Fontes ouvidas pela reportagem dão mais uma pista sobre o que pode estar por trás dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips no Vale do Javari.
A reportagem é de Elaíze Farias e Kátia Brasil, publicada por Amazônia Real, 21-06-2022.
Mantidos sob sigilo por receio de serem mortos, indígenas e não indígenas ouvidos pela Amazônia Real revelam que Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, estaria devendo ao menos 80 mil reais para o atravessador de pescado e caça peruano Rubens Villar Coelho, o “Colômbia”. O valor seria o resultado de “prejuízos” que “Pelado” e outros pescadores e caçadores tiveram com carregamentos de peixes e animais silvestres apreendidos por causa do monitoramento da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), assessorada pelo indigenista Bruno Pereira na Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas.
O território, na fronteira com Peru, foi homologado em 2001 e as atividades de caça, pesca e exploração de madeira por não indígenas são proibidas e constituem em crimes ambientais. Na TI Vale do Javari, vivem sete povos contatados e de recente contato e isolados. Muitos ribeirinhos habitavam a TI e, com a homologação ,sofreram a desintrusão (foram obrigados a sair), permanecendo nas vizinhanças, mas sempre mantendo uma relação tensa e de pouca amizade com os indígenas.
A dívida de 80 mil reais de “Pelado” com “Colômbia” pode ter sido o estopim para que o primeiro, já acusado pela Polícia Federal (PF) como o executor da morte do indigenista e do jornalista, planejasse a morte da dupla. Uma das fontes ouvidas pela reportagem confirmou que “Pelado” andava revoltado pelas ações de monitoramento coordenadas por Bruno Pereira. “Eles tinham dívidas de equipamentos. Eles mesmo falaram isso uma vez na comunidade”, disse.
Bruno e Dom foram mortos no dia 5 de junho de forma brutal: a tiros, queimados e esquartejados, conforme a confissão de “Pelado”. Antes, conforme publicou a agência, o indigenista, o jornalista e indígenas da equipe da EVU foram ameaçados pelo pescador e mais dois homens na entrada da terra indígena.
No fim da tarde do dia 9 deste mês, quando a operação de buscas das Polícia Federal, Forças Armadas e demais órgãos estavam no Vale do Javari, uma embarcação lotada de pirarucus, distribuídos em seis caixas de isopor com gelo, foi apreendida pelos indígenas da EVU, conforme noticiou a agência com exclusividade. O barco pertencia a “Pelado” e estava escondido por folhagens quando foi descoberto pelos indígenas. A reportagem fotografou a embarcação.
No dia 23 de março deste ano, uma embarcação de motor 150 HP foi vista por indígenas da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) saindo da TI Vale do Javari. Segundo relatório da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, principal organização do território) do dia 12 de abril, o barco pertencia a uma pessoa chamada “Jane”. Seu outro companheiro foi identificado como “Beré”.
“Os pescadores e o Colômbia já estavam com raiva porque o barco 150 (HP) tinha sido apreendido. O que soubemos é que eles se juntaram na base da pistolagem para roubar a ‘balieira’ (termo local da embarcação) de volta. Tempos depois, mandaram um 60 (motor) para as comunidades ribeirinhas. Esse motor mais rápido não é usado por pequenos pescadores. Esse mesmo barco de motor 60 foi usado pelos pescadores para matar o Bruno. Uma balieira desse tamanho não é comum na região”, disse uma das fontes indígenas da Amazônia Real, a respeito dessa apreensão e dos desdobramentos dela.
Conforme o relatório da Univaja, a EVU comunicou a presença dos pescadores ilegais no dia 23 de março saindo da terra indígena a agentes da Força Nacional de Segurança Pública (que ficam na base do rio Itacoaí/Ituí) e da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, da Funai, que interceptaram o barco no porto de Atalaia do Norte. No mesmo dia, os infratores foram encaminhados para a 50ª Delegacia Interativa de Atalaia do Norte e prestaram depoimento.
No barco, foram apreendidos 25 tracajás, 2 tartarugas, 300 quilos de carne de queixada salgada e 400 quilos de pirarucu. Cinco dias antes, em outro avistamento da EVU, “oito integrantes armados” estavam em atividade dentro da TI com mais de 900 quilos de sal. Segundo a Univaja, em ofício, todos os detalhes dessas operações foram encaminhados para autoridades públicas, como Polícia Federal e Ministério Público Federal.
O barco e o motor foram levados por policiais civis para a balsa da prefeitura do município de Atalaia do Norte e “desapareceu”. A suspeita é que, na realidade, o barco foi recuperado pelos pescadores, a partir da intervenção de pessoas ligadas a “Colômbia”, de acordo com fontes ouvidas pela reportagem.
