23 Novembro 2021
“As Ag Techs e Big Techs estão defendendo uma espécie de uberização das terras agrícolas em um esforço para dominar todos os aspectos da produção de alimentos”, escreve Vijay Prashad, jornalista e historiador indiano, em artigo publicado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 18-11-2021.
Queridos amigos e amigas,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Enquanto o último avião particular decola do aeroporto de Glasgow e a poeira assenta, os restos da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, COP 26, permanecem. Os comunicados finais estão sendo lentamente digeridos, seus escopos limitados são inevitáveis.
António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, encerrou os trabalhos pintando duas imagens terríveis: “O nosso frágil planeta está por um fio. Ainda estamos batendo à porta da catástrofe climática. É hora de entrar em modo de emergência – ou não teremos nenhuma chance de chegar a emissões líquidas zero”. A maior ovação no salão principal não explodiu quando o veredito final foi anunciado, mas quando foi proclamado que a próxima COP seria realizada no Cairo, Egito, em 2022. Parece suficiente saber que outra COP acontecerá.
Um exército de executivos e lobistas lotou as plataformas oficiais da COP26. À noite, seus coquetéis relaxavam funcionários do governo. Enquanto as câmeras focavam os discursos oficiais, o verdadeiro negócio estava sendo feito nessas festas noturnas e em salas privadas. Os próprios responsáveis pela catástrofe climática deram forma a muitas das propostas apresentadas na COP26.
Enquanto isso, os ativistas tiveram que recorrer a fazer barulho o mais alto possível longe do Scottish Exchange Campus (SEC Center), onde a cúpula foi sediada. É revelador que o SEC Center tenha sido construído no mesmo terreno que Queen’s Dock, no passado um lugar de passagem lucrativo para as mercadorias extraídas das colônias para a Grã-Bretanha.
Agora, velhos hábitos coloniais revivem à medida que os países desenvolvidos – em conluio com alguns Estados em desenvolvimento capturados por uma elite servil – se recusam a aceitar cortes firmes de emissão de carbono e contribuir com os bilhões de dólares necessários para o fundo climático.
Os organizadores da COP26 designaram temas para muitos dos dias da conferência, como energia, finanças e transporte. Não houve dia reservado para uma discussão sobre agricultura. Em vez disso, foi agrupado no Dia da Natureza, em 6 de novembro, durante o qual o tópico principal foi o desmatamento. Não ocorreu nenhuma discussão específica sobre o dióxido de carbono, metano ou óxido nitroso emitido por processos agrícolas e o sistema alimentar global, apesar do fato de que esse sistema produz entre 21% e 37% das emissões anuais globais de gases do efeito estufa.
Pouco antes da COP26, três agências das Nações Unidas divulgaram um relatório importante, que oferecia a seguinte avaliação: “Em um momento em que as finanças públicas de muitos países estão restritas, principalmente no mundo em desenvolvimento, o apoio agrícola global aos produtores atualmente é de quase 540 bilhões de dólares por ano. Mais de dois terços desse apoio é considerado distorcedor de preços e amplamente prejudicial ao meio ambiente”. Ainda assim, na COP 26, houve um silêncio notável em torno do sistema alimentar distorcido que polui a Terra e nossos corpos; não houve conversa séria sobre qualquer transformação do sistema alimentar para produzir alimentos saudáveis e sustentar a vida no planeta.
Em vez disso, os Estados Unidos e os Emirados Árabes Unidos, apoiados pela maioria dos Estados desenvolvidos, propuseram um programa de Missão de Inovação Agrícola para o Clima (AIM4C, na sigla em inglês) para defender o agronegócio e o papel das grandes corporações de tecnologia na agricultura. Grandes empresas de tecnologia (Big Tech), como Amazon e Microsoft, e empresas de tecnologia agrícola (Ag Tech) – como Bayer, Cargill e John Deere – estão promovendo um novo modelo agrícola digital por meio do qual buscam aprofundar seu controle sobre os sistemas alimentares globais em nome da mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.
Surpreendentemente, essa nova solução “revolucionária” para as mudanças climáticas não menciona os agricultores em nenhum lugar em seus principais documentos; afinal, parece vislumbrar um futuro que não os exige. A entrada das Ag Techs e das Big Techs no setor agrícola significou uma tomada de controle de todo o processo, desde a gestão dos insumos até a comercialização da produção. Isso consolida o poder ao longo da cadeia alimentar nas mãos de algumas das maiores empresas comerciais de commodities alimentares do mundo. Essas empresas, muitas vezes chamadas de ABCD – Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus – já controlam mais de 70% do mercado agrícola.
As Ag Techs e Big Techs estão defendendo uma espécie de uberização das terras agrícolas em um esforço para dominar todos os aspectos da produção de alimentos. Isso faz com que sejam os pequenos proprietários e trabalhadores agrícolas fragilizados quem assuma todos os riscos. A parceria da empresa farmacêutica alemã Bayer com a estadunidense Precision Agriculture for Development (PAD), sem fins lucrativos, pretende usar o treinamento de extensão para controlar o que e como os agricultores cultivam seus produtos, já que o agronegócio colhe os benefícios sem correr riscos.
