A autocracia é sustentada pela hiperinformação convertida em desinformação. Entrevista especial com Lucia Santaella

Pesquisadora analisa a inter-relação entre o grande volume de informação nas sociedades atuais e como isso impacta e é impactado pela política em sua forma autocrática

Foto: Pixabay

Por: Ricardo Machado | 13 Junho 2022


A cultura atual se caracteriza, ou pode ser explicada, pelo incontornável oxímoro de que a era da hiperinformação se converteu em desinformação. “Aparentemente, estamos expostos ao hiper, mas, sem saber e ironicamente para nosso agrado, estamos enjaulados na mesmice. Assim também trabalham as plataformas de recomendação que com tanta gentileza e até carinho nos ofertam as músicas que nosso coração pede, os filmes que se enquadram em nossa moldura psicológica e os textos que porventura nossa curiosidade procura”, explica a professora e pesquisadora Lucia Santaella em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

Mas, como se pode imaginar, há os efeitos nefastos ao autocentramento que, no final das contas, transforma-se em intolerância. “O segundo passo para a desinformação encontra-se no fato de que o apego pela mesmice produz como efeito colateral a inaceitação do diferente e a incitação de uma destemperança que acaba por transformar as redes em um espaço de guerra alimentada por obscurantismos, raivas e ódios, os quais se constituem no lado mais mortífero dos afetos narcisistas”, complementa.

 

Desse caldo cultural se alimentam os governos autocráticos, designação que tende a explicar melhor o período que vivemos no Brasil. “Regimes autocráticos são muito mais dissimulados do que os regimes totalitaristas, estes mais evidentemente brutalistas. O autocrático mina, pelos vãos e brechas, a sociedade e seus valores, especialmente aqueles que presidem a democracia”, descreve Santaella. “Regimes autocráticos são aqueles que exigem da sociedade, em todos os seus multissetores, que se mantenha em estado de alerta e de defesa”, acrescenta.

 

Maria Lucia Santaella Braga (Foto: Jornal da USP)

 

Maria Lucia Santaella Braga é professora titular no programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Coordena a pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, Diretora do Centro de Investigação em Mídias Digitais - CIMID e Coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos, na PUC-SP. Tem dezenas de livros publicados, dentre os quais está De onde vem o poder da mentira? (Barueri, SP: Estação das Letras, 2021), que integra a Coleção Interrogações. Atualmente, é titular da Cátedra Oscar Sala do IEA (2021-2022).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Com o perdão de a pergunta parecer tola, eu gostaria de começar querendo saber, afinal de contas, o que é a mentira?

 

Lucia Santaella – A mentira pode ter distintas naturezas, entre elas, paradoxalmente, aquela de ser emitida para o bem. Mas, evidentemente, no contexto em que hoje vivemos de fake news e desinformação, não são as variações da mentira que nos interessam, mas, sim, aquelas que são emitidas para fazer o mal. Sob esse aspecto, que pode ser chamado de mentira em si, mentira absoluta ou deslavada, ela é um ato de fala e, com os meios tecnológicos atuais, também pode ser uma produção visual ou audiovisual que tem por intenção enganar, fazer crer em algo que não tem correspondência com a realidade dos fatos ou de suas conjunturas. Em outras palavras, há na mentira uma intenção de distorcer, mascarar ou ocultar os fatos. Por isso, a mentira é o oposto da verdade factual, expressão cunhada por Hannah Arendt.

 

Há sempre um agente da mentira, ou seja, ela pressupõe um agente que pratica a ação de mentir. Mentira não é erro ou engano. Erramos e nos enganamos sem querer, por lapso ou distração, mas não mentimos sem querer. Não há mentira sem que alguém saiba que mente, pois mentir implica que aquele que mente reconheça que esconde a verdade. Mentira também não se confunde com ilusão, como já demonstrou Freud, nem se confunde com o cinismo. Há aí diferenciações sutis que precisam ser discriminadas. São muitas as motivações ou desmotivações psíquicas que podem levar alguém a mentir até o ponto de se transformar em um hábito, mas essa é uma outra questão, que, com alguma probabilidade, poderia ser resolvida no divã.