“Esse tanto de sal que foi apreendido era para conservar a carne. Carne de queixada, mutum, veado, pirarucu. Tudo eles salgam e depois enviam para a mão de quem financia eles”, contou uma fonte indígena à agência.
Barco carregado de pirarucu apreendido pela EVU no dia 9 de junho e que seria de “Pelado” (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
“Pelado” e outros ribeirinhos que vivem e atuam em comunidades na divisa da TI Vale do Javari estão longe de serem pescadores de subsistência. Fontes ouvidas pela reportagem detalharam os custos operacionais envolvidos na caça ilegal de grandes animais, como anta e queixada (porco do mato) ou na pesca do pirarucu. É por isso que há a necessidade de um grande patrocinador para a atividade ilegal.
A pesca do pirarucu em grande quantidade dura até 15 dias na TI Vale do Javari. Os custos incluem sal e gelo (para salgar e conservar a carne dos animais abatidos) e muitos tambores de gasolinas para abastecer o barco, que deve ser de grande porte, em geral com motor 60 HP ou 150 HP.
No mercado local, um tambor de gasolina custa em média 1.560 reais. “Um tambor para motor veloz como destes pescadores dura no máximo oito horas. Para uma pesca grande e de muitos dias, são vários tambores”, disse a fonte.
Já uma malhadeira para capturar o maior peixe da bacia amazônica custa em torno de 5 mil a 7 mil reais no mercado de Atalaia do Norte. Para a captura, é preciso ao menos de oito a dez malhadeiras para jogar no lago e assim “cercar” o pirarucu, conforme informações apuradas pela reportagem.
“Um pequeno pescador de Atalaia do Norte que pesca para subsistência não compra esse tipo de malhadeira. A malhadeira dele é simplesinha, para peixe miúdo, pequeno, que custa de 90 a 120 reais. Ele também não usa uma embarcação grande. Usa um ‘pec pec’, que é um barco pequeno de 3, 5, 9 HP e é mais lento. Ele não tem recurso para comprar tanta coisa. Esses pescadores que invadem a terra indígena tiram dinheiro de onde para financiar a pesca e a caça? Tem alguém por trás que solta o dinheiro. E é pessoal do narcotráfico”, disse outra fonte.
A Amazônia Real procurou a Polícia Civil do Amazonas e a Secretaria de Segurança Pública do Estado para pedir informações sobre o depoimento das pessoas apreendidas e ouvidas na Delegacia de Atalaia do Norte, conforme informações da Univaja, e sobre o que aconteceu com o barco desaparecido. A assessoria da Polícia Civil disse que tentou obter informações junto ao delegado Alex Perez, da 50o. Delegacia Interativa de Atalaia do Norte, mas não conseguiu se comunicar com o policial por meio de telefone e mensagem até o momento.
Cidade de Atalaia do Norte é o cenário da operação de buscas aos criminosos (Foto: José Medeiros/Agência Pública)
O prefeito de Atalaia do Norte, Denis Paiva (União Brasil), indagado sobre o que teria acontecido com o barco sumido, disse para a reportagem procurar a Polícia ou quem passou a informação. Em seguida, disse que a prefeitura não tem porto e que a “gestão passada não deixou nada, a cidade está destruída”. Indagado sobre onde os barcos ficam atracados, ele disse que pertence ao “dono do Voyager”. Sobre o fato de o barco apreendido no dia 23 de março ter sido enviado para a balsa da prefeitura e depois ter sumido, ele disse apenas que “não tem conhecimento sobre essa canoa”.
“A prefeitura não tem porto. Não tenho vergonha de dizer. A balsa que temos é da prefeitura, onde fica o material de viagem, de ferramenta. Tem um vigia que cuida da nossa embarcação. Não tenho informação sobre essa embarcação apreendida. A Univaja fica insistindo em querer fazer denúncia vazia”, rebateu.
Denis Paiva chamou atenção no dia da prisão de “Pelado”, quando acompanhou policiais na comunidade São Rafael. Perguntado sobre o motivo de ter ido, disse à reportagem que foi porque levou a polícia e ajudou com a equipe da Defesa Civil.
“Fui porque sou o prefeito. Nós é que conseguimos a embarcação para a Polícia Civil. Levamos 40 agentes. A gente é que dava hospedagem e alimentação. O dinheiro era para investir na população de Atalaia, mas colocamos nessas atividades porque também queremos que seja esclarecido (o crime)”, disse ele.