Esse é outro exemplo dos efeitos do neoliberalismo no mundo do trabalho, deslocando o risco para os trabalhadores, enquanto produzem grandes lucros para as Ag Techs e Big Techs. Essas grandes empresas não estão interessadas em possuir terras ou outros recursos, elas simplesmente querem controlar o processo de produção para que possam continuar a ter lucros astronômicos.
Os protestos em curso dos agricultores indianos, que começaram há pouco mais de um ano, em outubro de 2020, estão baseados no temor justificado dos agricultores pela digitalização da agricultura por parte dos grandes agronegócios globais. Os agricultores temem que a remoção da regulamentação governamental dos mercados os leve para os mercados controlados por plataformas digitais criadas por empresas como a Meta (Facebook), Google e Reliance. Essas empresas não apenas usarão seu controle sobre as plataformas para definir a produção e a distribuição, mas também o domínio dos dados lhes permitirá controlar todo o ciclo alimentar, das formas de produção aos hábitos de consumo.
No início deste ano, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizou um seminário sobre tecnologia digital e luta de classes para entender melhor os tentáculos das Ag Techs e Big Techs e como superar sua presença poderosa no mundo da agricultura. Desse seminário surgiu nosso dossiê n. 46, Big Techs e os desafios atuais para a luta de classes, que busca “compreender as transformações tecnológicas e suas consequências sociais com um olhar voltado para a luta de classes”, sem a pretensão de “fornecer uma discussão exaustiva ou conclusão sobre esses temas”. O dossiê resume uma rica discussão sobre vários tópicos, incluindo a relação entre tecnologia e capitalismo, o papel do Estado e da tecnologia, a parceria entre empresas financeiras e de tecnologia e o papel das Ag Techs e Big Techs em nossos campos e fábricas.
A seção sobre agricultura (“Big Tech contra a Natureza”) nos apresenta ao mundo do agronegócio e da agricultura, onde as Ag Techs e Big Techs buscam absorver e controlar o conhecimento do campo, moldar a agricultura para atender aos interesses de lucro das grandes empresas e reduzem os agricultores à condição de trabalhadores precários. O dossiê termina com a consideração de cinco condições principais que estão por trás da expansão da economia digital, cada uma delas adequada ao crescimento das Ag Techs em áreas rurais:
1. Um mercado livre (para dados)
Os dados do usuário são desviados livremente por essas empresas, que então os convertem em informações proprietárias para aprofundar o controle corporativo sobre os sistemas agrícolas.
2. Financeirização econômica
As empresas capitalistas de dados dependem do fluxo de capital especulativo para crescer e se consolidar. Essas empresas testemunham a fuga de capitais, deslocando capitais dos setores produtivos para os meramente especulativos. Isso pressiona cada vez mais os setores produtivos a aumentar a exploração e a precarização.
3. A transformação de direitos em mercadorias
O fato de a ação pública estar sendo substituída pela intromissão de empresas privadas nas arenas da vida econômica e social subordina nossos direitos como cidadãos ao nosso potencial como mercadorias.
4. A redução dos espaços públicos
A sociedade começa a ser vista menos como um todo coletivo e mais como indivíduos com desejos segmentados, com o trabalho não fixo sendo visto como uma libertação ao invés de uma forma de subordinação ao poder das grandes corporações.
5. A concentração de recursos, cadeias produtivas e infraestrutura
A centralização de recursos e poder entre um punhado de corporações lhes dá uma enorme influência sobre o Estado e a sociedade. O grande poder concentrado nessas corporações prevalece sobre qualquer debate democrático e popular sobre questões políticas, econômicas, ambientais e éticas.
Em 2017, na COP23, os países participantes criaram o Koronivia Joint Work on Agriculture (KJWA), um processo que se comprometeu a focar na contribuição da agricultura para as mudanças climáticas. A KJWA realizou alguns eventos na COP26, mas não recebeu muita atenção. No Dia da Natureza, 45 países endossaram a Agenda de Ação Global para a Inovação na Agricultura, cujo slogan principal, “inovação na agricultura”, se alinha com os objetivos das Ag Techs e Big Techs. Essa mensagem está sendo canalizada por meio do CGIAR, um órgão intergovernamental projetado para promover “inovações”.
Os agricultores estão sendo entregues nas mãos de empresas Ag Tech e Big Tech, que – em vez de se comprometerem a evitar a catástrofe climática – priorizam o maior lucro possível para si mesmas, ao mesmo tempo que criam uma roupagem “verde” para suas atividades. Essa fome de lucro não vai acabar com a fome mundial, nem vai acabar com a catástrofe climática.
As imagens deste boletim informativo são do dossiê n. 46, Big Tech e os desafios atuais para a luta de classes. Elas criam uma compreensão divertida dos conceitos que sustentam o mundo digital: nuvens, mineração, códigos e assim por diante. Como descrever essas abstrações? “Uma nuvem de dados”, escreve o departamento de arte do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, “parece um lugar etéreo e mágico. Na realidade, é tudo menos isso.
As imagens deste dossiê buscam dar visualização à materialidade do mundo digital em que vivemos. Uma nuvem é projetada em uma placa de chips”. Essas imagens nos lembram que a tecnologia não é neutra; a tecnologia faz parte da luta de classes.
Os agricultores indianos concordariam.
Cordialmente,
Vijay.
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Para “salvar” o clima, eles querem uberizar a agricultura. Artigo de Vijay Prashad - Instituto Humanitas Unisinos - IHU