 

O que cumpre colocar em evidência são as transformações das condições de produção, emissão, transmissão e recepção da mentira desde a emergência da cultura do computador e, especialmente, depois da efervescência das redes sociais, quando, na velocidade intempestiva do compartilhamento e por efeito das bolhas em que as redes nos encapsulam, a mentira é disseminada em fluxos nos quais os seus agentes de produção se ocultam e se dissipam. Por isso, a detecção das origens da mentira passa a ser objeto de investigação.

 

 

IHU On-Line – O que pode nos ajudar a compreender como a sociedade da hiperinformação, forjada nas revoluções tecnocientíficas, converteu-se na sociedade da desinformação?

 

Lucia Santaella – Não poderia haver paradoxo maior do que a conversão da hiperinformação em seu contrário, a desinformação, o grande oxímoro da cultura atual. São muitas as variáveis que levaram a isso. Tratarei das mais relevantes.

 

Hoje, quando atravessamos a passagem da digitalização para a dataficação, a era dos dados, tornou-se claro que o mundo digital nasceu e cresceu para empanturrar-se de dados, como uma garganta pantagruélica que os engole insaciavelmente. De onde vêm os dados, quem são os fornecedores destes? São os usuários, nas postagens que fazem, verbais, visuais, sonoras e audiovisuais, nos aplicativos de suas escolhas. Muitos desses usuários, por vezes, postam em muitos aplicativos ao mesmo tempo, entre eles o Twitter, Facebook, Instagram, LinkedIn, YouTube e agora o TikTok e o Telegram.

 

O mundo digital nasceu e cresceu sob o signo da interatividade, que transformou os antigos receptores de mensagens, que eram produzidos por poucos, em coautores daquilo que buscam em redes de oferta de conteúdos postadas pelos próprios usuários. É uma terra sem começo, nem meio, nem fim, em um chão e céu de todos e de ninguém nos quais cada um é dono do seu pedaço em um universo de dados em expansão. Se assim fosse, não passaria de um expansionismo sem consequências, o que não é o caso.

 

 

Os aplicativos são fornecidos por plataformas, hoje conhecidas como big techs, que são proprietárias e, movidas por profundos interesses econômicos, encontraram um modelo de negócio dos mais rentáveis: rastrear os dados, manipulá-los e processá-los por meio da nova ciência de dados movida a algoritmos de inteligência artificial. Com isso, nossos comportamentos, hábitos, predileções, opiniões e emoções passaram a ser mensuráveis e encapsulados, graças aos metadados, em grupos por similaridade que costumam ser chamados de bolhas. Quer dizer, fornecemos dados para que tenhamos como respostas, de resto, instantâneas, nos fluxos dos aplicativos, e mesmo nos motores de busca, tão só e apenas aquilo que se casa e sintoniza com o que gostamos e queremos. Aí se tem o primeiro passo decisivo da conversão, aliás, invisível a olho nu, da hiperinformação em desinformação. Aparentemente, estamos expostos ao hiper, mas, sem saber e ironicamente para nosso agrado, estamos enjaulados na mesmice. Assim também trabalham as plataformas de recomendação que com tanta gentileza e até carinho nos ofertam as músicas que nosso coração pede, os filmes que se enquadram em nossa moldura psicológica e os textos que porventura nossa curiosidade procura.

 

 

Desinformação

 

O segundo passo para a desinformação encontra-se no fato de que o apego pela mesmice produz como efeito colateral a inaceitação do diferente e a incitação de uma destemperança que acaba por transformar as redes em um espaço de guerra alimentada por obscurantismos, raivas e ódios, os quais se constituem no lado mais mortífero dos afetos narcisistas.

 

Bots

 

O terceiro passo, que não é o último, mas podemos ficar por aqui, consiste na indústria de bots. Os bots que operam em plataformas digitais, quase sempre voltados para finalidades políticas, são softwares desenvolvidos para gerar mensagens automaticamente, defender ideias, agir como um seguidor de usuários e, até mesmo, como contas falsas para ganhar seguidores. Com isso, o volume e a velocidade na corrida dos dados aumentam significativamente.

