A obra Maria Tupansy - O Auto da Assunção de São José de Anchieta é o fruto maduro dos estudos do Pe. Felipe de Assunção Soriano (1) no teatro anchietano, que será lançado oficialmente no próximo dia 25 de maio de 2022 (formato remoto) pelo canal YouTube –UNICAP (https://www.youtube.com/unicapvideo) e no dia 03 de junho de 2022 (presencial) no Santuário Nacional de São José de Anchieta – Cidade de Anchieta/ES.
A originalidade de suas investigações está em desvelar a Virgem de Reritiba como mulher, indígena, guerreira e Senhora da aldeia. A alegorização feita por José de Anchieta nos oferece uma Maria toda comprometida com o projeto catequético jesuítico aplicado a aldeia de Reritiba. Nesta investigação interessa-nos elementos próprios na interpretação feita do espetáculo que revelem inovação e, em certa medida, elementos de contra globalização em sua produção. Sua Maria é apresentada como protagonista do seu projeto evangelizador, numa simbiose singular entre a herança judaico-cristã e as tradições indígenas do litoral do Brasil.
O primeiro elemento que devemos considerar é a nomeação do espetáculo dada por seus pesquisadores. José de Anchieta não nomeia o espetáculo, chamado na publicação de Maria de Lourdes de Paula Martins (1954) de “Quando levaram uma imagem a Reritiba”.
Ao optar por um nome aberto reconhece-se o impasse que nossa personagem traz ao corpus teatral anchietano. A constituição do que seja o espetáculo também leva em consideração estudos mais adequados, pois, conforme a disposição dos poemas no caderno anchietano, abertura e fechamento estavam dissociados no conjunto central. Portanto, quando chamamos o espetáculo de Auto da Assunção estamos apenas afirmando que o ato foi apresentado no dia 15 de agosto de 1590 – Festa da Assunção de Maria.
O segundo elemento que devemos destacar é a experiência mariana do nosso autor, pois é abundante em sua biografia referências à devoção a Santa Maria.
Não podemos esquecer o Poema da Bem-aventurada Virgem Maria, escrito nas areias da praia de Iperoig em puro latim, com mais de 5.000 versos. Sua produção mariana não se reduz a essa obra latina, sendo ainda tão mais significativa sua produção em língua geral (tupi). Maria de Lourdes de Paula Martins também se encantará com este mesmo espetáculo, primeiro, por causa do seu caráter métrico e poético único no corpus anchietano, e, segundo, por sua ousadia ao apresentar sua Maria a partir dos elementos próprios do matriarcado tupi.
Capa do livro "Maria Tupansy: O Auto da Assunção de São José de Anchieta", de Felipe de Assunção Soriano (Editora Edições Loyola) (Foto: Divulgação)
O terceiro elemento que devemos considerar é que a devoção mariana de José de Anchieta é algo de berço, pois, como filho das ilhas atlânticas, sua devoção à Virgem dos Guanches de Tenerife – Nossa Senhora de Candelária é herança de sua mãe – D. Mencía Díaz de Clavijo y Llarena.
Com a conquista espanhola, a festa dos nativos que era celebrada em 15 de agosto passará para todo o arquipélago para 2 de fevereiro. O voto feito por José de Anchieta na Sé de Coimbra no mesmo dia em que os Guanches de Tenerife celebram sua Virgem - 15 de agosto. Conforme seus biógrafos, saindo da procissão de Nossa Senhora da Assunção, entra na antiga Sé de Coimbra, fazendo seu voto certamente na igreja vazia. A tradição popular afirma que José de Anchieta colocou na aldeia de Reritiba uma Virgem de sua devoção, isto é, uma imagem que andava com ele onde ele fosse. Torna-se importante saber que essa aldeia de missão constitui uma das primeiras ações do seu provincialato (1579), chamada por ele mesmo no Auto da Assunção, na voz do índio principal desta aldeia, de “Reritiba meu país”.
O quarto elemento está vinculado ao papel social e político da devoção mariana no ambiente português.