Foto: Giovanny Vera/Amazônia Real
A PF descartou a suspeita de um mandante para as mortes do indigenista e do jornalista. Dos oito suspeitos identificados pelos crimes, estão presos os pescadores Amarildo da Costa de Oliveira, o “Pelado”, que confessou a autoria dos crimes, e seu irmão Oseney da Costa de Oliveira, o “Dos Santos”, que nega envolvimento no duplo homicídio. O terceiro acusado é Jefferson da Silva Lima, o “Pelado da Dinha”, que se entregou no sábado (18) e confirmou participação nos crimes. Todos estão presos na Delegacia de Polícia de Atalaia do Norte.
Os outros cinco suspeitos foram identificados por terem participado da ocultação dos cadáveres, mas permanecem livres e os nomes não foram revelados pela polícia. “Pelado” foi apontado por uma testemunha ouvida pela Amazônia Real como a pessoa que ameaçou Bruno, Dom e mais nove indígenas da vigilância da Univaja no dia 4 de junho, após ser flagrado tentando invadir a terra indígena. Dois homens não identificados que estavam com “Pelado”, também apontaram as espingardas.
Nos minutos finais de vida, Dom teria filmado a ação e Bruno levaria a denúncia no dia 6 de junho à PF. Até o momento, esses dois homens não foram citados pela PF se eles estão entre as oito pessoas suspeitas e apontadas pelas investigações.
Conforme a testemunha, no dia 5 de junho, Bruno e Dom deixaram a base da EVU no Lago Jaburu, distante da comunidade São Rafael, cerca de 15 minutos pelo rio Itacoaí. Bruno pilotava a lancha com motor 40 HP e dispensou a segurança dos indígenas.
Em entrevista à reportagem, o pescador Jânio Freitas de Souza, última pessoa conhecida com quem Bruno falou antes de seu sumiço, disse que o indigenista chegou alegre na comunidade São Gabriel e fazendo piada. “Ele passou uns oito minutos lá na casa do ‘Churrasco’. Passou aí na frente e não me viu. Eu até brinquei com ele, dizendo que ele não me viu porque eu sou pequeno”, narra Jânio, dizendo que o indigenista e o jornalista estiveram na comunidade por volta das 7h20 de domingo. Daí desapareceram. Jânio e Manoel Vitor Sabino da Costa, o “Churrasco”, tio de “Pelado”, chegaram a ser detidos, mas foram liberados pela Polícia Civil no dia 6 de junho.
No dia seguinte, Amarildo da Costa de Oliveira, o “Pelado”, foi preso por porte de munição de uso restrito e drogas na comunidade São Gabriel, vizinha de São Rafael. Nos dias seguintes, a PF apreendeu durante as buscas roupas e objetos pessoais de Bruno e Dom. “Pelado” confessa os crimes. Eles teriam matado, esquartejado e enterrado os corpos do indigenista e do jornalista.
Só no dia 15 de junho é que os corpos de Dom e Bruno foram encontrados numa região de difícil acesso, mas próximo à comunidade São Gabriel, onde mora “Pelado” e sua família.
No sábado (18), o Instituto Nacional de Criminalística (INC) confirmou que os restos mortais eram de Bruno Pereira. A confirmação ocorreu com base no exame de odontologia legal (arcada dentária). O laudo indicou que o indigenista foi alvo de disparos de três tiros de arma de fogo com munição típica de caça: dois no tórax/abdômen e um face/crânio (cabeça). O jornalista foi atingido com na região abdominal e torácica.
Flutuantes pertencentes ao Colômbia em Islândia (Peru) na fronteira com Benjamin Constant (Foto: reprodução redes sociais)
Desde o início do desaparecimento de Dom Phillips e Bruno Pereira, circulam nomes como “Churrasco”, Manoel Vitor Sabino da Costa, tio de “Pelado”, “Caboclo”, Nei, e “Colômbia”, todos apontados como tendo alguma ligação com o caso. Mas “Colômbia” seria o mandante, conforme denúncias, e estaria envolvido com ao tráfico de drogas.
Ao desenvolver um trabalho de combate à pesca e caça dentro da TI Vale do Javari, Bruno Pereira contrariou os interesses do tráfico de drogas, que financia carregamentos de peixes, entre eles, o valioso pirarucu, a caça de animais silvestres, que são roubados de dentro do território. A PF investiga um possível uso da pesca como forma de lavagem do dinheiro do narcotráfico.
“Colômbia” é o peruano e comerciante Rubens Villar Coelho, que começou atuando na divisa do Brasil, Peru e Colômbia como pescador. “Ele prosperou na pesca, saiu da função de pescador para ser patrão e uns anos atrás passou a comprar pescado e vender pescado para Letícia”, a maior cidade colombiana da tríplice fronteira.
Essa declaração é de uma das pessoas que a reportagem conversou essa semana sobre o “Colômbia”. “É o comprador oficial. Passou a financiar muitas pessoas, muita gente pescando sob sua tutela, gente pescando para ele direto ou indiretamente”, disse outra fonte.
Hoje os negócios de “Colômbia” se dividem entre a cidade peruana de Islândia, e a brasileira Benjamin Constant, vizinha de Atalaia do Norte, onde ele tem influência política e moradia. “Ele tem uma estrutura muito grande. É dono de muitas embarcações, é dono de uma balsa flutuante, onde armazena todo o pescado que vem do Vale do Javari, da terra indígena”.
Em 6 de setembro de 2019, o indigenista Maxciel Pereira dos Santos foi morto a tiros em frente à sua família em Tabatinga, cidade brasileira vizinha à Atalaia do Norte. Dias antes, ele tinha recebido ameaças de morte de caçadores por sua atuação em defesa da Terra Indígena Vale do Javari.
“Colômbia”, que foi apontado como mandante do crime, nunca prestou depoimento na PF. Mas um fato estranho aconteceu: “Ele se mudou, não sei se foi uma questão estratégica, para o lado peruano. Quem passa lá na balsa do ‘Colômbia’, ele tem quatro seguranças”.
Outra fonte conta que “Colômbia” se envolve nas eleições municipais brasileiras. Conforme a Amazônia Real apurou junto ao site do TSE, Rubens Villar Coelho forneceu material de campanha na eleição do candidato a vereador nas eleições de 2020. Ele recebeu um pagamento de 3.989,55 reais do vereador Bruno Barbosa (Republicanos) eleito com 647 votos.
Na eleição, Bruno declarou que é servidor público municipal com ensino superior completo e patrimônio declarado de 204 mil reais. Bruno Barbosa é genro do presidente da Federação dos Trabalhadores da Pesca e Aquicultura do Amazonas, João Vieira da Silva, conhecido como “Negão”, e que foi vice-prefeito de Benjamin Constant na gestão municipal passada.
Silva esteve presente numa reunião liderada pelo deputado federal Silas Câmara, na qual acusou a mídia que acompanha as investigações das mortes do indigenista e do jornalista de “sensacionalista”, como divulgou a Agência Pública.
A reportagem procurou o vereador Bruno Barbosa por telefone para ele falar sobre a participação de Rubens Villar Coelho na campanha de 2020. “Não conheço ele (o Colômbia)”. Estou dentro do cartório, você pode me ligar depois”, disse o vereador, que não atendeu mais o celular.
Silas Câmara na reunião com os pescadores em Atalaia do Norte (Foto: José Medeiros/Agência Pública)
Silas Câmara é o presidente do partido Republicanos no Amazonas e integra a base evangélica que apoia o governo de Jair Bolsonaro. Em 29 de novembro de 2021, Silas esbravejou de “terrorismo” a ação da PF contra o garimpo ilegal de ouro na foz do rio Madeira, no Amazonas.
Na reunião com pescadores de Atalaia do Norte no último sábado (18) passado, Silas, que é vice-presidente da Frente Parlamentar da Pesca, manifestou solidariedade às famílias de Dom e Bruno, mas disparou: as mortes foram “fato isolado”.
Antes, no dia 13 de junho, durante sessão do Plenário da Câmara dos Deputados, o deputado Silas Câmara pediu uma atuação mais efetiva da PF, mas culpou as vítimas pelo crime barbaro. “Conheço o sofrimento e a logística da região, sei que tudo é muito complexo. Parece um drama dizer isto, mas a forma como os dois se locomoveram naquela região foi, no mínimo, imprudente. Porém, deve-se adotar, de fato, uma estratégia na região para a segurança das pessoas que lá se locomovem”.
No domingo (19), as buscas com o apoio dos indígenas da região e dos integrantes da Unijava, localizaram a lancha que Bruno Pereira e Dom Phillips viajavam. A embarcação estava submersa a uma profundidade de 20 metros de profundidade. O motor 40 HP estava amarrado junto à lancha, que recebeu sacos de terra para se aprofundar mais rápido, como contou “Pelado” à PF.
Lancha usada por Bruno e Dom foi recuperada e levada para Atalaia do Norte (Foto: José Medeiros/Agência Pública)