 

Considerando-se a finalidade política, que tem por intenção distorcer a realidade em prol de interesses quase sempre escusos, os bots encontram nas bolhas os alvos úteis para a disseminação da desinformação. Considerando-se ainda que o modelo de negócios das big techs não se funda no fato de serem plataformas informativas, elas não assumem qualquer responsabilidade e permanecem neutras em relação ao conteúdo que nelas circula. Com isso, a desinformação corre solta nessas plataformas ao sabor de sua própria retroalimentação.

 

 

IHU On-Line – Quais são os efeitos da desinformação na democracia?

 

Lucia Santaella – Tenho sempre um certo constrangimento em falar de temas que são da alçada de especialistas em ciências políticas. Uma especialidade que não tenho, embora não possa me considerar uma leiga. Dado que a pergunta se refere aos efeitos da desinformação, certamente a democracia acaba sendo a grande atingida. Portanto, trata-se de uma pergunta que devo responder, mesmo sem contar com os subsídios da especialidade. Como sou adepta da ética da terminologia de Peirce, para evitar equívocos desnecessários em relação ao sentido em que tomamos a palavra “democracia”, começo por colocá-la no prisma da minha compreensão. Em uma versão simplificada, a democracia liberal é uma construção baseada na separação, em equilíbrio tenso, entre os poderes, sustentada pelo ideal de que governantes e governados podem e devem endereçar-se para decisões razoáveis frente à realidade nos seus múltiplos aspectos.

 

No seu estatuto de democracia representativa, ela se baseia em líderes políticos que, por meio de projetos e planos de governo tornados públicos, segmentam seus eleitores para atingir categorias ou grupos sociais específicos e uma vez vitoriosos passam a ocupar o centro da arena política, mas sempre sujeitos ao jogo, muitas vezes dificultoso, entre opositores e apoiadores. A partir disso, entendo que o funcionamento saudável da democracia depende de cidadãos bem-informados sobre as conjunturas políticas, capazes de fazer escolhas lúcidas, alicerçadas em habilidades mentais e emocionais minimamente comprometidas com os problemas que se apresentam.

 

É, portanto, óbvio, e isso vem sendo muito repetido, que o cenário da desinformação, atualmente em condição de dilúvio e de guerra entre preferências antagônicas, produz efeitos maléficos e nefastos para a democracia. Mas para compreender por que isso assim se dá, precisamos levar em consideração que o fervor das redes vem crescentemente ocupando todos os espaços.

 

Desde que a Web emergiu, as tradicionais esferas políticas públicas e a ética discursiva universalista, estudadas especialmente por Habermas, foram deixando de existir, substituídas pelas comunidades virtuais, pioneiramente discutidas por Howard Rheingold. Não foi preciso muito tempo para que estas também envelhecessem. Hoje, as redes estão transmutadas em trincheiras que levaram ao desaparecimento quaisquer sonhos de um comum solidário tendo em vista o bem coletivo.

 

 

IHU On-Line – A informação nos dias atuais tornou-se uma esfinge a nos desafiar cotidianamente – “decifra-me ou te devoro” –, colocando em jogo não uma questão banal, mas, no final das contas, a própria concepção de democracia. Neste contexto, qual a importância de desenvolvermos competências semióticas para lidarmos nesta conjuntura?

 

Lucia Santaella – A semiótica é uma ciência dos signos, isto é, de todos os tipos de linguagem, ciência capaz de explicar por que e como se dá a produção do sentido e como se desenvolvem os níveis e modos de interpretar a realidade, incluindo nisso a passagem da interpretação para a ética da ação movida por ideais de razoabilidade. Isso é o que reza o pragmaticismo de C. S. Peirce que não se confunde com o imediatismo do pragmatismo tal como este ficou conhecido. O que posso dizer é que as competências semióticas, quando apreendidas com o cuidado paciente que toda filosofia científica exige, podem ajudar, mas, por si, não podem resolver, se é isso o que procuramos. A semiótica não é um “abre-te Sésamo”. Ela implica explorações heurísticas, pois as linguagens são, no mais das vezes, ardilosas. Ardis não podem ser enfrentados com receitas.

 

No que diz respeito à palavra “informação”, sou bastante crítica em relação a ela. Mas desisti de explicitar essa crítica, pois de nada adianta dar murro em ponta de faca. Ela virou uma palavra coringa que todos usam, e, no fim, eu também. Mas devo confessar que assim o faço com certo descrédito. Basta ter lido o livro A informação, de Gleick, um manual em estilo narrativo, para se dar conta de que “informação”, no seu sentido científico original, é uma grandeza física. Os estudos sobre informação nunca conseguiram alcançar a explicação sobre como pode se dar a passagem de uma grandeza física para o campo da significação, este que importa quando nos comunicamos ou tentamos nos comunicar.

 

Assisti uma vez a uma aula de história da ciência em que a professora deu início ao tema da informação com uma enquete em uma sala de uns quinze alunos. A pergunta era: “o que você entende por informação?”. Embora a amostra fosse pequena, já foi representativa da nebulosa semântica em que essa palavra está envolvida. Creio que a entendemos em um nível mínimo consensual que permite que ela continue a ser empregada em conversações e textos correntes. O grande problema, que agora surge, encontra-se no fato de que o termo “desinformação”, no contexto dos dilúvios de mentiras e quase mentiras que correm pelas redes, passou a ser usado não obstante ninguém se dê conta de que essa palavra está, independentemente da deliberação de quem a usa, expandindo o nevoeiro semântico que herdou de seu antônimo “informação”. É em momentos como esse que a semiótica faz falta, pois é ela que nos fornece meios para auscultar os sentidos dos signos.

 

 

IHU On-Line – Aliás, ainda faz sentido pensarmos em democracia em uma sociedade tão atomizada, organizada em bolhas, que às vezes não observa nenhum compromisso com o mundo dos fatos? O que significa falar em democracia hoje no Brasil?

 

Lucia Santaella – Antes de tudo, é preciso denunciar que a democracia no Brasil se encontra em estado de hesitação, na falta de uma palavra melhor. As instituições parecem estar de pé, mas estão sendo abaladas vez e outra pelo poder, como uma espécie de teste de sua força de sobrevivência. Não vou dar continuidade a essa questão para não transformar a minha resposta em um muro de lamentações. Passo para a questão da democracia, como foi tradicionalmente concebida, e que agora se encontra em uma conjuntura de enfrentamento com a canibalização do espírito do comum, justo esse espírito do qual a democracia depende.

 

É claro que as sociedades humanas sempre foram, de um modo ou de outro, conflituosas e agônicas. Entretanto, elas nunca apresentaram o caráter estilhaçado e, ao mesmo tempo, mortiferamente antagônico tanto quanto agora. E tudo isso exibido nas redes, sem quaisquer constrangimentos.

 

Diante disso, não há caminho que possa ser mais improdutivo do que vociferar contra as redes como se fossem a encarnação de uma nova idade das trevas. Também de nada resolve combater a industrialização da vida com armas tradicionais. Melhor seria, de um lado, continuar as iniciativas que já vêm sendo realizadas em defesa do jornalismo ético, da checagem dos fatos e da busca de regulamentação, à luz de países que estão mais adiantados nessa matéria. De outro lado, são as bases da democracia que devem ser lúcida e desapaixonadamente repensadas. Mas a dianteira dessa tarefa deve ser tomada pelos cientistas políticos, sem negar que se trata de uma empreitada na qual também devemos nos engajar com o filão de contribuição que cada um de nós pode oferecer. Defendo que clarear as brechas das contradições, hoje agudas, é um modo de contribuir: bem compreender como rota para melhor agir.

 

 

IHU On-Line – Como restituir os fatos enquanto mediadores do mundo concreto? De que maneira fazer isso em um mundo radicalmente mediado por dispositivos tecnológicos de comunicação e informação?

 

Lucia Santaella – Aprendi com Arendt, que complemento com C. S. Peirce, que os fatos são a própria instanciação do concreto. As mediações dos fatos são realizadas pelas notícias, pelas narrativas sobre os fatos ou pelos discursos sobre os fatos, discursos que, quando afastados temporalmente destes, transformam-se em história. Fatos são a carnadura da realidade. Fato é aquilo que acontece no tempo e no espaço. Fatos existem. Para serem conhecidos e interpretados, dependem dos jornalistas, essa profissão que é responsável pela produção da notícia, a qual, quando eticamente conduzida, busca uma fidelidade tanto quanto possível aproximada daquilo que ocorreu. É a isso que Arendt brilhantemente deu o nome de “verdade factual”. Há uma verdade do fato em si, o único tipo indiscutível de verdade, que a notícia tem por tarefa traduzir com todos os cuidados da investigação. Chamo atenção para a modalização “tanto quanto possível” porque toda notícia, discurso ou quaisquer outros tipos de interpretação dos fatos depende da mediação da linguagem ou, para falar semioticamente, da mediação de signos de quaisquer espécies que podem ser não só verbais, discursivos, mas também imagéticos e audiovisuais.

 

A mediação é sempre, em primeira instância, semiótica, aquela que se realiza por signos, por linguagem, uma lição que nos foi dada por Umberto Eco quando afirmou que não há comunicação sem signos. Entretanto, para serem transmitidos e cumprirem suas funções sociais, signos precisam de dispositivos tecnológicos que funcionam como uma segunda camada mediadora. Isso já começou com o aparelho fonador na oralidade. Mas, sem irmos muito longe, os dispositivos tecnológicos de comunicação com suas linguagens próprias (“o meio é a mensagem”) começaram a crescer a partir da revolução industrial: telégrafo, fotografia, cinema, equipamentos mais sofisticados para a impressão etc., e então surgiram os dispositivos de difusão, a saber, o rádio e a televisão.

 

O grande abalo viria com a revolução digital e as formas de cultura, sempre ambivalentes, entre benefícios e externalidades negativas, que ela trouxe e que se transformam de modo cada vez mais vertiginoso. Tanto é vertiginoso que dos anos 1990 a 2022, em trinta anos, saltamos da midiatização para a digitalização até chegarmos agora às plataformas de dataficação e de vigilância, as quais estão nos mergulhando em profundos paradoxos e que vêm sendo fartamente estudadas contemporaneamente. Dentre os paradoxos, o mais evidente, que coincide com a desinformação, é aquele das guerras entre bolhas da Web, alimentadas pelo preconceito, o insulto, as discriminações. Enfim, o que o ser humano tem de pior tornou-se tão flagrante que perigosamente pode nos levar a crer que se perdeu aquilo que o humano tem de melhor e que poderia garantir a sua decência enquanto espécie.

 

 

IHU On-Line – Por que Hannah Arendt, que escreveu, entre tantos outros textos e obras, As origens do totalitarismo e Verdade e Política, é uma autora que nos ajuda a compreender o atual momento político do Brasil?

 

Lucia Santaella – O pensamento de Hannah Arendt tornou-se um dos mais fundamentais para entendermos as crises políticas pelas quais passam várias partes do mundo. A obra de Arendt é uma prova de que pensamento relevante é aquele que resiste à passagem do tempo, que sobrevive à corrosão do tempo. Tanto isso é verdade que, depois de décadas, somos obrigados a reler sua obra com os olhos do presente, especialmente no Brasil, em que testemunhamos a existência de um regime autocrático. Regimes autocráticos são muito mais dissimulados do que os regimes totalitaristas, estes mais evidentemente brutalistas. O autocrático mina, pelos vãos e brechas, a sociedade e seus valores, especialmente aqueles que presidem a democracia. Regimes autocráticos são aqueles que exigem da sociedade, em todos os seus multissetores, que se mantenha em estado de alerta e de defesa.

 

IHU On-Line – Muito se fala, em especial nos EUA, em “letramento midiático”. Como a senhora vê essas proposições?

