Por: MpvM | 29 Dezembro 2020
"Cada passagem de ano nos coloca diante da realidade do tempo e da história. E isto para além da cronologia de um adeus ao ano velho e um desejo de feliz ano novo 2021.
"Fomos acostumadas a medir o tempo pelos ponteiros de um relógio, pelas páginas de uma agenda, geralmente preenchidas com compromissos antes de iniciar o ano e ficamos assustados com a rápida movimentação das folhas de um calendário. Ontem viramos a última página do calendário de 2020. E lembramos com reverência solidária dos milhões de mortos por Covid 19. Cada qual com seu rosto, sua história e a suas pessoas de relação, familiares.
"Entremos no novo ano envolvidos com a força do bem, com a bênção de Deus. A paz universal é possível quando na justiça e na amizade social tecermos novas relações de igualdade, de fraternidade e sororidade."
A reflexão é da biblista Lúcia Weiler, religiosa da Congregação das Irmãs da Divina Providência - IDP. Ela possui graduação em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio.
Leituras do Dia
1ª Leitura - Nm 6,22-27
Salmo - Sl 66,2-3.5.6.8 (R. 2a)
2ª Leitura - Gl 4,4-7
Evangelho - Lc 2,16-21
Cada passagem de ano nos coloca diante da realidade do tempo e da história. E isto para além da cronologia de um adeus ao ano velho e um desejo de feliz ano novo 2021.
Fomos acostumadas a medir o tempo pelos ponteiros de um relógio, pelas páginas de uma agenda, geralmente preenchidas com compromissos antes de iniciar o ano e ficamos assustados com a rápida movimentação das folhas de um calendário. Ontem viramos a última página do calendário de 2020. E lembramos com reverência solidária dos milhões de mortos por Covid 19. Cada qual com seu rosto, sua história e a suas pessoas de relação, familiares.
Quanta coisa esse ano 2020 nos quer ensinar. O tempo, o mundo precisam de “pausa”, diz a letra de um canto: “Calma o mundo precisa de pausa. Talvez seja hora pra pensar. Nem tudo se pode controlar. O que será que o mundo tem a falar?” Esta é a pergunta do ano.
Certamente já tivemos contato com o conto “Momo e o senhor do tempo”, de Michael Ende, escrito em 1973, mas muito atual. Momo, a protagonista é uma criança órfã, sem nome, que faz perguntas sobre o tempo. Encontrou os homens vestidos de cinza que criaram o Banco do Tempo e seduzem as pessoas para fazer economia do tempo colocando-o neste Banco. A partir do encontro com a Mestra Hora ela recebe o desafio de decifrar um enigma sobre a casa onde moram 3 irmãos. Estes mudam seguidamente de nome e de moradia nos compartimentos da casa. Estão interligados pois um não vive sem o outro mas nunca convivem. “Coisa de virar a cabeça” diz a pequena, quando consegue resolver o enigma. Os três irmãos são o presente, o passado e o futuro. O que realmente existe é o momento presente, mas agora mesmo este momento já virou passado e já se abriu ao futuro.
E o Mestre Hora pergunta: “Qual é o grande reino que os 3 governam juntos, e o que são eles juntos? E olhando em volta entusiasmada ela responde: O tempo! E a casa na qual moram é o mundo!
E o diálogo entre a Mestra Hora e Momo continua: O tempo existe, isto é certo. Mas não se pode pegá-lo. Segurá-lo também não. Será como uma espécie de perfume? Mas é uma coisa que está sempre passando, deve vir de algum lugar. Será que é como o vento? Não! Já sei! Talvez seja uma espécie de música, que a gente não ouve porque ela está sempre ali. Mas acho que eu já a ouvi, muito baixinho. Não existe uma definição única para tempo. Cada pessoa descobre o que ele é para ela.
“Mestra Hora explicou para Momo que o tempo mora no coração das pessoas. É ele que percebe o tempo. Todo tempo que não é percebido pelo coração é desperdiçado.”
