"No evangelho (Lc 2,16-21), temos uma breve cena dos episódios da infância de Jesus. Para compreendê-la, é necessário situá-la no conjunto desses relatos. É inevitável a comparação com o evangelho de Mateus. Em Mateus, quem visita Jesus menino e sua mãe são os magos (Mt 2,1); em Lucas, são os pastores (Lc 2,8). Além disso, Mateus diz que Maria e o menino estavam em uma casa (Mt 2,11); diferentemente, Lucas informa que Maria deu à luz a seu filho primogênito envolveu em faixas e acomodou num cocho (Lc 2,7). Este detalhe, que na narrativa lucana antecede o texto de hoje, não é de pouca importância. Aliás, deve ser lido com cuidado. Envolver em faixas está longe de ser um sinal de pobreza, mas sinal de acolhimento e proteção. Este gesto materno tão comum e natural demonstra que o Messias de Israel não é um rejeitado no meio do seu povo, mas alguém recebido e agasalhado adequadamente. Esta mesma imagem já tinha sido aplicada a Salomão, em Sb 7,4-5: o mais rico dos reis de Judá foi “criado com cuidados entre cueiros; pois nenhum rei comece a vida de outra maneira”. As faixas, portanto, ao mesmo tempo simbolizam humanidade e carinho."
A reflexão é de Rita de Cácia Ló. Ela é graduada em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana (2006) e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006). Atualmente é professora de estudos bíblicos na Escola de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF, de Porto Alegre/RS.
1ª Leitura - Nm 6,22-27
Salmo - Sl 66,2-3.5.6.8 (R. 2a)
2ª Leitura - Gl 4,4-7
Evangelho - Lc 2,16-21
Hoje celebramos o primeiro dia do ano civil. Celebramos a esperança de que 2022 seja mais saudável, com a proteção e a ternura de Maria, a Mãe de Deus.
Na primeira leitura de hoje (Nm 6,22-27), temos a bênção de Moisés. Aliás, é a bênção que São Francisco assumiu como sua. São palavras de encorajamento e esperança, em primeiro lugar, para o povo na dureza do deserto, mas também para nós hoje, na dureza do deserto do medo e das incertezas. Deus nos abençoa e nos guarda para construirmos 2022 com paz na nossa sociedade, respeito à vida do planeta e fidelidade aos mandamentos.
Na segunda leitura (Gl 4,4-7), Paulo escreve que se concretizou o que no Antigo Testamento era promessa: Deus enviou seu Filho para nos resgatar. E como filhas e filhos, somos herdeiras da “Graça de Deus”.
No evangelho (Lc 2,16-21), temos uma breve cena dos episódios da infância de Jesus. Para compreendê-la, é necessário situá-la no conjunto desses relatos. É inevitável a comparação com o evangelho de Mateus. Em Mateus, quem visita Jesus menino e sua mãe são os magos (Mt 2,1); em Lucas, são os pastores (Lc 2,8). Além disso, Mateus diz que Maria e o menino estavam em uma casa (Mt 2,11); diferentemente, Lucas informa que Maria deu à luz a seu filho primogênito envolveu em faixas e acomodou num cocho (Lc 2,7). Este detalhe, que na narrativa lucana antecede o texto de hoje, não é de pouca importância. Aliás, deve ser lido com cuidado. Envolver em faixas está longe de ser um sinal de pobreza, mas sinal de acolhimento e proteção. Este gesto materno tão comum e natural demonstra que o Messias de Israel não é um rejeitado no meio do seu povo, mas alguém recebido e agasalhado adequadamente. Esta mesma imagem já tinha sido aplicada a Salomão, em Sb 7,4-5: o mais rico dos reis de Judá foi “criado com cuidados entre cueiros; pois nenhum rei comece a vida de outra maneira”. As faixas, portanto, ao mesmo tempo simbolizam humanidade e carinho.
Semelhante valor simbólico deve ser dado ao cocho, um repositório para a comida do gado. Ao narrar que Jesus foi acomodado em um cocho, Lucas sugere que, em Jesus, Deus alimenta e sustenta seu povo.
Lucas tem ainda o cuidado de informar ao leitor que Jesus nasceu na cidade de Davi, não em alojamento com os forasteiros. A frase “não havia lugar para eles no albergue” (Lc 2,7) não significa que a hospedaria estava lotada, nem que o hospedeiro se recusou a acolher uma mulher grávida. Diferentemente, significa que, no edifício em que se amontoavam viandantes e animais, não havia um local adequado para uma mulher dar à luz.
O texto desta liturgia começa descrevendo o que os pastores encontraram: Maria, José e o recém-nascido deitado no cocho (v. 16). Só então eles entenderam o que lhes tinha sido anunciado pelo anjo. Mas o texto diz que José não era o único com Maria e o menino: havia também outras pessoas, principalmente mulheres, que ajudaram Maria no trabalho de parto. Nada de estranho: o nascimento de Jesus foi um parto normal.
As palavras dos pastores provocam sentimentos variados: os que estavam lá para o parto, ficam admirados (v. 18); Maria, por sua vez, “guardava e meditava em seu coração” (v. 19). Ao longo da história, esta descrição dos sentimentos de Maria rendeu muitas páginas de textos espirituais com conselhos para as mulheres: Maria é modelo de silêncio; não é necessário entender, apenas meditar e aceitar. Embora sejam conselhos muito piedosos, estas e outras interpretações demonstram falta de compreensão do texto.
A frase “guardar / meditar no coração” descreve a atitude de outros personagens bíblicos; mais especificamente, Jacó (Gn 37,11) e Daniel (Dn 7,28). Os sábios não cansam de insistir que seus discípulos saibam mais ouvir do que falar (Pr 3,1; 15,23; Ecl 7,6; Sl 119,11). Essa atitude faz parte da busca de Maria pelos sentidos dos acontecimentos que cercam o nascimento de Jesus, ela antecipa o que o próprio Jesus dirá em Lc 11,28: mais felizes do que o ventre que o gerou e os seios que o amamentaram são “os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática”.
Trata-se, portanto, não de uma atitude de submissão, mas de sabedoria: a busca do entendimento não passa pela multiplicação de palavras nem pelo desejo de desvendar enigmas, e sim pela observância das palavras da Torá (Lei) e dos profetas. De fato, esta é a essência do Shemá: “Escuta, Israel; guarda estas minhas palavras; medita-as em casa e pelo caminho...” (Cf. Dt 6,4-8; ver também Dt 4,39-40; 7,17-21). Lucas faz de Maria a mulher que cumpre o Shemá e, por meio dela, estende o mandamento e sua realização a todas as mulheres: Marias, Joanas, Anas, Ritas, Cleusas, Clarisses.
Nesta celebração, Deus está nos abençoando para construirmos 2022 com paz na nossa sociedade, respeito à vida do planeta e fidelidade aos mandamentos.