 

Lucia Santaella – A expressão “letramento midiático” é duplamente anacrônica e obsoleta. Primeiro porque a mera palavra “letramento” revela um apego às letras e à alfabetização, depois de mais de um século em que a Galáxia de Gutenberg foi gradativamente, e por completo, perdendo a sua hegemonia. Após o reinado da cultura dos livros, veio o ápice da cultura massiva, que passou a ser chamada de mídias tradicionais, convencionais, mainstream etc. A hegemonia dessa cultura massiva também começou a ser minada na era das mídias, ou seja, lá pelos anos 1990, quando se falava em velhas mídias e novas mídias. Contudo, essas divisões foram, então, abalroadas pela cultura digital, hoje dataficada. A velocidade das transformações tecnoculturais ou sociotécnicas, para usarmos uma expressão mais consensual, é, sem dúvida, atordoante. Entretanto, a sequência acima nos deixa ver que o adjetivo “midiático” corresponde a um segundo aspecto do anacronismo. A “midiamania” respondeu justamente ao espanto provocado pela emergência da Web, nos anos 1990, uma emergência que, na época era chamada de “novas mídias”. No entanto, a Web, que foi chegando sorrateira, hoje esparramou-se por todas as atividades humanas até nos colocar na condição “inlife” em que hoje vivemos. Para enxergar essa condição, não há nada pior do que lançar nostalgicamente a ela um olhar de um passado que, embora recente, já se foi, sem que tenha desaparecido completamente, pois sempre ficam rastros. Eis aí a complicação difícil de destrinchar.

 

 

IHU On-Line – Qual a importância, por outro lado, do desenvolvimento de competências educacionais, literárias, musicais, de poesia etc. para a construção de um pensamento crítico?

 

Lucia Santaella – Há uma frase de Valéry que gosto de parafrasear: Por que um discurso político tem que ser mais importante do que uma sequência em si bemol maior? A resposta é simples: quando a política se torna mais importante do que todas as outras dimensões da vida humana, é porque a política vai indo muito mal. Se ela fosse bem, o que a nós se apresenta, infelizmente, como um sonho sempre adiado, as outras dimensões formadoras da sensibilidade humana, as artes, a música e a literatura, teriam o espaço de predominância que elas merecem para a constituição de tudo aquilo de que o Sapiens poderia se orgulhar.

 

Quanto à educação, só a menção a essa palavra no Brasil coloca-nos em estado de sofrimento mental e psíquico. A tragédia educacional no país é endêmica e a pandemia, além de outras feridas, escancarou esta como uma chaga irremediável. Um país vale a medida exata do valor que concede à educação. Sem mais palavras.

 

 

IHU On-Line – Como a senhora vê o futuro da democracia no Brasil?

 

Lucia Santaella – Que pergunta difícil! Chega a me deixar zonza, especialmente porque me faltam conhecimentos históricos, políticos e conjunturais sobre a questão, quer dizer, intimidade com análises e estatísticas específicas, familiaridade com especialistas, requisitos que poderiam me permitir lançar um voo de previsão para o futuro sobre um tema sobre o qual falta-me a densidade de uma formação. São precauções que temos que tomar nesta era da desinformação, para não cair no mesmo engodo daqueles que dão palpites desinformados enquanto se queixam da desinformação.

 

Dizem os futurologistas que a única certeza que podemos ter acerca do futuro é que ele será diferente do que imaginamos. O que vale dizer é que percebo uma certa ansiedade com o tema do futuro no país. Aliás, essa sempre foi uma característica da nossa cultura. Talvez porque, de um lado, temos muito pouco do que nos orgulhar do passado e, de outro, o presente está sempre em estado de crise, somos PhD em crises. Consequentemente, passamos a sonhar com um futuro que seja melhor do que foram o passado e o presente. O perigo é cair em utopias acríticas que, quando projetadas sobre a realidade sociopolítica, acabam por redundar não só em tiranias, mas também em matanças coletivas. Não faltam exemplos disso na história e também na literatura, da qual é exemplar o romance Bend Sinister, de Vladimir Nabokov. Vale a pena ler.

 

Leia mais