A Virgem da Assunção é a devoção da casa real de Avis, com Igreja principal na Sé de Coimbra. Ela foi o estandarte da reconquista lusitana que expulsa os muçulmanos e unifica o Estado português. Nas terras de missão a devoção a Nossa Senhora da Assunção é recebida como a conquistadora, isto é, aquela que assegura o projeto colonial português. Se a Virgem de Reritiba é a Virgem da Assunção, não há nada de novo no projeto catequético da Companhia de Jesus. Entretanto, segundo nossa leitura, a identidade da Virgem pode estar vedada no texto indigenista de Anchieta. Nosso esforço foi demonstrar que essa alegoria não é uma etapa no processo colonial, mas, sim, uma fronteira original em chave decolonial. Na contramão das duas tendências mariológicas da época, José de Anchieta apresenta uma Maria servidora, que nos apresenta seu Filho Lindo como Senhor e Principal da aldeia.
(Fonte: Divulgação)
O quinto elemento que devemos ressaltar é sua identidade escondida enquanto indígena.
É o próprio espetáculo que confessa sua identidade, pois, como canta os indígenas reunidos no festim, “Ela é a mais linda do povo tupi”. A iconografia da Virgem da Assunção não compagina com o papel atribuído a Virgem de Reritiba, pois aquela está de partida e esta veio para ficar na aldeia. É o próprio José de Anchieta quem registra que as mulheres tupis vão à frente dos maridos nas batalhas caminhando apressadamente. É o anjo custódio da aldeia quem nos diz o motivo de sua visita, pois a ela apressadamente os demônios expulsa (guerreira). A partir do papel social das mulheres na aldeia (esposas do principal), que presidem o rito de recepção de visitas nas aldeias (Saudação lagrimosa), que José de Anchieta constrói sua personagem que de hóspede se faz anfitriã recebendo várias nações. É a Virgem de Reritiba quem nos recebe já no primeiro ato revelando sua identidade tribal e nossa pertença e vínculo à aldeia pelo feminino.
O sexto elemento que garante o papel social e pedagógico da Virgem de Reritiba é o matriarcado tupi.
No contexto da aldeia, o lugar singular da mulher é sempre ressaltado, primeiro, enquanto transmissora dos costumes e da cultura local, e, segundo, pela autoridade atribuída a elas. José de Anchieta deixa várias referências nas Cartas do Brasil deste mando típico que as mulheres esposas do principal da aldeia possuem (velhas). É essa autoridade que o espetáculo invoca quando diante de sua imagem os principais (Chefes das aldeias), falando como a uma pessoa que os visitam, apresentam suas nações, manifestam seu amor e prometem seguir sua via. É o próprio José de Anchieta quem recomenda que os indígenas chegados naquele dia não esqueçam o nome da Virgem de Reritiba, invocando-a continuamente. A partir do matriarcado tupi e do seu papel social que José de Anchieta sustenta a admiração, o respeito e o temor a sua alegoria.
O sétimo elemento é o papel central que o feminino ocupará na catequese anchietana.
Seu protagonismo cênico sustenta todos os quadros do espetáculo, pois sua entronização é quem silencia o missionário e dá voz ao indígena. De fato, a reforma dos costumes operada pela catequese encontrou nas aldeias forte resistência das mulheres enquanto guardiãs do preparo do cauim, da dinâmica das malocas e do rito antropomórfico. A catequese significou um golpe de morte ao papel ordenador das mulheres nas aldeias, isto é, renegando o feminino a um papel secundário na organização tribal. A Virgem de Reritiba é a resposta para o novo momento do trabalho missionário que encontra caminho para agrupar as várias nações muitas vezes inimigas sob a figura pedagógica do feminino. Portanto, o silêncio da Virgem que preside todos os quadros do espetáculo é antes sinal de sua autoridade ao trazer nos braços o seu Filho Lindo (Jesus Tupã, o Principal da aldeia).
(Fonte: Divulgação)
O oitavo elemento é a importância dada às danças indígenas em sua catequese teatral. Diferente dos outros espetáculos, que encontramos a dança como elemento adicional e lúdico no final da apresentação, no Auto de Reritiba as danças ganham outra significação. Quando os guanches de Tenerife encontraram aquela imagem de mulher (Candelária), que pensavam ser uma pessoa, já que não possuía palavra nenhuma como a Virgem de Reritiba, ficaram atônicos. Descoberta por um estrangeiro, 40 anos depois do seu achamento, como a imagem da Mãe de Deus, registra-se entre os nativos muitas festas e danças. O que Anchieta nos oferece é algo muito semelhante aos guanches, pois a dança é algo próprio da aldeia, isto é, daqueles que dela pertencem ou que foram introduzidos. No contexto tupi quem vincula a aldeia é sempre o feminino, seja pelo rito da saudação lagrimosa ou pelas práticas sexuais. É a Virgem de Anchieta quem vincula os nativos e os que foram introduzidos à aldeia (missionário), isto é, de forma hierárquica, primeiro, dançam os já aldeados, que fizeram caminho na catequese, e, segundo, os recém-chegados, que trouxeram a imagem naquele dia.
O nono elemento é a saída mariológica que sua catequese neste auto nos oferece ao conceito Tupã.
Essa deidade entre os tupis era uma ideia distante, que não recebia nenhuma expressão de culto por nunca ter ensinado nada útil à vida como plantar, controlar o fogo ou qualquer outro serviço social. Certamente a opção por Tupã se justifique ao fato dos indígenas associarem essa entidade ao céu e o trovão. De fato, aqui aparece o lugar da alegoria bíblica na construção do conceito Tupã, pois o Deus do Sinai fala a Moisés a sua lei pelo trovão. Dos mitos indígenas conhecidos no litoral do Brasil, sabe-se que Tupã é muito apegado a sua mãe, vindo em seu barquinho sobre as nuvens produzindo os trovões até a casa da velha (Maria). Como Tupã nunca desceu a terra e não possuía nenhuma expressão social que justificasse ser ele a alegoria ou conceito para retratar a ideia de Deus Cristão, ao colocar a casa da velha na aldeia, Tupã agora nos visita e é o motivo do novo projeto ensinado pelos jesuítas. É sua mariologia inculturada que nos oferece uma Cristologia prática, pois sua introdução é a apresentação de Jesus Tupã como principal da aldeia.
Por fim, como último elemento, é comum ao matar um inimigo que o índio ganhe as honras de um nome.
No final do espetáculo a sua Virgem finalmente é nomeada, reconhecida como mulher tupinambá, isto é, “a mais linda de nossa gente”, enaltecida como guerreira e Senhora da aldeia. José de Anchieta a nomeia por “Maria Tupansy”, que na língua dos índios do Brasil quer dizer “Mãe de Deus”. A nomeação é muito semelhante àquela que os guanches deram a sua Virgem morena ao chamá-la de “Mãe do Sustentador do Universo”, ou melhor, aquela que dos guanches se torna a nossa “Theotokos Tupi” – “Tupansy” (Mãe de Deus). Ela é sinal da proximidade de Deus a seu povo, é, segundo José de Anchieta, “nossa companheira de lutas”, “aquela de derrota ‘anhangá’ (diabo) e seu terror”, porque “seu vigor ensina-nos a virtude em nossa rota”. Sua presença é sinal perene da permanência de Jesus Tupã junto ao povo, pois é ela quem nos dá por visita seu Filho Lindo. O espetáculo não se conclui com o último ato, pois Tupã Jesus é apresentando como aquele que esperamos atualizado no pão da eucaristia.
1.- Felipe de Assunção Soriano, formado em Filosofia (2007) e Teologia (2013), graduado pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, Belo Horizonte/MG. Ele defendeu seu Mestrado em Teologia com ênfase em mariologia na niversidade Católica de Pernambuco - UNICAP, Recife/PE (2020). Atualmente é doutorando no PPG em História da UNISINOS. Ele é autor do livro Maria Tupansy. O Auto da Assunção de São José de Anchieta, Edições Loyola, 2022.