20 Junho 2022
Os assassinatos de Bruno Pereira e de Dom Phillips são “um reflexo da violência que a Amazônia passa. Não é o primeiro caso. No ano passado tivemos o caso do rio Abacaxis, onde foram assassinados diversos indígenas, que até hoje não se solucionou. Desapareceu da mídia, como vai desaparecer daqui a pouco o caso do Bruno e do Phillips também. Esse modo de avançar nas terras indígenas, essa pesca predatória que acontece na região e o garimpo que acontece na região têm levado a uma violência muito grande. Uma violência em relação aos povos indígenas, mas também uma violência em relação às pessoas que têm procurado acompanhar a situação. A impunidade tem aumentado a violência”.
A reportagem é de Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, publicada por Tutaméia, 17-06-2022.
É o que afirma dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus e recém nomeado cardeal pelo papa Francisco. Nesta entrevista ao Tutaméia, ele fala das razões da violência, comenta as falas de Bolsonaro –“não condizentes com o que significa ser brasileiro”—e questiona declaração recente do ministro da Defesa:
“Ora, as Forças Armadas não precisam ser prestigiadas. As Forças Armadas são do Estado brasileiro. Significa que elas estão a serviço do estado brasileiro. O que as Forças Armadas têm a ver realmente com a justiça eleitoral?”.
Para dom Leonardo, “o momento da eleição vai ser decisivo”. “Nós não queremos garantir uma bancada católica. Nós queremos garantir uma bancada que realmente seja ética, que esteja interessada no Brasil, que tenha uma preocupação em relação aos pobres, que esteja disposta a dar um outro rosto ao Brasil”.
Na sua visão, há uma tensão no país. “É importante que nós não nos deixemos agredir”, alerta. Na conversa com Tutaméia, ele analisa o avanço das igrejas evangélicas na Amazônia, avalia as mudanças que o papa Francisco está realizando na igreja católica e fala de seu próximo encontro com o sumo pontífice (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no Tutaméia TV).
Duas vezes secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e doutor em filosofia, dom Leonardo aponta:
“Devemos ser sinal de esperança. Não podemos desanimar diante das dificuldades. Assim como não desanimamos no momento da pandemia, mas nos solidarizamos e soubemos ser tão fraternos. Deveríamos sempre de novo acender a esperança em nós. Com toda a violência que existe, com as agressões que existem, com as guerras, não devemos perder a esperança na humanidade, num mundo melhor.”
A seguir, alguns trechos da entrevista:
“Eram duas pessoas profundamente comprometidas com a verdade, comprometidas com o futuro, com o futuro desses povos. É uma região onde avança cada vez mais a violência. A mídia, finalmente, começou a mostrar a violência que acontece”.
“Não são as únicas pessoas. Teve essa repercussão porque tinha um estrangeiro. Um estrangeiro da Europa. Talvez se fosse de uma outro país não tivesse essa repercussão. É uma aflição, porque vejo crescer a violência. Não só no interior, mas também da cidade de Manaus”.
“As declarações do presidente não me parecem muito condizentes com a aflição que devem estar sentindo as famílias dessas duas pessoas. Mas também não me parecem muito condizentes com o sentido do que significa ser brasileiro, muito menos do que significa uma relação digna em relação aos povos indígenas e o cuidado com o meio ambiente. Assusta a demora em começar a acompanhar”.
“A violência muito grande, não se fiscaliza. Roraima tem um número assustador de garimpos, e não se faz quase nada”.
“A impunidade tem aumentado a violência. Quando não existe respeito, existe a ganância, a destruição dos povos indígenas. Há necessidade de a lei agir, a justiça agir. Aqui está faltando fiscalização e punição”.
“É claro que, quando você escuta umas declarações, você tem a sensação de que agora dá para fazer, que não vai acontecer nada. Isso ajuda a uma expansão muito grande da violência. Na nossa região e em outras terras indígenas também. Espero que haja uma ação mais efetiva”.
“Os povos indígenas estão cada vez estão mais organizados, tem mais palavra, estão se manifestando”.
“Esse momento da eleição vai ser decisivo. Esse momento de eleição é muito importante. Estamos incentivando os leigos a participar da política e se candidatarem. Nós não queremos garantir uma bancada católica. Nós queremos garantir uma bancada que realmente seja ética, que esteja interessada no Brasil, que tenha uma preocupação em relação aos pobres, que esteja disposta a dar um outro rosto ao Brasil”.
“Um rosto de mais equilíbrio. Há pessoas que têm um bom modo de viver e pessoas passando fome em Manaus. É um desequilíbrio muito grande. Esse rosto é o rosto das políticas públicas em benefício aos pobres”.
“Não se trata apenas de dar dinheiro. É mudar esse rosto, que é um rosto econômico ou financeiro. Quando o governo vai se tornar de novo um rosto da nossa humanidade, isto é, vai cuidar do humano, não cuidar apenas do aspecto financeiro-econômico”.
“Esses interesses econômicos que existem precisam mudar. O interesse econômico deve ser o interesse do bem comum, do bem de todos, para que todos possam participar ativamente da vida social, para que todos possam ter a dignidade de viver, a dignidade da saúde, da educação”.
“O que me preocupa em relação ao judiciário, especialmente em relação ao supremo, não pelo que se diz a respeito dos ministros, mas a diminuição em relação à instituição. É um ataque a uma instituição essencial para a sociedade brasileira, para a nação”.
“Ainda mais quando se diz que não cumprir o que o Supremo determinar. Isso é gravíssimo”.
“Eu não sou de ver noticiário. No tempo do processo da Lava Jato, eu fiquei um pouco enojado do modo como se apresentavam sempre os processos e as notícias. Fiquei muito enojado com o modo que se fazia. Não se buscava a verdade na notícia. Então, não assisto mais noticiário. Procuro ver outros modos de acompanhar o que está acontecendo”.
“Existe uma tensão. É importante que nós não nos deixemos agredir. Não se deixar levar pela agressão é uma possibilidade de oferecer à sociedade um espírito mais distendido”.
“Não sei se existe hoje ambiente para um golpe. Em 64, eu era um adolescente de 14 anos. Naquela época, fomos levados para rua para rezar o terço, quase como um agradecimento pelo golpe. Não levou muito tempo, os bispos, a igreja começou a acordar, quando começaram a bater nas portas e começaram a aparecer as mortes, as prisões, as agressões”.
“O trabalho todo que nós temos que fazer hoje é não criar um ambiente de agressividade, não se deixar tomar pela agressão. E deixar o ambiente de tal forma que não haja razão para dizer: ‘Não, é preciso tomar o poder’. Tenho a impressão que hoje a sociedade está um pouco mais acordada. Existe hoje uma consciência maior”.
“É claro que ainda não existe uma consciência suficiente em determinadas camadas no sentido da preservação da democracia. Os interesses econômicos, às vezes, são muito grandes. Então, se houver possibilidade de ganhar mais com esse governo, então se vai para esse lado. Eu penso que nós, que queremos cuidar do país, temos que cuidar da democracia”.
“Existem igrejas evangélicas que são profundamente evangélicas, conforme o evangelho. Existem igrejas evangélicas que estão mais interessadas no ganho, no dinheiro do que no evangelho mesmo. Existem também as igrejas chamadas históricas, luteranas, anglicanas, essas em menor número aqui”.
“As igrejas evangélicas tem crescido bastante. O que me preocupa em relação às igrejas evangélicas é a questão da cultura indígena, que evangelho está sendo levado”.
“A igreja católica, no passado, teve os seus erros no modo de evangelizar. Não evangelizou por atração, mas quase por imposição. E hoje existe reação por causa disso. Hoje, a igreja católica está muito mais voltada ao diálogo, muito mais atenta”.
“O que preocupa é quando nós queremos anunciar o evangelho e começamos a achar que os ritos deles, os cantos, o modo de viver deles tem tudo a ver com o diabo, com pecado. Não conseguem entender uma cultura que é decisiva para a continuidade e sobrevivência de um povo. Isso é destrutivo porque perdem as suas raízes”.
“Se o cardeal é o que ajuda o papa, com isso ele tem também, no meio social, uma representatividade no sentido da fala, de presença. Sinto que a sociedade está vendo assim”.
“Se nos deixarmos guiar pela esperança, nós conseguiremos fazer com que a humanidade caminhe para um respeito maior, para uma convivência melhor, que haja menos ganância, menos destruição, menos pobreza e nos deixemos guiar pela fé”.
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“É preciso dar um outro rosto ao Brasil”. Entrevista com Dom Leonardo Steiner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU