"Maria, por ter vivido a experiência amorosa de ser a mãe de Jesus, Deus que se fez carne no meio de nós, foi agraciada por Jesus como sendo a primeira pessoa, depois dele, a receber a glória da ressurreição. Nisto tudo está o amor maternal e filial de Deus Pai e Mãe de todos nós", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
O dia 15 de agosto é dedicado à celebração da Assunção de Maria. Qual o significado dessa devoção? Por que a Igreja transformou em dogma de fé essa tradição apócrifa? Qual a diferença entre Assunção e Dormição? Que consequências surgem para a nossa fé, quando afirmamos que Maria não morreu? Maria dorme ou morre? Ressuscita? É glorificada? Vence ou não a morte?
Com base nessa tradição de fé dos primeiros cristãos, narrada nos evangelhos apócrifos marianos assuncionistas, vamos procurar entender o seu sentido e a sua atualidade. Comecemos por definir os termos.
Assunção significa elevação, isto é, Maria foi levada para o Céu por Jesus ressuscitado. Já Dormição refere-se ao sono de Maria antes de sua ascensão, o que equivale dizer que ela não morreu, mas dormiu.
A trajetória litúrgica devocional dessa festa mariana ocorreu de forma diferenciada no Oriente e no Ocidente, entre cristãos ortodoxos e católicos. [1]
Com o decreto do imperador Maurício, entre 592 e 602, o Império Romano passou a celebrar no Ocidente a Dormição e no Oriente, a Dormição e Assunção, ora do corpo, ora da alma. [2]
Somente com os papas Adriano I, morto em 795, e Pascoal, morto em 824, a festa da Dormição passou a ser chamada de Assunção de Maria.
Entre os séculos XVI-XX, houve uma reviravolta na crença na não morte e assunção de Maria.
Lutero negou o fato, argumentando que isso não está na Bíblia. Após Lutero, vários outros teólogos retomaram a questão dando outras soluções para a morte de Maria.
Francisco de Sales, morto em 1662, diz, por exemplo, que Maria morreu de amor [3].
No século XVIII, iniciou-se um movimento de teólogos, bispos e até de reis, solicitando ao Vaticano que estabelecesse o dogma da Assunção. Esse movimento mariano se estendeu até o século XX. Maria apareceu em vários lugares do mundo. As devoções aumentaram, as congregações religiosas se intitulavam “sob a proteção de Maria”, bem como os movimentos laicais, no século XX [4].
Em 1854, com a encíclica Ineffabilis Deus, Maria é declarada Imaculada Conceição [5]. Em 1950, como consequência lógica do dogma da Imaculada Conceição, e, atendendo a pedidos e respostas de questionário enviado ao episcopado católico, o papa Pio XII declarou o dogma da Assunção de Maria em corpo e alma à glória celestial [6].
Na Carta Apostólica Munificentissimus Deus está dito: “Definimos ser dogma divinamente revelado: que a Imaculada Mãe de Deus, sempre Virgem Maria, cumprindo o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”. Mesmo que não esteja dito expressamente no dogma, a Assunção de Maria é o mais apócrifo dos dogmas. E ainda há de se considerar que nele está o triunfalismo da Igreja Católica, que se apoia em Maria para falar de sua glória, de seu poder centralizado [7].
A biografia de Maria nos apócrifos abrange todas as etapas de sua vida, do nascimento à assunção. Os apócrifos marianos podem ser divididos em dois blocos: os narrativos biográficos [8] e os assuncionistas.
Os narrativos biográficos são: Protoevangelho de Tiago (séc. II-IV); Evangelho dos Hebreus (séc. II); Odes de Salomão (séc. II); Carta dos Apóstolos (séc. II); Evangelho de Bartolomeu (séc. III); Natividade de Maria, Papiro Bodmer V (séc. III); História de José, o carpinteiro (séc. II-V); Livro da Natividade de Maria (séc. IV-V); Evangelho de Gamaliel (séc. V-VI); Evangelho armênio da Infância (séc. VI); Mulheres no túmulo e Aparição a Maria (séc. V-VII); Evangelho do Pseudo-Mateus (séc. VII).
Os assuncionistas são: Livro do Descanso (séc. III); Livro de São João evangelista, o teólogo, sobre a passagem da Santa Mãe de Deus (séc. IV); Livro de João, arcebispo de Tessalônica (séc. IV); Trânsito de Maria do Pseudo-Melitão de Sardes (séc. IV); Trânsito de Maria do Pseudo José de Arimateia (séc. XIII e XIV).
