causa de suas declarações de estadista no palco mundial. Mas o Lula, sim.

 

Quais eram exatamente os motivos pelos quais Lula era conhecido? Isso é importante porque será traçada uma linha reta desde o segundo mandato do Lula até este novo possível mandato. Primeiro, por sua relação com a África prévia à questão dos BRICS. O Lula viajou à África, começou criando vínculos com os países lusófonos, e argumentou que, por causa do tráfico de escravizados pelo Atlântico, a África e o Brasil têm uma ligação. Estou interessado em ver o Brasil na África de novo para contestar o que os EUA e a França estão fazendo lá. Abrir espaço para que os países africanos tenham uma ligação Sul-Sul, em vez de serem reintegrados às trajetórias estadunidenses e europeias. Isso seria algo interessante.

 

O BRICS é complicado, porque, de certo modo, nos últimos anos, a China e a Rússia desenvolveram seus próprios laços bilaterais, o que inclui laços estratégicos. Não tenho certeza se os cinco países do BRICS conseguirão estar em pé de igualdade neste próximo período. Quero crer que sim.

 

Um dos países do BRICS é a Índia. A Índia participaria desse plano? Se o conflito na Ucrânia terminar, será que a Índia vai manter essa nova postura de independência? Eu não sei. Então não está claro se os BRICS serão uma grande via daqui adiante.

 

De qualquer forma, essa ideia de o Brasil voltar a ser um ator importante no mundo será importante. O Brasil teve um papel decisivo nas negociações sobre o Irã. O Lula conseguiu um acordo com o Irã que depois foi quebrado pelos EUA. Infelizmente, porque era um bom acordo. Se o Brasil voltar a moderar algumas dessas coisas, acredito que será um grande avanço para a defesa mundial.

 

Falando um pouco sobre a Índia, mas também sobre esses padrões da extrema direita que chegaram ao poder, Assim como no Brasil, na Índia, o (Narendra) Modi chegou ao poder por vias eleitorais, embora ele tenha usado meios como as fake news. Nós percebemos um padrão entre eles, incluindo Trump e Bolsonaro. Para chegar ao poder, essas figuras e grupos tiveram métodos e táticas. Olhando para esse novo ciclo, e colocando a Índia nesse mesmo barco, você acha que eles poderiam continuar se fortalecendo ou acha que já superamos a pior parte?

 

Eu acho que não. Se o Sr. Bolsonaro perder as eleições em outubro, a política bolsonarista continuará com vocês por um bom tempo. Que política é essa? Eu e você somos jornalistas. Entendemos um pouco sobre como a mídia funciona. Mas também acreditamos na verdade, em dizer o mesmo em diferentes canais, se estou falando com o Brasil de Fato aqui e digo alguma coisa, depois vou dizer o mesmo no meu Facebook, vou dizer o mesmo para a minha família. A gente tenta ser coerente e tal. Nós temos que aceitar o fato de estar lidando com uma extrema direita que é profissional em mídia. Eles sabem usar a mídia. Eu vi o Sr. Bolsonaro, por exemplo, dizer uma coisa a um veículo de extrema direita, dizer uma coisa superofensiva nesse veículo. Quando um grande jornal pergunta por que ele disse aquilo, ele responde: "Nunca disse isso".

 

Eles entendem os diferentes tipos de formatos e como devem se comportar. Posar com a arma um dia, ir a outro lugar de terno. Eles sabem fazer isso. E construíram um eleitorado de pessoas que também sentiam que não podiam falar abertamente sobre as coisas ofensivas que queriam dizer. Toda sociedade tem um contingente de pessoas que se sentem proibidos de ser ofensivos. Não podem ser sexistas, não podem ser racistas... E "coitadinhos" deles, sinto muito! Mas esse "sinto muito" é da minha perspectiva. Ou seja, que bom que vocês não podem ser racistas abertamente sem algum tipo de punição.

 

Mas aí esses políticos apareceram. E fizeram uma coisa esperta. Notaram a crise econômica, mas que ela não existia por causa do capitalismo, e, sim, por causa dos homossexuais, por causa das mulheres no mercado de trabalho, do feminismo, por causa dos migrantes. Usaram esse sentimento de não poder dizer coisas ofensivas para explicar a crise do capitalismo.

 

Então os donos de propriedades estão muito satisfeitos com esse pessoal. Esse é o real motivo por que não é preciso suspender a democracia para essa tendência política continuar. O Sr. Modi foi eleito, como você disse. Eles não querem obedecer a Constituição, mas estão perfeitamente contentes em usar as vias democráticas para criar esse eleitorado. Ou seja, o "espírito democrático" pode estar desaparecendo, mas as instituições democráticas ainda estão aí. Não são pessoas que querem fazer um golpe fascista. Por que deveriam? Se você consegue se eleger, por que parar as eleições? Não faz sentido. É um novo tipo de política.

 

Mas há esses dois fatores aqui. O primeiro é que eles sabem manipular as comunicações e a mídia. O segundo é que encontraram uma forma de reunir esse eleitorado insatisfeito, pessoas que podem ser pobres, mas estão insatisfeitas com o processo de transformação social. E usaram esse descontentamento para construir um grande eleitorado de 30 ou 35%. É um belo eleitorado! Um eleitorado permanente. Trump continua tendo 30% das pessoas dos EUA do lado dele. É tudo que você precisa! É muito, porque a esquerda tem 5, 6 ou 8%. Então não podemos dizer que 30% não é nada.

 

Sobre a Índia, o Partido Comunista governa o estado de Kerala. Você acha que isso é um exemplo ou modelo de sucesso de um governo de esquerda?

 

Sinceramente, a frente democrática de esquerda que governa Kerala está sempre experimentando. Não me sinto confortável com a ideia de alguém sendo modelo para alguém. Porque o socialismo é uma forma de experimentação. Você faz algumas coisas, algumas não dão certo. Você faz as coisas com honestidade para melhorar não só as condições de vida das pessoas, como também a confiança delas.

 

Porque queremos que as pessoas possam, cada vez mais, resolver seus problemas. Não queremos construir um mundo em que todo mundo dependa do governo. Queremos que as pessoas sintam confiança para se reunir coletivamente e resolver seus problemas. Em Kerala, há muitas tentativas de resgatar a vida coletiva. Durante a pandemia de covid-19, movimentos de estudantes, de jovens, de mulheres foram, de porta em porta, na cidade de Trivandrum, capital de Kerala, para perguntar às pessoas se elas precisavam de alguma coisa, se estavam bem, se precisavam de remédios. E aí eles ajudavam, compravam remédios para elas. Como consequência, uma das jovens mulheres do movimento de jovens que fez isso agora é a prefeita de Trivandrum. Ela tem 21 anos. O nome dela é Arya Rajendran.

 

Sim, coisas imensas estão acontecendo. Darei um exemplo. O estado de Kerala decidiu oferecer acesso universal à internet de alta velocidade. Então, 20% da população abaixo da linha da pobreza receberá internet gratuita do governo. O resto poderá ter acesso a isso, mas, se não quiserem, podem contratar serviços privados. Essa é a escolha que as pessoas têm que fazer. Há escolas públicas de alta qualidade e escolas particulares. Quer gastar um monte dinheiro? Pode gastar. Mas o que vemos é que, conforme aumenta a qualidade da escola pública, as crianças estão saindo das particulares e voltando às escolas do Estado. São experimentos de construção de confiança nas pessoas em um projeto mais ou menos de esquerda.

 

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