Estamos no tempo natalino e os textos litúrgicos de hoje são tão lindos e tão harmônicos que não precisariam nenhuma palavra interpretativa a mais, se não fosse o momento que vivemos nesta passagem de ano. Tempo marcado por perguntas muito, mas muito mais interrogativas do que as que nós fizemos em outros anos.
Encarar e assumir a realidade tal qual ela se apresenta é sinal de maturidade. Vivemos um tempo difícil com a pandemia. Não podemos escamotear a realidade. “A realidade é superior à ideia” e o “tempo é maior que o espaço”, são dois pilares da sabedoria do pensamento de Papa Francisco. A realidade é e não pode ser ocultada com ideias negacionistas, porque essas apenas manipulam e distorcem a realidade. Aliás, profetizas e profetas, como mulheres e homens do seu tempo, tem a coragem do concreto e não compactuam com aparências ou conveniências. São mulheres e homens do Deus vivo e Verdadeiro e não de qualquer Ídolo. Nosso tempo pede a profecia da esperança ativa. Descobrindo seus rastros em meio à escuridão.
Neste contexto a Palavra de Deus se torna um facho de luz que nos quer encorajar e abrir caminhos de esperança para entrarmos com boas energias, forças positivas e a bênção de Deus no Ano Novo.
Cada Ano novo nos convida a voltar para a origem de tudo onde encontramos a força do único Bem e da Bondade de Deus Criador, amigo da Vida. Deus contemplou toda a Criação e viu que tudo era bom. (Gn 1,21). Aí encontramos a fonte de Bênçãos que perpassa as Escrituras, e muito mais a vida e a história de toda humanidade. Compreendida e acolhida pelo Povo de Deus, esta bênção é ritualmente passada de geração em geração, como lembra a primeira Leitura (Nm 22-27). Esta bênção relaciona e integra a face de Deus, o seu rosto compassivo que nos dá a paz (schalom sinônimo do verdadeiro Bem Viver)! Quem invoca o nome deste Deus recebe e acolhe sua bênção e se torna instrumento da paz, do bem e da vida para todas as criaturas.
Esta bênção original foi ritmada num dos mais belos hinos no Salmo 66. É um salmo universal que convida a terra inteira, todos os povos e todas as nações a receber a graça e a bênção de Deus e a deixar-se iluminar por sua face. Que seu caminho seja conhecido em toda terra e a sua salvação por entre os povos. A terra inteira é convidada hoje a exultar de alegria porque, na sua Providência, ele governa todo o universo e todos os povos com justiça e retidão. Ele guia as nações em toda a terra.
E conclui com um refrão: Que todas as nações vos glorifiquem! Que nosso Deus nos abençoe e que o respeitem os confins de toda a terra! Nada mais adequado para nosso tempo essa certeza de fé que estamos interligados em todo universo, sendo recriados na fonte da bênção da vida pelo Deus da Vida, o verdadeiro e único Senhor do Tempo.
Na segunda leitura (Gl 4,4-7) somos lembrados que as coisas de Deus acontecem no tempo previsto, no Kairós e não no cronos. O filho é enviado por Deus, não como um extraterrestre, mas como Deus encarnado, assumindo toda humanidade, por isso nascido de uma mulher e assumindo também toda realidade histórica e sujeito à lei, daquele tempo. Não para deixar as coisas como estão, mas para que toda humanidade recebesse a graça da filiação divina e ninguém mais fosse submetido a leis injustas.
E Paulo conclui com uma das mais fortes expressões de fé trinitária: Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abá - ó Pai! Como filhas e filhos amados recebemos por graça a herança da vida. Quanta força interior recebemos deste mistério da graça de Deus para nós e toda humanidade! E quanto necessitamos desta força neste tempo.
E assim chegamos ao Evangelho, que mais uma vez nos apresenta “a mulher” da qual nasceu o Filho enviado de Deus, por isso chamada “Mãe de Deus”. Lucas 2,16-21 é uma narrativa natalina, lembrando-nos que Natal é cada dia. Convida-nos a entrar em duas cenas:
A primeira: a acolhida dos Pastores que vão às pressas até Belém, encontram Maria e José e o recém-nascido deitado na manjedoura. Lucas insiste: Deus se encarna na fragilidade de uma criança recém nascida deitada numa manjedoura. Os pastores nos ensinam a voltar a Belém e acolher a surpresa de um Deus que rompe com a lógica dos poderosos e que se faz pequeno sendo um sinal de contradição porque virá para libertar os oprimidos e pequenos. Só quem se faz pequeno o compreende e por isso os pastores partilham o que viram e ouviram a respeito do menino recém-nascido. E todos ficam maravilhados com aquilo que contavam.
Entre as duas cenas está a atitude de Maria que guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração. Atitude de quem compreendeu e acolheu o Mistério que é ainda maior que o tempo e o espaço.
A segunda cena faz menção ao tempo da circuncisão previsto para oito dias após o nascimento. Neste momento o nome dado ao menino é Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido. '“Jesus significa, em hebraico, ‘Deus salva’. Na anunciação, o Anjo Gabriel deu-lhe esse nome para expressar sua identidade e sua missão como libertador de toda escravidão e opressão”.
Aqui estamos mais uma vez diante do mistério, no encontro do divino e do humano. O nome não deriva do parentesco nem da escolha humana, mas é escolhido pelo anjo, mensageiro de Deus mesmo antes da concepção da vida.
Concluindo, podemos voltar ao princípio desde onde a Bênção e a Paz no mundo são graça de Deus. Além de desejar intensamente esta graça para todo universo, no ano que inicia, assumimos também a responsabilidade e o compromisso de construir um mundo novo de Paz. Maria é apresentada como aquela que gerou o "Príncipe da Paz". Assim a liturgia de hoje nos lembra desde o primeiro dia do ano, que a paz anunciada pelos anjos em Belém na noite de Natal, é possível.
Voltando ao conto aprendemos de nossa pequena Momo e da Mestra Hora que podemos usar ou aplicar o tempo em situações que criam vínculos e produzem saúde, felicidade e paz, ou fazer economias de tempo cortando vínculos, nos transformam em robôs, duros, sem vida, indiferentes aos dramas humanos, gerando situações de violência e não de paz.
Entremos no novo ano envolvidos com a força do bem, com a bênção de Deus. A paz universal é possível quando na justiça e na amizade social tecermos novas relações de igualdade, de fraternidade e sororidade.
Lembro aqui a carta de Dietrich Bonhoefer, escrita para uma pessoa amada, enquanto estava preso num campo de concentração em Berlim no final de dezembro de 1944. Nestas condições de escuridão ele lembra o percurso da esperança e fonte da paz da bênção, da vida: Maravilhosamente envolvidos pelas forças do bem, esperamos com confiança o que possa vir. Deus está conosco durante a noite e de manhã e certamente conosco está a cada novo dia e a cada novo ano.
Fica o convite para nós também: escrever uma carta ou uma mensagem para uma pessoa amada, expressando o que nos mantém vivas e alegres na esperança, neste dia primeiro do ano novo de 2021
Que Maria a Mãe de Deus com seu esposo José, neste ano a ele dedicado, nos inspirem na caminhada de 2021 que iniciamos. Oxalá a pausa das guerras num mundo dividido e fragmentado não seja apenas de um dia. Continuemos a luta por um mundo sem armas nem violência participando da realização do Reino de Deus, onde prevalece a Paz e a Justiça.
Deus continua a espalhar sementes de bem com sua Bênção para toda humanidade. Portanto caminhemos na esperança! Descubramos os percursos da Esperança abrindo trilhas de Paz para 2021.
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Solenidade da Mãe de Deus e Dia Mundial da Paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU