07 Junho 2022
No mundo, atualmente, são produzidos mais alimentos do que o necessário para abastecer toda a sua população. Na verdade, nunca foram produzidos tantos. E, no entanto, a fome cresce e cresce.
A reportagem é de Daniel Gatti, publicada por Brecha, 03-06-2022. A tradução é do Cepat.
A América Latina, em seu conjunto, é considerada um dos principais celeiros do mundo. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a região produz o suficiente para alimentar, e bem, 1,3 bilhão de pessoas, mais do que o dobro de seus habitantes e um sexto da população do planeta.
“É uma região que tem um papel insubstituível na segurança alimentar global”, disse o escritório regional da FAO ao meio de comunicação alemão Deutsche Welle (30-05-22). Contudo, também é, acrescentou, “a região mais cara para comer saudável” e uma das que se caracterizam por um acesso mais desigual aos alimentos.
Hoje, a América Latina está ameaçada pelo que na linguagem da ONU é descrito como uma crise alimentar, ou seja, uma situação em que as pessoas têm “dificuldades para consumir alimentos suficientes, seguros e nutritivos”. A crise atual seria, inclusive, uma das mais graves das últimas décadas para esta região: dessas que são chamadas agudas, como aguda seria a insuficiência alimentar que boa parte dos habitantes da região sofreria a curto prazo.
O esquema é reproduzido, em maior ou menor grau, em todas as regiões do antes chamado terceiro mundo. De acordo com o relatório anual 2021, da Rede contra crises alimentares, desde 2017, o número de pessoas em situação de “crise alimentar aguda” só cresce: em 2019, eram 135 milhões, e em 2020, 155 milhões, em 55 países e territórios. Em 2022, espera-se que cheguem próximo a 200 milhões.
Por sua vez, as pessoas que pulam ao menos uma refeição por dia, segundo a FAO, somam cerca de 800 milhões, sendo que 95 milhões delas estão na América Latina. Por ano, no planeta, cerca de 9 milhões de pessoas (entre elas, 5 milhões de crianças) morrem devido a fatores ligados à fome, como desnutrição, subnutrição ou doenças perfeitamente curáveis. Ma che pandemia.
Os conflitos e a mudança climática – pelos eventos extremos cada vez mais comuns que destroem as plantações – aparecem de modo invariável nesses relatórios como causa dessas crises. E nos últimos dois anos, a covid, ou melhor, as medidas tomadas – ou não tomadas– contra a covid.
Agora, é a guerra na Ucrânia, que envolve dois dos maiores produtores mundiais de milho, trigo e fertilizantes, que domina o cenário e é citada como a provável detonante de um “furacão de fome”, nas palavras do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres.
O aumento dos preços dos alimentos, em consequência da guerra na Europa, pode fazer com que os países da África subsaariana, que até 2017 gastavam 20% de sua receita em alimentos, passem a gastar 35% em 2023, os do Sul da Ásia 20%, sendo que gastavam 15%, e os da América Latina 20%, quando investiam 13%.
Mas há outro fator mais antigo, estrutural, que raramente aparece – ou só aparece de forma marginal – nos documentos da ONU: o modelo de produção. Quando se prioriza o agronegócio em grande escala para exportação, baseado em monoculturas e dependente de hidrocarbonetos, disse à Deutsche Welle, Susanna Daag, integrante de uma rede de associações alemãs que trabalham na América Latina, são geradas as condições para que, em um extremo, alguns comam até a saciedade e, no outro, muitos façam isso de forma descontinuada ou fiquem em uma situação de fome.
É o que acontece na América Latina e em boa parte do sul global, e o que explica aparentes absurdos como o fato de que no país do milho - México - a exportação do cereal seja priorizada em relação ao consumo dos próprios habitantes, que precisam pagar por ele preços exorbitantes, ou que no país da carne comer um assado custe os olhos da cara ao cidadão comum.
O uruguaio paga caro pela carne, quando seu preço sobe no mercado mundial e continua pagando caro por ela quando seu preço cai. Sempre são os mesmos que perdem, sempre são sempre os mesmos que ganham. E não há nada a ser feito, porque “somos tomadores de preços” e o que se decide na bolsa de Chicago é palavra divina.
Os alimentos que a América Latina produz – e produz de tudo – não são prioritariamente para alimentar seus habitantes, mas, sim, para engordar aqueles que os exportam, que muitas vezes são transnacionais. Ou se chega ao cúmulo de importar produtos impensáveis. Cerca de 30% dos alimentos que um país com vocação agrícola como a Colômbia consome vem do exterior: milho, trigo, açúcar, cevada, leite. O México importa milho, trigo e feijão, produtos básicos e ancestrais na dieta de seus habitantes.
O argumento dos governos mexicanos (dos liberais e dos que dizem que não são) para comprar fora o que pode ser produzido dentro está em que é mais conveniente. Mas é uma construção ideológica. “A falácia neoliberal de que é mais barato importar os grãos do que os produzir nacionalmente ameaça cobrar um preço que pode acarretar um alto custo social e político”, escreve Alberto Vizcarra Osuna (Aristegui Noticias, 28-05-22).
Quando algum país sai, mesmo que seja um pouco, do redil fixado pela Organização Mundial do Comércio e protege seu mercado nacional - a Índia, por exemplo -, é cercado, aponta a alemã Daag: dizem que está “contradizendo o mantra do livre comércio”.
E aí está justamente o cerne do problema: em um sistema que expande a desigualdade ao infinito, destaca o jornalista Martín Caparrós, autor em 2014 de um monumental ensaio-crônica intitulado A fome. “A fome é a metáfora mais brutal da desigualdade” e sua causa não é a pobreza, mas a riqueza de uns poucos, disse o argentino.
“O fato de que 800 ou 900 milhões de pessoas passem fome não é um erro do sistema, mas é a forma como o sistema está organizado. É próprio de um sistema global em que a produção de alimentos não está orientada para que todos comam, mas para que os mais ricos comam tudo o que precisam e muito mais, e esbanjem e joguem fora. Enquanto a ordem econômica mundial continuar favorecendo esse tipo de produção, isso continuará acontecendo. E o problema não se resolve enviando, de vez em quando, algumas sacolas de alimentos ou fazendo pequenos atos de caridade” (Universidade de Barcelona, 04-06-15).
Em novembro passado, o diretor do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, David Beasley, não conseguiu pensar em solução melhor para resolver a situação dos 42 milhões de pessoas que nos meses seguintes estariam mais propensas a morrer de fome do que chamar os super-ricos para que abandonassem suas desfaçatezes. “Com 6 bilhões de dólares se soluciona. Não é complicado”, disse, e desafiou concretamente Elon Musk e Jeff Bezos. Musk levou isso ao pé da letra, vendeu ações da Tesla por 5 bilhões e pouco de dólares e doou o arrecadado para “organizações filantrópicas”.
Dizem que Beasley ficou satisfeito. Amigos ideológicos de Musk riram: não é tirando dinheiro dos ricos que o planeta vai se desenvolver, mas, sim, dando mais liberdade a esses ricos e liberalizando ainda mais a economia, manifestou a estadunidense Heritage Foundation (Panam Post, 16-02- 22). O gotejamento fará com que os pobres possam comer, insistiu. O bom de Beasley não moveu sequer um mísero tijolo do sistema.
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Morrer de fome. “A fome é a metáfora mais brutal da desigualdade” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU