07 Junho 2022
"A forma como atualmente administramos e usamos esses recursos naturais está ameaçando a saúde e a sobrevivência contínua de muitas espécies na Terra, incluindo a nossa", escreve José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 06-06-2022.
“A floresta precede os povos. E o deserto os segue”
François-René Chateaubriand (1768-1848)
Está cada vez mais difícil e caro produzir alimentos no mundo, pois é impossível continuar aumentando o banquete para um número cada vez maior de comensais. A pandemia da covid-19 e a guerra na Ucrânia são fatores conjunturais, mas há fatores que dificultam a produção de bens de subsistência e são estruturais, tais como a degradação dos solos, o pico do petróleo e a crise ambiental e climática. É ilusão achar que há grãos suficientes no mundo para alimentar a crescente população global. Os custos aumentam e a oferta não acompanha a demanda. A época da comida barata acabou.
Os tecnófilos cornucopianos costumam justificar o aumento do preço dos alimentos com base nos fatores conjunturais e defendem a ideia de que a “engenhosidade humana” é sempre capaz de encontrar soluções para aumentar a produção e a oferta de alimentos. Contudo, o índice de preços da FAO que apresentou o menor valor na última década do século XX, mudou a tendência e tem registrado aumentos sucessivos ao longo do século XXI.
A produção de alimentos aumentou muito nas últimas décadas, mas às custas da degradação dos solos e do aumento da poluição da terra, das águas e do ar. E o pior, os danos humanos à terra do planeta estão se acelerando, com até 40% dos solos agora classificados como degradados, enquanto metade da população mundial está sofrendo os impactos.
O relatório da ONU, “The Global Land Outlook” (UNCCD, 27/04/2022), registra que 52% do total das terras agricultáveis estão degradas e, globalmente, os sistemas alimentares são responsáveis por 70% do uso da água doce, 80% do desmatamento, 29% das emissões de gases de efeito estufa, 70% da perda de biodiversidade terrestre e 50% da perda de biodiversidade marinha, conforme mostra a figura abaixo.
O relatório mostra que os recursos da terra – solo, água e biodiversidade – fornecem a base para a riqueza das sociedades e das economias. Eles atendem às crescentes necessidades e demandas por comida, água, combustível e outras matérias-primas que moldam os meios de subsistência e estilos de vida da população mundial.
No entanto, a forma como atualmente administramos e usamos esses recursos naturais está ameaçando a saúde e a sobrevivência contínua de muitas espécies na Terra, incluindo a nossa, pois o ecocídio é também um suicídio. Cerca de US$ 44 trilhões de produção econômica – mais da metade do PIB anual global – é moderada ou altamente dependente do capital natural. O fracasso agrícola será também um fracasso de toda a economia global.
A UNCCD lembra que a comunidade internacional se comprometeu a restaurar um bilhão de hectares de terras degradadas até 2030. Este é apenas o começo. Mas ressalta que o objetivo é preservar os serviços de suporte à vida da natureza e salvaguardar a produtividade dos recursos da terra para as próximas gerações, reduzir os riscos e impactos de desastres e pandemias, e aumentar a resiliência do ecossistema e da comunidade em diante de tensões ambientais iminentes e choques climáticos.
A restauração é uma solução comprovada e econômica para ajudar a reverter as mudanças climáticas e perda de biodiversidade causada pelo rápido esgotamento de nossos estoques finitos de capital natural. A agenda de restauração de terras é uma estratégia de múltiplos benefícios. Por exemplo, as práticas regenerativas de uso da terra, empregadas para a saúde do solo ou a recarga das águas subterrâneas, também aumentam a capacidade de lidar com secas, inundações, incêndios florestais e tempestades de areia e poeira.
Diante de toda esta situação, não é surpresa constatar que a comida esteja cada vez mais cara. De fato, o Índice de Preços dos Alimentos (FFPI) da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) que vinha subindo, apresentando valor de 98,1 pontos em 2020 e 125,7 pontos em 2021. Mas em 2022 os valores extrapolaram e o FFPI ficou em 135,6 pontos em janeiro, 141,1 pontos em fevereiro, o recorde de 159,7 pontos em março e cerca de 158 pontos em abril e maio. A média dos 5 primeiros meses de 2022 apresenta o maior valor em 100 anos, sendo superado apenas pelo preço dos alimentos na época da 1ª Guerra Mundial e da pandemia da Influenza, no quinquênio 1915-1920.
O gráfico abaixo mostra que os recordes anteriores de alta do FFPI aconteceram em 1974 e 1975 (quando houve o primeiro choque do petróleo) e a década de 1971-80 foi a que teve a maior média decenal da série, com 110,2 pontos. Nas décadas de 1980 e 1990 os preços dos alimentos caíram e marcaram os menores valores do século XX. Mas a comida voltou a ficar mais cara no século XXI e está batendo recorde de alta em função de 5 acontecimentos: pandemia da covid-19, guerra da Ucrânia, pico do petróleo, degradação do capital natural e crise climática e ambiental.
Historicamente, o aumento do preço dos alimentos provoca uma elevação do percentual da população mundial sujeita à fome e à insegurança alimentar. E os dados internacionais da FAO mostram que a população com carências alimentares era de 606,9 mil pessoas em 2014 e subiu para 768 mil pessoas (representando 9,9% da população total) em 2020. Não há dados ainda para 2022 mas este número subiu com certeza em função da invasão russa da Ucrânia.
Como mostrei no artigo “Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico”, o mundo experimentou, nos últimos 250 anos, um crescimento econômico e demográfico, de tal ordem, que degradou a maioria dos ecossistemas do Planeta, provocou a perda de biodiversidade e desestabilizou o clima que havia apresentado uma impressionante estabilidade no Holoceno. Assim, gestou-se uma nova Era geológica, o Antropoceno, época em que as atividades antrópicas se constituem em uma força tão poderosa que tem sido capaz de sobrepassar a capacidade de carga da Terra (Alves, 2022).
A realidade é que a demanda por alimentos continua aumentando. Na época da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, na Suécia, entre os dias 5 e 16 de junho de 1972, a população humana era de 3,85 bilhões de habitantes, deve atingir 8 bilhões em 2023 e pode alcançar 9 bilhões de habitantes antes de 2050. Este caminho é insustentável e para a humanidade sobreviver em um quadro de crise ambiental e climática vai precisar planejar o decrescimento demoeconômico no século XXI.
ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, e5942, maio 2022. Disponível aqui.
United Nations Convention to Combat Desertification, 2022. The Global Land Outlook, second edition. UNCCD, Bonn. Disponível aqui.
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Degradação dos solos, crise climática, pandemia, guerra na Ucrânia e a catástrofe da fome. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU