Os efeitos colaterais da dilatação de uma brecha antropológica que torna o humano refém de sua própria criação

Diante do que se tem chamado 7ª Revolução Cognitiva, Lucia Santaella, proferirá a palestra “Dialéticas do neo-humano: enfreamento e possibilidades civilizações no mundo atual” no espaço do IHU Ideias

Imagem: PX Here

Por: João Vitor Santos e Wagner Fernandes de Azevedo | 28 Julho 2022

 

É preciso inventar novas ontologias, pois o mundo pós-moderno avançou como um caminhão desgovernado sobre aquilo que nós mesmos inventamos e aprendemos na Modernidade. É nesse sentido que vai a reflexão da professora Lucia Santaella, que tem se colocado a pensar sobre esse mundo e o humano que tem sido açodado por uma nova revolução cognitiva que provoca mais do que uma nova evolução ao Sapiens. “Conforme as tecnologias avançam e se sofisticam, elas vão ao mesmo tempo expandindo as contradições e paradoxos que o Sapiens sempre carregou consigo. No estágio em que hoje estamos, a brecha antropológica se dilatou, os efeitos colaterais das tecnologias pululam e eles se acumulam a uma velocidade tal que fica difícil encontrar caminhos de superação no mesmo ritmo”, pontua, em entrevista reproduzida pelo IHU em abril desse ano e que destacamos abaixo.

  

 

Lucia Santaella é a conferencista de hoje no espaço do IHU Ideias. Sua palestra, intitulada “Dialéticas do neo-humano: enfreamento e possibilidades civilizações no mundo atual”, tem transmissão ao vivo a partir das 17h.

 

 

 

Nessa mesma entrevista destacada acima, Santaella usa a metáfora das placas tectônicas, pois qualquer movimento destas provocam grandes tremores de terra, como se o chão se abrisse sob nossos pés. “Cabe a ideia de um deslocamento das placas tectônicas sob nós, dadas as transformações de grande monta na produção social das subjetividades e na constituição de esfera pública. O ritmo vertiginoso da evolução digital, a par das mudanças climáticas, levou à derrocada das ontologias essencialistas e à necessidade não só de reconfiguração das condições habitativas do humano, mas também da nossa própria ideia de humano. Uma nova noção de cidadania digital transorgânica, sem sujeito e sem objeto, emerge nas arquiteturas infomateriais das ecologias das redes”, detalha.

 

 

 

No entanto, encarar essas novas configurações nada tem relação com o abandono do pensamento científico moderno. Pelo contrário, trata-se de extrapolar isso, pensando e concebendo novos caminhos para além da clássica divisão moderna entre campos disciplinares. É, segundo a professora, borrar o que tomávamos como limites entre as ditas ciências duras e as ciências humanas e sociais. “No ponto de desenvolvimento da ciência, do conhecimento e da tecnologia em que estamos, embora continuem necessariamente existindo especializações, a emergência da Inteligência Artificial (IA) está provocando verdadeiras simbioses entre aquelas que tradicionalmente eram chamadas de two cultures, segundo S.P. Snow”, explica.

 

Ainda além do multidisciplinar

 

Num passado nem tão distante, concebemos a ideia da hiperespecialização. De o infinito do universo, éramos obrigados a recortar um frame e nele mergulhar para compreender o todo. Depois, fomos percebendo que, nessa volta do macro ao micro e do micro ao macro da superespecialização, algo no escapava. Foi aí que surgiu a ideia de sermos multi, multidisciplinares. Ou seja, era não abandonar o mergulho da especialização, mas também saber de outras coisas, campos que poderiam se relacionar. O problema é que isso também gerou zonas de escapes. Olhar hoje para as relações humanas, por exemplo, extrapola a psicologia, a sociologia, a antropologia e a biologia. A virada cognitiva-tecnológica faz com que risquemos transversalmente as fronteiras desses campos disciplinares para olharmos a relação entre humanos no século XXI.

 

 

 

Lucia Santaella nos convida a conhecermos e nos deslocarmos sobre esse cenário, pensando a transdisciplinaridade sob novas bases. Tudo, evidentemente, sem esquecer a defesa de valores fundamentais da democracia, pesando governança e segurança frente às contradições das redes, refletindo sobre os direcionamentos possíveis para a sustentabilidade em um mundo em crise. “Optei por processos para o avanço do conhecimento, em lugar de uma série de eventos que são ocasionais e não deixam muitas raízes. Para garantir a interdisciplinaridade, os subtemas foram pensados em contrapontos que pudessem, de modo controverso, fazer frente às contradições e dilemas que nos afetam hodiernamente. Ou seja, pensar com e pensar contra, melhor ainda, pensar plural”, defende.

 

Capitaloceno da hiperinformação e desinformação

 

Nos primórdios da internet, todos anunciavam a chegada de uma revolução informacional. A comunicabilidade atingiu uma velocidade inimaginável quando no advento de outra revolução, a industrial, pensava-se na conexão dos mercados. No entanto, o final do século XX representou a consolidação ordinária de uma economia financeirizada e efêmera. Os dados passaram a ser transmitidos ponta-a-ponta a milésimos de segundo de velocidade, em quantidades progressivamente sem limites, sob os meios de algumas poucas corporações, as big techs. Ou seja, explodindo com os sonhos da "blogosfera" e suas conexões geradas diretamente a partir dos sujeitos. “Aparentemente, estamos expostos ao hiper, mas, sem saber e ironicamente para nosso agrado, estamos enjaulados na mesmice”, explica Santaella, em entrevista exclusiva concedida ao IHU em junho desse ano, que destacamos abaixo.

 

 

As novas habitabilidades sobre a Terra tornam-se consoantes ao sistema e assim o ser humano molda sua existência sobre e com os outros seres e o planeta. A esta transformação, entende-se a formação do Capitaloceno, uma era em que o capital exerce um poder de transformação geológica. O capital termina por cindir a cultura da natureza pela utilidade das suas matérias e seres. Da mesma forma, o relacionamento humano com os dados se constrói no ambiente digital, em que se compartilha apenas os dados úteis ao conforto e afetos dos usuários, ou constroem-se até mesmo novas fronteiras e barreiras digitais de utilização de recursos e saberes, transformando o que outrora eram feudos, em bolhas customizadas.  “O que o ser humano tem de pior tornou-se tão flagrante que perigosamente pode nos levar a crer que se perdeu aquilo que o humano tem de melhor e que poderia garantir a sua decência enquanto espécie”, avalia Santaella, na mesma entrevista.

  

Nesse cenário, e diante da emergência de se conceber saídas, o IHU quer provocar o debate sobre o que seria o neo-humano e a 7ª Revolução Cognitiva. O tema é recorrente no IHU, no entanto, a crise climática, a degradação humana e social e a avalanche do avanço tecnológico nos fazem pensar que essa aceleração pode, se não repensada, pôr em risco toda a vida na Terra, inclusive a humana.

 

 

  

“Dizem os futurologistas que a única certeza que podemos ter acerca do futuro é que ele será diferente do que imaginamos”, observa a professora Santaella. E completa: “passamos a sonhar com um futuro que seja melhor do que foram o passado e o presente. O perigo é cair em utopias acríticas que, quando projetadas sobre a realidade sociopolítica, acabam por redundar não só em tiranias, mas também em matanças coletivas”. 

 

Saiba mais sobre Lucia Santaella

 

Pesquisadora 1A do CNPq, graduada em Letras Português e Inglês. Professora titular no programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica e no programa de Pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, ambos da PUC-SP. Tem doutoramento em Teoria Literária na PUC-SP em 1973 e Livre-Docência em Ciências da Comunicação na ECA/USP em 1993. É coordenadora da Pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, Diretora do Centro de Investigação em Mídias Digitais - CIMID e coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos, na PUC-SP.

 

É presidente honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica e membro executivo da Associación Mundial de Semiótica Massmediática y Comunicación Global, México, desde 2004. É correspondente brasileira da Academia Argentina de Belas Artes, eleita em 2002. Foi eleita presidente para 2007 da Charles S. Peirce Society, EUA. É também um dos membros do Advisory Board do Peirce Edition Project em Indianapolis, EUA, e um dos membros do Bureau de Coordenadores Regionais do International Communicology Institute.

 

 

Professora Santaella (Foto: arquivo UFG)

 

Foi ainda membro associado do Interdisziplinäre Arbeitsgruppe für Kulturforschung (Centro de Pesquisa Interdisciplinar em Cultura), Universidade de Kassel, 1999-2009. Recebeu o prêmio Jabuti em 2002, 2009, 2011 e 2014, o Prêmio Sergio Motta, Liber, em Arte e Tecnologia, em 2005 e o prêmio Luiz Beltrão-maturidde acadêmica, em 2010. Foi professora convidada pelo DAAD na Universidade Livre de Berlin, em 1987, na Universidade de Valencia, em 2004, na Universidade de Kassel, em 2009, na Universidade de Évora em 2010, na Universidad Nacional de las Artes, Buenos Aires, 2014, na Universidade Michoacana de San Hidalgo, México, 2015 e na Universidade de Caldas, Colômbia, a partir de 2018. Foi pesquisadora associada no Research Center for Language and Semiotic Studies em Bloomington, Universidade de Indiana, em repetidos estágios de pesquisa, especialmente em 1988, pela Fulbright.

 

Nessa mesma universidade, fez pós-doutorado em 1993, pelo CNPq. Desde 1996, tem feito estágios de pós-doutorado em Kassel, Berlin e Dagstuhl, Alemanha, sob os auspícios do DAAD/Fapesp. 258 mestres, doutores e pós-doutores defenderam seus títulos sob sua orientação, de 1978 até o presente, e supervisionou 13 pós-doutorados.

 

Tem 51 livros publicados, dentre os quais 6 são em coautoria e dois de estudos críticos. Organizou também a edição de 26 livros. Além dos livros, Lucia Santaella tem perto de 500 artigos publicados em periódicos científicos no Brasil e no exterior. Suas áreas mais recentes de pesquisa são: Comunicação, Semiótica Cognitiva e Computacional, Inteligência Artificial, Estéticas Tecnológicas e Filosofia e Metodologia da Ciência.

 

Entrevistas realizadas pelo IHU com Lucia Santaella

 

 

Reportagens citando Lucia Santaella reproduzidas pelo IHU

 

 

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