A análise dessa literatura apócrifa traz à tona fatos desconhecidos da literatura canônica sobre Maria. Os livros do primeiro grupo narram possíveis dados biográficos da vida de Maria, e os do segundo possibilitaram a devoção à Assunção de Maria. Na verdade, os apócrifos marianos narrativos biográficos e assuncionistas retratam uma Maria extraordinária, quase um ser divino, superior ao ser humano por causa dos privilégios advindos do seu Filho e também Deus, Jesus. Os apócrifos narram o início e o fim de sua vida de forma miraculosa. A sua vida adulta é silenciada [9].
Os evangelhos apócrifos assuncionistas, de modo específico, narram que três dias antes de morrer, Maria recebeu, de Jesus, o anúncio de sua morte, no monte das Oliveiras. Outra tradição diz que foi um anjo que apareceu para ela. Nesse caso, uma palma lhe é dada como garantia da palavra de Jesus. Maria se prepara para o dia em que sua alma sairia do corpo. Os apóstolos chegam da missão, primeiro João, seguido dos outros. Em sua casa, em Jerusalém, na presença dos apóstolos, ela dormiu, que pode significar morreu. Jesus, nesse momento, tendo vindo ao seu encontro, pede aos apóstolos que preparem o corpo e o levem até um lugar indicado por ele, no Vale de Josafá. A alma de Maria é levada ao Céu pelo anjo Miguel e Jesus. Durante o cortejo, judeus querem destruir o corpo de Maria. Quando Pedro e os apóstolos chegam a um sepulcro, eles depositam o corpo de Maria e se sentam à sua porta.
Jesus aparece, novamente, rodeado de anjos, saúda os apóstolos com o desejo de paz. Exalta o fato de Maria ter sido escolhida para que dela Ele pudesse nascer. Por fim, Ele pede aos anjos que levem seu corpo para o céu, fato que veio a ser chamado de Assunção de Maria. Quando o corpo chega ao céu, Jesus coloca a alma novamente no seu corpo glorioso e a coroa como Rainha do Céu, fato celebrado nas coroações de Maria no mês de maio.
O itinerário da narrativa apócrifa assuncionista segue o esquema comum: Dormição, sua alma é levada ao Céu, translado (trânsito) do corpo ao Céu, o que evidencia o fato de o fim da vida de Maria ser diferente de todos os seres humanos. Somente um apócrifo, o do Pseudo-Melitão de Sardes, é que acrescenta a ressurreição de Maria, antes de ir para o Paraíso com Jesus. A sua alma é colocada novamente no corpo, ainda na terra.
Acrescente-se a isso que Maria tem Dormição (morte) parecida com a de Jesus. Vários elementos que aparecem na morte de Jesus estão presentes na dela: três dias, trovões, luz resplandecente, perseguição etc.
Dentre os apócrifos marianos assuncionistas, os que mais repercutiram entre os cristãos não calcedônios no Oriente bizantino foram o Trânsito do Pseudo-Melitão de Sardes e o Livro de São João, o apóstolo. No entanto, o livro que se tornou modelo da Dormição foi o de São João de Tessalônica. A intenção litúrgica do autor o levou a tomar os relatos antigos que mais se aproximavam, segundo ele, das testemunhas oculares da Dormição de Maria para reconstituir outro texto, didático e convincente da necessidade de celebrar a Dormição de Maria [10].
O Trânsito do Pseudo-Melitão de Sardes teve, com certeza, influência no Ocidente cristão, quando da institucionalização da festa da Assunção de Santa Maria no séc. VIII.
Maria morre ou dorme? Eis uma questão controversa teologicamente. Santo Epifânio, bispo de Salamina, morto em 403, levantou a questão da morte de Maria e respondeu:
Nem a morte de Maria nem se ela morreu ou não morreu, nem se ela foi enterrada. Embora eu não o afirme totalmente. Nem digo que tenha ficado imortal nem posso afirmar que tenha morrido. A Escritura guarda silêncio total por causa da magnitude do prodígio. Portanto, se ela morreu, não sabemos. E mesmo que tivesse sido sepultada, jamais teve comércio carnal: longe de nós essa blasfêmia! Quanto a mim, não ouso falar a respeito disso; guardo isso em minha mente e guardo silêncio [11].
Epifânio de Salamina também aventa a possibilidade de Maria ter sido assassinada, visto que Lc 2,35 fala que uma espada transpassaria o seu coração.
Outras tantas questões decorrem do que teria ocorrido com Maria nos últimos dias de sua vida terrena. O dormir de Maria seria a morte de fato ou não? A sua alma foi levada ao Céu, mas o seu corpo foi sepultado como ocorre com todos os mortais, tendo sido preservado da corrupção? O corpo esperaria a ressurreição final de todos os mortos para se unir à alma? A sua alma, no entanto, foi para o Paraíso para ser glorificada? Por último: alma e corpo foram levados pelos anjos e por Jesus para junto de Deus para aí ser glorificado, tendo como consequência a sua não morte física?
Uma coisa é certa: todas essas questões são possíveis. Maria foi a primeira humana a ser elevada à glória da ressurreição, como ocorreu com Jesus que ressuscitou e ascendeu aos Céus. A diferença é que Maria foi assunta, foi levada, pelo seu Filho aos Céus.
Nos apócrifos assuncionistas, podemos identificar quatro modelos de morte de Maria [12]:
1. Ela dorme (morre), sua alma é acolhida por Cristo e levada para o Céu. Seu corpo é levado para um sepulcro e, depois de três dias, é levado ao Paraíso. Alma e corpo serão reunificados somente no fim dos tempos. Nesse modelo, encontramos a Dormição e Trânsito de Maria. Trata-se da mais antiga tradição sobre a morte de Maria.
2. O seu corpo é separado da alma e reunificados após um tempo determinado de 206 dias, ocorrendo, assim, sua ressurreição. Modelo também antigo.
3. Maria não morre, mas é arrebatada de corpo e alma para o Céu, onde é acolhida em vida e glorificada como rainha do Céu. Nesse modelo, pode-se falar também de Assunção de Maria. Modelo que aparece depois do século VI.
4. Maria dorme (morre). Durante três dias, seu corpo fica separado da alma, mas são reunificados. Maria volta a ser humana completa e é levada para o Céu por Jesus, ocorrendo, portanto, a sua assunção. Esse quarto modelo é mais claro quanto à Assunção de Maria e é também mais recente historicamente. Nele se encontra a união da Dormição com a Assunção. Esse modelo serviu de base para o estabelecimento do dogma da Assunção de Maria de 1950, o qual deixa em aberto as duas possibilidades: a de que Maria foi acolhida em vida no Céu e a de sua passagem ou não pela morte física.
A teologia paulina (ITs 4,13-18) ensina que, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, os que já morreram em Jesus, Deus há de levá-los para a sua companhia. No momento, da segunda vinda do Senhor, os mortos ressuscitarão primeiro, “em seguida, nós, os que estivermos lá. Seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor, nos ares. E assim, estaremos para sempre com o Senhor” (4,17).
Paulo fala de arrebatamento dos vivos e ressurreição dos mortos. No entanto, o desafio teológico e pastoral em relação a Maria é: se ela não morreu (dormiu), a morte não teve incidência sobre ela, e se não teve incidência sobre ela, como justificar sua ressurreição? Como o Filho, sendo divino, morreu e ela não? Maria, então, teria tido mais privilégio diante de Deus que seu próprio Filho? Com a ressurreição, a morte é vencida, mas se Maria não morreu, mas foi assunta, isto é, arrebatada de corpo e alma ao Céu, como Henoc e Elias, com ela, a morte não foi vencida.
Por outro lado, não reside nessa questão o fato de ela passar a ser vista como mediadora na hora da morte? O fato de Maria não ter passado pela morte poderia conferir-lhe condições de interceder pelos seus irmãos, também humanos, diante de seu Filho divino. Por outro lado, se ela está no Céu, ela vive a glória dos ressuscitados, sendo o primeiro ser humano a fazer essa experiência, depois de Jesus, o que também lhe confere poder de interceder.
E foi o que aconteceu com ela, na Idade Média, tornando-se a advogada dos moribundos. Nessa época, o fiel alimentava o medo de morrer e ir direto para o Inferno. Com essa Pastoral do Medo, a Igreja mantinha o controle sobre vivos e mortos e, é claro, da sociedade. Tenebrosa Idade Média! Lamentável é a volta desse discurso em várias igrejas cristãs.
As narrativas apócrifas assuncionistas tiveram como primeira preocupação demonstrar o mérito de Maria de poder receber a recompensa por parte de seu Filho e, consequentemente, de Deus, pelo fato de ela ter aceitado ser a mãe de Deus.
Nasce uma Maria triunfalista que será utilizada para justificar o seu poder e o da Igreja da Cristandade. Maria passa a ser a Nossa Senhora, a Rainha, a repleta de poder diante do Filho para interceder em favor de seus devotos. Nossa Senhora do Rosário, do Carmo, da Boa Morte etc. São tantas as devoções quanto o seu poder. A Maria dos apócrifos ganhou vida própria e fortaleceu-se na história a partir da devoção e da liturgia que se criaram em torno dela. Ela inspirou virgindade, sofrimento, glória, poder e maternidade. Por vezes, o seu poder passou a ser maior que o de seu Filho.
Para a fé, acreditar que Maria foi assunta ao céu de corpo e alma significa crer que Maria não precisou esperar o fim dos tempos para receber um corpo glorificado. Depois de sua vida terrena ela já está junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e de luz. Deus antecipou nela o que vai dar a todas as pessoas de bem, no final dos tempos.
Maria, por ter vivido a experiência amorosa de ser a mãe de Jesus, Deus que se fez carne no meio de nós, foi agraciada por Jesus como sendo a primeira pessoa, depois dele, a receber a glória da ressurreição. Nisto tudo está o amor maternal e filial de Deus Pai e Mãe de todos nós.
Em Maria e com Maria vivemos a esperança de que também nós chegaremos lá. Ela foi, mas não partiu, pois continua próxima de nós. Ela é a nossa origem, é nossa mãe na fé, a qual queremos voltar sempre. Ela é desejo! Ela é mãe! Por isso, a queremos sempre. Caminhar com ela, na fé, é acreditar que também seremos assuntos ao céu. Antes, porém, devemos transformar nossa realidade de sofrimento, angústia, dores e exploração social em situações de vida, glória. A assunção começa aqui. Ave Maria, cheia de graça, rogai por nós... Salve Rainha, mãe de misericórdia, intercedei por nós...
[1] Uma análise completa da história da devoção mariana da Dormição e Assunção de Maria na Igreja a partir do seu papel exercido como advogada de vivos e mortos, nos Juízos Final e Particular, por causa do medo da morte e do Inferno, com destaque especial para o Brasil, nas Irmandades Negras de Nossa Senhora da Boa Morte, no século XVIII, está em nosso livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
[2]TEMPORELLI, Clara. Maria mulher de Deus e dos pobres: releitura dos dogmas marianos, 2. ed., São Paulo: Paulus, 2011. p. 197.
[3] Ibidem, p. 198-201.
[4] JOHNSON, Elizabeth A. Nossa verdadeira irmã: teologia de Maria na comunhão dos santos. São Paulo: Loyola, 2006. p. 160.
[5] AIELLO, A. G. Svillupo del dogma e tradizione a propósito della definizione dell’Assunzione de Maria. Roma: Città Nuova, 1979. p. 440.
[6] PIO XII, Papa. Carta Apótólica Munificentissimus Deus. Città del Vaticano, 1950.
[7] FARIA, Jacir de Freitas. História de Maria, mãe e apóstola de seu filho, nos evangelhos apócrifos. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 180-181.
[8] Optamos por referirmo-nos às narrativas apócrifas sobre a vida de Maria como textos narrativos biográficos por entender que não são informações históricas. No entanto, há de se considerar com OTERO, A. de Santos, em sua obra: Los Evangelios Apócrifos, 2. ed. Madrid: BAC, 1991. p. 131-132, que informações contidas no Protoevangelho de Tiago sobre a vida de Maria foram consideradas históricas pela Igreja grega, a partir do séc. IV, e a Igreja latina, a partir do séc. XIII.
[9] TAVARD, George H. As múltiplas faces da Virgem Maria. São Paulo: Paulus, 1999, p. 46.
[10] TAVARD, As múltiplas faces da Virgem, p. 42.
[11] Apud TAVARD, As múltiplas faces da Virgem, p. 41.
[12] KLAUCK, Hans-Josef. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Loyola, 2007, p. 232-233.